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O nada ululante

Pablo Capistrano

"O Brasil não é para principiantes". Há um sentido ufanista nessa frase, mas há também um alerta para um risco inerente à experiência de viver em um país como o nosso. Tudo aqui é mais intenso. Quando vem, o prazer entorpece; a dor, quando aparece, só falta matar. Deve ser fácil ficar louco no Brasil. Não padecemos da melancolia sem-fim do norte, com seus dias frios, arrastados e sombrios de inverno, mas sofremos de uma estranha bipolaridade que nos leva de arroubos eufóricos a desconcertantes estados de prostração. Deve ser o calor, não sei. O fato é que, no Brasil, quase tudo tem a marca dessa crueza seca que deixa à mostra o miolo, o tutano, o oco infinito das coisas. Assim também é na política.

Geralmente, nas sociedades do norte, marcadas por uma náusea burguesa já consolidada há pelo menos duzentos anos, a disputa pelo poder é disfarçada de ideologia partidária, de projetos programáticos, de concepções sociais, linhas políticas ou tendências religiosas. Lá também se mata e se morre pelo poder, mas há certo preparo, certo ar de civilidade recalcada que encobre a ferocidade dos embates políticos.

No Brasil isso não acontece. O nada ululante do poder é exposto ao sol e, sem nenhum pudor, os agentes políticos se destroçam ferozmente em praça pública em busca de uma próxima eleição, de um próximo escândalo, de uma próxima CPI que permita abrir uma porta de entrada no Palácio do Planalto, da governadoria, ou da sede de qualquer prefeiturazinha sem futuro.

Esse caso do dossiê, lançado com o intuito de queimar a candidatura da ministra Dilma Rousseff, é paradigmático. Se retirarmos a instrumentalidade política da discussão, se isolarmos os efeitos eleitorais e midiáticos do acontecido, o que sobrará? Um ululante e latejante nada. Essa é uma típica discussão que empolga a política brasileira. Alguém preparou um banco de dados com as contas do governo tucano; alguém editou essas contas para que um dossiê inofensivo (que não incriminasse FHC nem sua respectiva) pudesse ser produzido; alguém divulgou isso para a imprensa e deu o mote para a festa.

No final das contas, alguém está tentando ganhar alguma coisa e prejudicar um outro alguém, que tenta reverter o jogo e prejudicar quem tenta ganhar com o caso. Percebe como há uma semelhança inerente desse caso com o assassinato da menina Isabella Nardoni? Os dois são obras-primas da mais pura ficção jornalística. A habilidade de construir intricadas narrativas policiais com cenas de espionagem, drama, paixão e tragédia fornecem ao espectador a dose certa de suspense, intriga e mistério que alimentam diariamente os folhetins jornalísticos, até que um outro drama, um outro escândalo ou uma nova bizarria tropical chame a atenção dos profissionais de imprensa, para que novas narrativas possam alimentar o gosto do público.

No caso do dossiê há um detalhe curioso: as narrativas de escândalos políticos no Brasil, que se sucedem de anos, servem fundamentalmente a essa disputa sem fim pelo controle do Estado, e não apenas pela audiência televisiva. A cada novo furo, CPIs de tapiocas, escândalos sexuais e denúncias sempre incompletas e muitas vezes parciais mostram o tutano da política: a pura e transparente busca pelo poder.

A narrativa desses escândalos políticos, ao contrário das narrativas policiais sobre crimes brutais, tem uma característica mais cínica. Elas simplesmente desaparecem quando o efeito político almejado é alcançado. Narrativas de escândalos políticos não têm conclusão. Elas simplesmente desaparecem do noticiário quando os objetivos para as quais são produzidas se realizam ou quando seus efeitos potenciais se esgotam na consciência do eleitorado. Depois da eleição, depois da renúncia, depois do acordo, tudo some, de modo evanescente, como um punhado de areia que você joga para cima na beira de uma praia, em dia de vento.

Publicado em 11 de março de 2008.

Publicado em 29 de abril de 2008

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