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LUZ 5304 - A urgência de sentido à vida

Cláudia Dias Sampaio

Trânsito parado nas primeiras horas de uma terça-feira chuvosa na cidade do Rio de Janeiro. No rádio, motoristas dão seus depoimentos pelos celulares, ocupam o tempo informando sobre a cena que se repete em diversos pontos da cidade, e que faz parte da rotina sistemática de muitos de nós.

Por um instante, algo escapa à trivialidade.

O cinza do céu desperta a melancolia desses dias em que parece haver pouco, ou quase nada, a ser feito. A placa traseira do carro da frente, LUZ 5304, ilumina possibilidades que pareciam encerradas na ausência de sentido do excesso de nossos dias. E é com surpresa indisfarçável que sou atravessada por um trânsito constituído de morte, mutação e, por que não?, esperança. Afinal, ainda temos a arte e a filosofia. Cada uma, a seu modo, resiste e faz com que uma mera placa dispare certas reflexões que se impõem à estagnação destes nossos dias complexos e contraditórios.

O filme L'âge de ténèbres (2007), pateticamente traduzido para o português como A era da inocência - do cineasta Denys Arcand, o mesmo de As invasões bárbaras - e a conferência O vazio do pensamento, feita pelo professor Franklin Leopoldo e Silva dentro do ciclo Vida vício virtude, encontram-se numa dimensão reflexiva que coloca em xeque tanto essa rotina sistemática quanto as relações sociais que atendem a necessidades funcionais de poder e acabam atuando como meio de afirmação do isolamento e das relações competitivas. São produções que mantêm diálogo justamente por tratarem de um aspecto em comum e presente nos dias de hoje: a urgência de um sentido para a vida, um sentido que surja de uma densidade interior que somente a reflexão e a liberdade em sua forma mais radical podem nos conceder.

O que virá depois? Uma rede social pautada não mais pelos interesses individuais, mas construída por esse conjunto de subjetividades críticas, éticas e políticas. Nesse sentido, talvez seja a obra de arte o que mais nos possibilite sonhar com um mundo outro; afinal, por ser diferente da Filosofia, ela não está em busca de verdades.

Apesar de o filme de Arcand apontar para a arte como caminho possível de transformação nesses dias de vazio, aqueles que o assistirem em busca de algum tipo de conforto se decepcionarão. Mesmo com o exagero de algumas cenas excessivamente alegóricas, o filme incomoda porque expõe o que o professor Franklin Leopoldo apresenta como o vazio e a mera funcionalidade das relações sociais.

É curiosa, e lamentavelmente compreensível, a forma como L'âge de ténèbres foi divulgado pela mídia brasileira: além de diminuir seu potencial crítico, induz o espectador ao engano. Começando pela tradução do título, com a substituição de ténèbre (trevas) por "inocência", ao que se soma a classificação no gênero "comédia" e a sinopse que dilui o teor crítico do filme: "em seus sonhos um homem se vê como uma grande estrela, mas na vida real é desprezado por sua família".

Exibido no último Festival do Rio, o filme não teve tanta repercussão quanto As invasões bárbaras (2003) ou o Declínio do império americano (1986), que integram a trilogia do diretor, cujo mote é a crítica aos valores e à moral da sociedade moderna.

Por trás da aparente obviedade da história de Jean-Marc Leblanc (Marc Labrèche) - funcionário público infeliz com a rotina do trabalho e da família e que sonha mudar de vida -, o que vemos em L'âge de ténèbres é a apresentação de uma sociedade dominada pelas epidemias, pelo controle e corrupção dos governos, pela busca do sucesso e, sobretudo, pelo declínio da virtude e do amor.

Nesse panorama, restam a parafernália eletrônica, a religião, as crenças esotéricas e o furor do empreendedorismo capitalista. A esposa de Jean-Marc, Sylvie (Sylvie Léonard), é o protótipo da mulher bem sucedida dentro desse sistema: faz ginástica, é funcionária exemplar, têm duas filhas adolescentes e cuida da casa, ainda que apenas alimentos congelados façam parte do cardápio da família. É na fantasia que Jean-Marc se refugia, na tentativa de amenizar a falta de amor e sexo desse casamento asséptico e a melancolia por viver num sistema do qual todos parecem ser vítimas, onde, paradoxalmente, todos pensam ser livres.

É justamente nessa falsa impressão de liberdade e na destituição de valores como a virtude e o amor que o filme de Arcand se conecta ao pensamento apresentado pelo professor Franklin Leopoldo e Silva na conferência O vazio do pensamento. Vale lembrar que essa palestra integra o ciclo de debates Vida vício virtude, organizado por Adauto Novaes; este ciclo se liga a outros dois: um que aconteceu no ano passado (Mutações - novas configurações do mundo), e um outro que acontecerá em agosto próximo, cujo tema será a condição humana.

O que une os três ciclos é o conceito de mutação em lugar do conceito de crise, a que normalmente se recorre ao falar sobre a contemporaneidade. A opção pela mutação é o indício de uma utopia; talvez não mais as utopias que o historiador e crítico social norte-americano Russel Jacoby chamou de "utopias projetistas", nas quais o futuro é planejado em detalhes, como no clássico de Thomas More, mas no que Jacoby analisa como "utopias iconoclastas": uma transformação do mundo difícil de ser visualizada, mas que contém as ideias de harmonia, lazer, paz e prazer.

As conferências do ciclo Vida vício virtude serão apresentadas até o dia nove de maio, no Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte. A Academia Brasileira de Letras (ABL) vem transmitindo, ao vivo, pela internet, os encontros que acontecem aqui no Rio, em sua sede, pelo endereço www.academia.org.br .

O professor Franklin Leopoldo e Silva enfatizou a complexidade e a dificuldade de definir o tempo atual, marcado por uma "vida vazia", cujo perigo estaria na descrença das respostas e na desistência das perguntas.

Ele desenvolveu essa hipótese a partir de dois aspectos: a ausência de transcendência e o vazio funcional da experiência subjetiva, que constituem a "alta modernidade" - expressão usada por muitos dos intelectuais que veem nos tempos atuais uma continuação da modernidade, ao contrário de outros que o analisam como "pós-moderno".

A questão principal da exposição de Franklin Leopoldo é o que ele chamou do "vazio funcional da experiência subjetiva", no qual estariam atrelados a falência das utopias e dos projetos, o individualismo e as relações funcionais decorrentes do empreendedorismo do capitalismo, da racionalidade técnica e do triunfo da razão, que se tornaram referências éticas centrais da vida.

Para refletir sobre a ausência da transcendência e sobre o vazio dessas relações funcionais e esse esgotamento de possibilidades dentro de um sistema em que a liberdade do sujeito se reduz ao que ele pode ou não consumir, o professor se apropriou do sistema filosófico criado por Leibniz no século XVIII, das mônadas. Estas seriam substâncias autônomas separadas, incomunicáveis. É o sistema perfeito, em que todas as operações são executadas com exatidão. No entanto, esse funcionamento perfeito não depende dos elementos (das mônadas), mas de Deus. O isolamento das mônadas institui entre elas um vazio que é transposto pelo divino através dessa própria incomunicabilidade; é por ela que esses elementos se relacionam. Portanto, a origem dessa funcionalidade é o Deus criador, transcendente. Quando Deus é excluído desse sistema, perde-se esse critério que permitia compatibilizar os elementos, e nos vemos diante da tarefa de explicar a situação de modo imanente ao sistema.

Quer dizer, antes da modernidade, tudo era explicado pela sabedoria transcendental de Deus. O que resta depois disso é a imanência, a racionalidade inerente ao próprio sistema. A distância do outro se torna o vazio absoluto que o rodeia e é a condição de sua existência. Separação, isolamento, incomunicabilidade se tornam componentes essenciais do indivíduo.

No entanto, essa individualidade é compatível com a globalização da "sociedade de massa", é a organização sistemática em que os indivíduos estão separados mas não são diferentes, pois estão destituídos de suas subjetividades e da liberdade em sua plenitude - a consciência da incompletude que nos constitui, o direito à angústia de que nos falou Sartre. Este, sim, é o vazio que importa na construção de nossa história pessoal, na constituição de nossa subjetividade, mas que é interditado pelo excesso a que estamos expostos nos dias de hoje, somado à rotina sistemática que funciona perfeitamente (como as mônadas) pelo esvaziamento das subjetividades e das relações sociais. Aceitar esse vazio que nos constitui, essa negação de sentido, próprio da liberdade em sua forma mais radical, é tarefa cada vez mais complicada.

Erroneamente, a liberdade é vista como decorrência do sistema; o sujeito perde sua densidade interior, o que ocorre é o esvaziamento da dimensão subjetiva e, portanto, a confusão entre individualidade e subjetividade.

Seguindo Sartre, Franklin Leopoldo enfatiza que o cultivo de si - ao contrário de um individualismo que ocasionaria esse vazio das relações - é exatamente o que possibilita a construção de uma rede social pautada não mais pelos interesses individuais, mas construída por esse conjunto de subjetividades críticas, éticas e políticas.

A funcionalidade desse vazio das relações, que o professor identifica como principal aspecto do "vazio do pensamento" nos dias de hoje, está justamente na afirmação de um isolamento necessário para as relações competitivas. É a oportunidade para táticas de controle desse sistema. O que decorre disso é que a presença efetiva do outro tende a desaparecer e a sociabilidade torna-se instrumento e meio de afirmação desse isolamento e dessas relações competitivas.

Segundo Franklin, "o vazio do pensamento" não se resume apenas à falta de uma reflexão intelectual, mas a uma existência pautada pelo vazio, uma tentativa de atribuir sentido à vida em função das práticas de controle desse sistema. Desvios que tendemos (pelo sistema) a assimilar como sentido da vida, o lugar vazio em que deveriam estar a nossa subjetividade e a nossa história.

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Adauto Novaes é jornalista e professor. Estudou filosofia na França. Foi diretor, durante 20 anos, do Centro de Estudos e Pesquisas da Fundação Nacional de Arte (Funarte), ligada ao Ministério da Cultura. Organizou, entre outros, alguns ciclos de conferência que depois viraram livros, a maioria editada pela Companhia das Letras, nos quais publicou ensaios: Os sentidos da paixão; O olhar; O desejo; Ética, Tempo e História (que conquistou o Prêmio Jabuti); Rede imaginária - televisão e democracia; Artepensamento; A crise da razão; Libertinos/libertários; A descoberta do homem e do mundo; A outra margem do Ocidente; A crise do Estado-nação (pela Record); O avesso da liberdade; O homem máquina; Civilização e barbárie e Muito Além do Espetáculo (Editora Senac São Paulo).

Franklin Leopoldo e Silva é professor do Departamento de Filosofia da USP. Publicou Descartes, metafísica da modernidade (Moderna) e Bergson: intuição e discurso filosófico (Loyola). Tem ensaios nos livros A crise da razão; Tempo e história; e O avesso da liberdade, editados pela Companhia das Letras, e Muito além do espetáculo (Editora Senac São Paulo).

Publicado em 29 de abril de 2008

Publicado em 29 de abril de 2008

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