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A ferida da raça
Pablo Capistrano
Assistindo na DW-TV às repercussões europeias da vitória da tia Hillary sobre o Barack Obama nas prévias da Pennsylvania, sou subitamente possuído por uma dúvida: "por que todo mundo diz que o Barack Obama é negro?".
Vou à Internet e vejo uma foto do cara nos braços da mãe quando tinha dois anos. A mocinha branca do Kansas que casou com um queniano e depois foi morar na Indonésia não parece, de modo algum, com os estereótipos culturais de uma moradora do Harlem. Tecnicamente, se tivesse nascido no Brasil, Obama seria um "moreno claro". Mais um dos mestiços que enchem nossas ruas e fazem o estranho mosaico de rostos das metrópoles brasileiras. Para entender porque o candidato aspirante à vaga democrata na próxima eleição para presidente dos EUA precisa virar "negro", eu tive que voltar a 1915.
Em oito de fevereiro daquele ano longínquo, aparecia nas manchetes dos jornais dos EUA a mais nova superprodução de Hollywood. Com direção de D. W. Griffith, O nascimento de uma nação era um épico histórico no melhor estilo do cinemão norte-americano que venceu, após a guerra, a escola alemã de Murnau, e Fritz Lang e dominou o mercado da cinematografia internacional do pós-guerra. O filme se divide em duas partes. Na primeira, conta a história da Guerra da Secessão na perspectiva das relações entre duas famílias: os Cameron (do Sul) e os Stonemann (do Norte). Na segunda parte do filme... Bem, a segunda parte do filme é tenebrosa... O diretor retrata o ambiente do Sul dos EUA da época posterior à guerra (após o assassinato de Abraham Lincoln) do modo mais afrofóbico possível. Os escravos libertos são retratados como selvagens idiotas e sem modos, primitivos e intelectualmente inferiores, que submetem a antiga elite branca a uma insuportável opressão.
O pior é a figura de Silas Linch (personagem do filme): um mestiço, mulato, retratado como alguém ardiloso e maquiavélico, que busca o poder a todo custo e almeja, casar com a filha branca e lourinha do seu protetor, o senador nortista Stonemann. No filme, os mulatos são retratados da forma mais grotesca. Eles são lascivos, sem caráter, devassos, e, o pior: são inteligentes (ao contrário dos negros, todos broncos e abobalhados). Griffith deixa à mostra a ideia de que os mulatos combinam a flacidez moral dos negros e a lascívia sexual dos africanos com a inteligência e a meticulosidade dos brancos (essa é a ideia do filme). Por isso mesmo, os mestiços são muito mais perigosos. No filme, os Cameron (a família do sul) são destruídos pela opressão dos novos senhores negros, encontrando uma única e inexorável saída política: fundar a Ku Klux Klan!
Sim, a Ku Klux Klan (a entidade nazista, e racista que enforcava negros, judeus e homossexuais e queimava cruzes imensas no sul dos EUA). No filme, ela é vista como a última esperança branca para manter a honra e a dignidade da nação. Sentiu o drama? Mas não é só no cinema. Lendo alguns contos de H. P. Lovecraft, um dos mestres da ficção e do suspense, encontro coisas como: "mas o espírito diabólico da escuridão e da esqualidez segue incubando em meio aos mestiços nas casas velhas de tijolos..."; "um bote foi colocado na água e uma horda de facínoras morenos e insolentes subiu a bordo do Curander..."; "e Marlone não pôde deixar de lembrar que o Curdistão é a terra dos yezidis, os últimos sobreviventes persas dos adoradores do diabo".
Em Lovecraft, como em Griffith, o mal é sempre fruto da exótica mistura das raças. O mal tem a cara morena de religiões distantes e de cruzamentos interraciais. Esse parece ser o maior de todos os tabus dos norte-americanos: cruzar a barreira racial, partir a fronteira catalogada e definida daquelas convenções ideológicas que separam seres humanos. Por isso, Barack Obama, teve que rejeitar a herança da mãe e assumir a raça do pai. Percebeu como há um cheirinho de 1915 nessa campanha eleitoral norte-americana?
Publicado em 6 de maio de 2008
Publicado em 06 de maio de 2008
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