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A virada da linguagem
Pablo Capistrano
Escritor, professor de filosofia
Crônicas filosóficas
Um dia, Jenne, uma jovem alemã que morou um ano em Natal, me perguntou: “por que as pessoas no Brasil não cumprem o que prometem?”. No começo eu não entendi, mas com um pouco de esforço consegui compreender o que a afligia: a linguagem. Ela não tinha compreendido que, no Brasil (ao menos no Nordeste), as pessoas falam algumas vezes com um discurso subliminar. Quando uma amiga na escola dizia: “Ah! Que legal! Vamos ver se a gente marca para sair no final de semana. Eu ligo para você”, ela entendia a ultima sentença “eu ligo para você” como um alemão entenderia; ou seja, como uma promessa, um compromisso. Jenne perdeu muitos sábados esperando as ligações das amigas, que prometiam as coisas e não cumpriam. Até que eu consegui explicar a ela que quando uma garota de dezesseis anos no Brasil diz, naquele contexto, “eu ligo para você” ela está querendo dizer “olha, você é legal e é muito provável que sejamos amigas. Eu estou, inclusive, aberta para que a gente se aproxime mais”.
A consciência de que a linguagem é problemática e que temos que pensar bastante sobre ela ganhou muita força no século XX. Boa parte da Filosofia do século passado se debruçou sobre a função de nossa linguagem e de nosso discurso. Se na Idade Média a principal questão da Filosofia era Deus, na Idade Moderna era o conhecimento: no século XVII a razão, e no XIX a história; no XX, a Filosofia descobriu a linguagem. Tanto os pensadores que seguiam o time do Wittgenstein (o filósofo austríaco que eu citei algumas crônicas atrás) quanto os que faziam parte do conselho consultivo da equipe do Martin Heidegger debruçaram-se, de um modo ou de outro, sobre os problemas de nossa linguagem. Essa estranha preocupação foi chamada de “virada linguística”. O nome já diz tudo: de repente, a Filosofia virou-se para a linguagem e começou a refletir sobre ela.
O século XX, com a informática, a grande mídia, a evolução dos signos, a publicidade, a indústria cultural, a cultura pop, tornou-se então a era do signo. A vida do homem contemporâneo acontece em um casulo de signos, envolvida em uma esfera de linguagem, cercada de ícones por todos os lados (dê uma olhadinha na rua e você vai perceber isso).
Então, no século passado, os wittgensteinianos e os heideggerianos se dividiram em falanges para dar, cada um a seu modo, respostas à questão do discurso, do logos (para usar uma palavrinha grega básica que os filósofos adoram). Nessa disputa, as fronteiras foram demarcadas. Os países de língua inglesa (especialmente EUA e Inglaterra) ficaram sob influência do pensamento de Wittgenstein; a França, pasmem, foi dominada mais uma vez pela Alemanha, ficando sob a área de influência do pensamento de Heidegger. Como numa boa e velha partida de War II, os filósofos da linguagem e os hermeneutas armaram seus exércitos e jogaram os dados.
Curiosamente, existem muitas estranhas coincidências envolvendo Heidegger e Wittgenstein. Ambos nasceram num dia 26 (Heidegger em setembro e Wittgenstein em abril) do mesmo ano (1889). Ambos falavam alemão. Ambos eram de famílias católicas (apesar de Wittgenstein ter origem judaica e Heidegger ter trocado a Igreja pelo partido nazista); ambos tiveram professores que muito os influenciaram mas que depois foram deixados de lado (Heidegger renegando o seu e Wittgenstein rompendo relações). Pior: o nome dos dois professores era quase o mesmo (um Hursserl para Heidegger e um Russell para Wittgenstein). Ambos sabiam que a velha filosofia havia morrido. Ambos amavam poesia e eram profundos admiradores de Rilke e Trakl. Publicaram seus primeiros livros na década de 1920 e, com esses trabalhos, abalaram o universo acadêmico. Mudaram de pensamento no decorrer da vida: Wittgenstein na velhice pensando como Heidegger pensava quando era jovem e Heidegger defendendo na velhice ideias parecidas com as que Wittgenstein defendia na época da juventude.
Se fossem um casal não haveria tanta coincidência. Mas ao menos uma distinção fundamental os separava (além da preferência sexual): a ideia sobre o que fazer com a Filosofia no século XX. Para Wittgenstein, a aventura filosófica havia acabado e era hora de se dedicar a coisas mais úteis como jardinagem ou leitura de romances policiais; para Heidegger, o que havia acabado era uma forma equivocada de fazer Filosofia. Por isso, era hora de recomeçar. Retroceder à velha Grécia para reiniciar a aventura. Ver o que tinha dado errado e começar tudo de novo, de um novo modo.
Publicado em 13/05/08
Publicado em 13 de maio de 2008
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