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Nós, o povo, com o objetivo de formar uma união mais perfeita

Barack Obama

Este foi o discurso do senador sobre a questão racial, feito na Filadélfia, falando um tema que vem sendo exaustivamente abordado em sua campanha à candidatura presidencial democrata nos Estados Unidos.

Há 221 anos, numa edificação que continua a existir do outro lado da rua, um grupo de homens se reuniu e, com estas simples palavras: "Nós, o povo, com o objetivo de formar uma união mais perfeita", lançou a improvável experiência da democracia na América. Fazendeiros e estudiosos, estadistas e patriotas que atravessaram um oceano para escapar à perseguição e à tirania concretizaram finalmente sua declaração de independência, em uma convenção que durou toda a primavera de 1787.

O documento que produziram foi concluído e assinado, mas era, em última análise, uma obra inacabada, porque continha a mácula da escravidão, o pecado original da nação e uma questão que dividiu as colônias e causou impasse na convenção até que os fundadores optaram por permitir que o tráfico de escravos continuasse por pelo menos mais 20 anos, deixando qualquer solução definitiva às futuras gerações.

É evidente que a resposta à questão da escravidão já estava contida em nossa constituição – uma constituição que tinha por cerne a igualdade dos cidadãos perante a lei, uma constituição que prometia a seu povo liberdade, justiça e uma união que poderia e deveria ser aperfeiçoada ao longo do tempo.

No entanto, palavras em um pergaminho não são suficientes para libertar os escravos de seus grilhões ou para oferecer a homens e mulheres de todas as cores e credos seus plenos direitos e obrigações como cidadãos dos Estados Unidos. Foram necessários norte-americanos das gerações seguintes que se dispuseram a fazer sua parte – com protestos e luta, nas ruas e nos tribunais, em uma guerra civil e na desobediência civil, sempre sob grande risco – com o objetivo de reduzir a distância entre aquilo que nossos ideais prometiam e a realidade de nossa era.

Essa foi uma das tarefas a que nos propusemos no início desta campanha: continuar a longa marcha daqueles que vieram antes de nós em direção a um país mais justo, mais igualitário, mais compassivo e mais próspero. Escolhi disputar a presidência neste momento histórico porque acredito profundamente que não possamos resolver os desafios de nossa era, a não ser que o façamos juntos, a não ser que aperfeiçoemos nossa união ao compreender que, embora nossas histórias pessoais possam diferir, temos esperanças comuns; compreender que, embora nossas aparências não se assemelhem, desejamos todos nos mover na mesma direção: o caminho de um melhor futuro para os nossos filhos e netos.

Essa crença deriva de minha fé inabalável na decência e na generosidade do povo dos Estados Unidos. Mas deriva também de minha história pessoal como americano. Sou filho de um homem negro do Quênia e de uma mulher branca do Kansas. Fui criado com a ajuda de um avô negro que sobreviveu à Depressão e combateu no exército de Patton durante a Segunda Guerra Mundial e de uma avó branca que trabalhou em uma linha de montagem de bombardeiros em Fort Leavenworth, enquanto seu marido servia no exterior.

Frequentei algumas das melhores escolas dos Estados Unidos e vivi em uma das mais pobres nações do mundo. Sou casado com uma negra norte-americana que tem o sangue de escravos e de proprietários de escravos – um legado que transmitimos a nossas duas amadas filhas. Tenho irmãos, irmãs, sobrinhas, sobrinhos, primos e tios de todas as raças e matizes, espalhados por três continentes; por mais que eu viva, jamais esquecerei que em nenhum outro país do planeta minha história seria possível.

Trata-se de uma história que não fez de mim o mais convencional dos candidatos, mas tornou parte de minha composição genética a ideia de que este país é mais que a soma de suas partes; a ideia de que, múltiplos, sejamos um só.

Ao longo do primeiro ano desta campanha, contrariando todas as previsões contrárias, nós vimos o quanto o povo dos Estados Unidos está faminto por essa mensagem de unidade. A despeito da tentação de ver minha candidatura exclusivamente pela lente da raça, conquistamos vitórias incontestáveis em estados onde a população branca é das maiores no país. Na Carolina do Sul, onde a bandeira confederada continua a ser desfraldada, construímos uma poderosa coalizão entre negros e brancos.

Isso não implica dizer que a raça não tenha desempenhado um papel significativo nesta campanha. Em diversos momentos, houve comentaristas que me definiram como negro demais ou negro de menos. Vimos a tensão racial aflorar na semana da primária da Carolina do Sul. A imprensa vem vasculhando todas as pesquisas de boca de urna em busca dos mais recentes indícios de polarização racial – não só em termos de negro e branco, mas de negro e mulato igualmente.

E, no entanto, foi apenas nas duas últimas semanas que a discussão da raça se tornou assunto especialmente divisionista nesta campanha. De um lado do espectro, ouvimos implicações de que minha candidatura representa de alguma forma um exercício de ação afirmativa, que ela se baseia apenas no desejo dos liberais deslumbrados de adquirir reconciliação racial a baixo preço; de outro, ouvimos meu antigo pastor, o reverendo Jeremiah Wright, empregando linguagem incendiária a fim de expressar opiniões que não só poderiam alargar a cisão entre as raças como também denigrem a grandeza e a bondade de nossa nação e ofendem deliberadamente tanto brancos quanto negros.

Já condenei de maneira inequívoca essas declarações do reverendo Wright, que causaram tamanha controvérsia. Para algumas pessoas, restam questões incômodas. Eu sabia que ele ocasionalmente criticava de maneira feroz a política interna e externa dos Estados Unidos? Evidentemente sim. Eu ouvi declarações que poderiam ser consideradas controversas em ocasiões nas quais compareci à igreja dele? Sim. Discordo intensamente de muitas de suas opiniões políticas? Com certeza, da mesma maneira que, sei, muitos de vocês ouviram opiniões de seus pastores, padres ou rabinos com as quais discordavam frontalmente.

Mas as declarações que causaram a recente tempestade não foram simplesmente controversas. Não se tratava simplesmente do esforço de um líder religioso para protestar contra o que vê como injustiça. Em lugar disso, elas expressavam uma visão profundamente distorcida do país, uma visão que considera endêmico o racismo entre os brancos e que atribui mais importância ao que há de errado com os Estados Unidos do que a tudo aquilo que sabemos há de certo; uma visão de que os conflitos no Oriente Médio dependem integralmente das ações de aliados como Israel, em lugar de emanarem das ideologias perversas e odientas do islamismo radical.

Em si, os comentários do reverendo Wright eram não só errados mas divisionistas, em um momento no qual precisamos de unidade; racialmente distorcidos, em um momento no qual precisamos nos unir para enfrentar um conjunto de problemas monumentais – duas guerras, a ameaça terrorista, uma economia em queda, uma saúde em crise crônica e alterações climáticas potencialmente devastadoras; problemas que não são negros, brancos, latinos ou asiáticos, mas sim problemas que todos nós temos de enfrentar.

Dadas as minhas origens, a minha posição política e os valores e ideais que professo, sem dúvida haverá pessoas para quem minhas declarações de condenação não serão suficientes. Essas pessoas podem se perguntar por que eu teria me associado ao reverendo Wright. Por que não frequentar outra igreja? E confesso que, se tudo que eu soubesse sobre o reverendo Wright fossem os trechos de vídeo que parecem ser exibidos em repetição contínua na televisão e no YouTube, ou se a igreja dele realmente pudesse ser descrita pelas caricaturas oferecidas por alguns comentaristas, eu sem dúvida reagiria mais ou menos como essas pessoas.

Mas a verdade é que isso não é tudo que conheço sobre o homem. O homem que conheci há mais de 20 anos é um homem que me ajudou a conhecer a fé cristã, um homem que sempre falou de nossa obrigação de amar uns aos outros, de cuidar dos doentes e ajudar os pobres. Ele é um homem que serviu seu país como fuzileiro naval; que estudou e lecionou em algumas das melhores universidades e seminários norte-americanos; que, por mais de 30 anos, comandou uma igreja que serve à comunidade realizando o trabalho do Senhor em nossa terra, oferecendo guarida aos desabrigados, cuidando dos necessitados, servindo como creche, fornecendo bolsas, atendendo aos detentos e ajudando a vítimas da Aids.

Em meu primeiro livro, Dreams from my father, descrevi a experiência do primeiro culto a que assisti naquela igreja: "As pessoas começaram a gritar, a se levantar de suas cadeiras, a aplaudir, a exclamar, como uma poderosa rajada de vento que conduzia a voz do pastor a todos os cantos... E naquela nota una – a esperança! – eu ouvi algo mais; aos pés daquela cruz, em milhares de igrejas por toda a cidade, imaginei as histórias das pessoas negras comuns se misturando à história de Davi e Golias, de Moisés e o Faraó, dos cristãos lançados aos leões, do campo de ossos ressecados de Ezequiel. Aquelas histórias de sobrevivência, liberdade e esperança se tornaram nossa história, minha história; o sangue derramado era o nosso sangue, as lágrimas, nossas lágrimas; até que aquela igreja negra, naquele dia ensolarado, se assemelhasse uma vez mais a um recipiente conduzindo a história de um povo a novas gerações e a um mundo mais amplo. Nossos triunfos e sofrimentos se tornaram a um só tempo únicos e universais, negros e mais que negros; ao registrar nossa jornada, as histórias e as canções nos ofereciam maneiras de retomar memórias sobre as quais não precisávamos nos envergonhar... memórias que todas as pessoas podiam estudar e acalentar – e com as quais poderíamos começar a reconstruir".

Foi essa a minha experiência na igreja. Como outras igrejas predominantemente negras em todo o país, a Trinity incorpora a comunidade negra em sua totalidade – o médico e a mãe solteira, o estudante modelo e o antigo membro de gangue. Como outras igrejas negras, os cultos da Trinity estão repletos de riso ruidoso e, ocasionalmente, de humor ousado. Eles oferecem dança, palmas, exclamações, gritos que podem parecer chocantes a quem não conheça. A igreja oferece, em forma plena, a gentileza e a crueldade, a feroz inteligência e a ignorância chocante, os percalços e os sucessos, o amor e, sim, a amargura e a parcialidade que compõem a experiência negra nos Estados Unidos.

Isso talvez ajude a explicar meu relacionamento com o reverendo Wright. Por mais imperfeito que ele seja como pessoa, para mim sempre foi parte da família. Ele reforçou minha fé, celebrou meu casamento e batizou minhas filhas. Em nenhuma das conversações que mantive com ele o ouvi se pronunciar sobre qualquer grupo étnico de maneira derrogatória ou tratar os brancos com os quais interagia de qualquer outro modo que não com respeito e cortesia. O reverendo abriga muitas das contradições – o bem e o mal – da comunidade à qual serviu de maneira tão diligente por tantos anos.

Não posso renegá-lo porque não posso renegar a comunidade negra. Não posso renegá-lo pelo mesmo motivo pelo qual não posso renegar minha avó branca – uma mulher que ajudou a me criar, uma mulher que se sacrificou por mim inúmeras vezes, uma mulher que me ama mais que a tudo no mundo mas que, em certa ocasião, confessou ter medo dos homens negros que cruzam seu caminho nas ruas e que em mais de uma ocasião pronunciou estereótipos raciais ou étnicos que me fizeram estremecer. Essas pessoas são parte de mim. E são parte dos Estados Unidos, o país que eu amo.

Há quem veja minhas declarações como tentativa de justificar ou desculpar comentários que são simplesmente indesculpáveis. Posso lhes garantir que não é esse o caso. Suponho que a coisa segura a fazer, em termos políticos, seria deixar para trás esse episódio e simplesmente esperar que desapareça. Podemos descartar o reverendo Wright como demagogo ou esquisitão, da mesma maneira que descartamos Geraldine Ferraro depois de recentes declarações que revelaram profunda parcialidade racial. Mas, em minha opinião, a questão da raça não pode ser ignorada por este país no momento que vivemos. Estaríamos cometendo o mesmo erro que o reverendo Wright cometeu em seus sermões ofensivos sobre os Estados Unidos: simplificar, estereotipar e amplificar o negativo até o ponto em que isso distorça a realidade.

O fato é que os comentários que foram feitos e as questões que emergiram nas últimas semanas refletem a complexidade da situação racial neste país, que nós jamais deslindamos – é uma parte de nossa união que nos cabe ainda aperfeiçoar. E, caso deixemos a questão sem solução agora, se recuarmos aos nossos cantos, jamais poderemos nos unir e resolver desafios como a saúde, a educação, ou a necessidade de encontrar bons empregos para todos os norte-americanos.

Compreender essa realidade requer que recordemos como chegamos a esse ponto. Como William Faulkner escreveu, “o passado não está morto e enterrado; na verdade, ele nem mesmo é passado”. Não precisamos recitar aqui a história da injustiça racial neste país. Mas precisamos recordar que muitas das disparidades que existem hoje na comunidade negra remontam diretamente às desigualdades que gerações anteriores sofreram sob o legado brutal da escravatura e das leis de segregação racial.

Escolas segregadas eram (e continuam sendo) escolas inferiores; o problema ainda não foi resolvido, 50 anos depois da decisão do processo Brown vs Conselho da Educação (que proibiu a discriminação racial nas escolas norte-americanas, em 1954). A educação inferior que essas escolas ofereciam, naquela época como agora, ajuda a explicar o onipresente diferencial de realizações entre os estudantes brancos e negros.

A discriminação legalizada – sob a qual os negros eram impedidos (muitas vezes pela violência) de adquirir propriedades, sob a qual empresários negros não conseguiam empréstimos ou proprietários negros de imóveis não obtinham financiamento da Autoridade Federal da Habitação ou trabalhadores negros eram excluídos dos sindicatos ou dos departamentos de polícia e bombeiros – fez com que muitas famílias negras fossem impedidas de acumular patrimônio que pudessem legar às futuras gerações. A História nos ajuda a entender a disparidade de riqueza e renda entre brancos e negros e os bolsões de pobreza que persistem em tantas comunidades urbanas e rurais.

A falta de oportunidades econômicas para os homens negros e a vergonha e frustração que surgiam diante da incapacidade de sustentar sua família contribuíram para a erosão das famílias negras – um problema que as políticas de assistência social adotadas por muitos anos ajudaram a agravar. E a falta de serviços básicos em muitos bairros urbanos negros – parques onde as crianças possam brincar, patrulhamento pela polícia, coleta regular de lixo, aplicação dos códigos de edificações e zoneamento – ajudou a criar um ciclo de violência, ruína e negligência que continua a nos ferir.

Esta é a realidade na qual o reverendo Wright e outros negros da geração dele cresceram. Eles chegaram à maioridade no final dos anos 50 e começo dos 60, um momento em que as leis de segregação continuavam em vigor no país e oportunidades lhes eram negadas sistematicamente. O que é notável não é que muitos deles tenham fracassado diante da discriminação, mas sim que tantos homens e mulheres tenham superado as probabilidades adversas; que tantos deles tenham conseguido encontrar caminhos que os tirassem do beco sem saída e abrissem novas possibilidades para pessoas como eu, que vieram depois deles.

Mas, ainda que muitos tenham batalhado e conseguido conquistar sua versão do sonho americano, inúmeros outros não encontraram sucesso: as pessoas que, de uma maneira ou de outra, terminaram derrotadas pela discriminação. Esse legado de derrota foi transmitido às futuras gerações – os jovens, tanto homens quanto cada vez mais mulheres, que vemos parados nas esquinas ou trancafiados nas prisões, sem esperança ou perspectiva. Mesmo entre os negros que conquistaram o sucesso, questões de raça e racismo continuam a influenciar fundamentalmente sua visão de mundo. Para os homens e mulheres da geração do reverendo Wright, as memórias da humilhação, da dúvida e do medo não se foram, e o mesmo pode ser dito sobre a raiva e a amargura daqueles anos.

Essa raiva talvez não seja expressa em público, diante dos colegas de trabalho ou dos amigos brancos. Mas encontra expressão nas conversas de barbearia ou em torno da mesa de jantar. Ocasionalmente, essa raiva é explorada pelos políticos, que tentam obter votos locais manipulando a questão racial, ou como forma de compensar os defeitos desses líderes.

Eventualmente ela encontra expressão na igreja em uma manhã de domingo. O fato de que tanta gente tenha ficado surpresa diante da raiva na voz do reverendo Wright em seus sermões só serve para nos lembrar do velho ditado que afirma que o momento mais segregado da vida nacional são as manhãs de domingo. Essa raiva nem sempre é produtiva; de fato, ela muitas vezes distrai a atenção que deveria ser dedicada à solução de problemas reais; impede-nos de considerar de maneira franca nossa cumplicidade quanto à condição em que vivemos e impede que a comunidade negra forme as alianças de que necessita para promover mudanças reais. Mas a raiva é real, é poderosa; e simplesmente desejar que ela não exista, condená-la sem compreender suas raízes, só servirá para alargar o fosso de incompreensão que existe entre as raças.

Na verdade, raiva semelhante existe em certos segmentos da comunidade branca. A maior parte dos norte-americanos brancos de classe baixa e média não sente que sua raça tenha lhe valido privilégios. A experiência deles é a experiência do imigrante – no que tange a eles, tudo que obtiveram foi construído pelo esforço próprio; nada lhes foi dado. Eles trabalharam com afinco a vida toda, e muitas vezes seus empregos terminaram exportados ou suas pensões foram liquidadas em escândalos financeiros depois de uma vida inteira de trabalho duro. Sentem ansiedade quanto a seu futuro e sentem que seus sonhos estão passando sem realização; em uma era de salários estagnados e competição global, a oportunidade que surge em outras terras representa falta de oportunidade aqui: a realização de outros sonhos ocorre à custa dos deles.

Assim, quando eles são instruídos a enviar seus filhos a uma escola localizada do lado oposto da cidade por motivo de integração racial; quando descobrem que um colega de trabalho negro leva vantagem na seleção para um bom posto ou um estudante negro tem preferência para uma vaga universitária devido a injustiças que não foram cometidas por eles; quando são informados de que medo do crime urbano representa uma forma de preconceito racial, eles acumulam ressentimentos.

Como a raiva na comunidade negra, esses ressentimentos nem sempre são expressos em momentos de convivência. Mas eles ajudaram a dar forma à paisagem política do país, ao longo da última geração. A raiva quanto à assistência social e à ação afirmativa ajudou a criar a chamada coalizão Reagan. Rotineiramente os políticos exploram o medo do crime com fins eleitorais. Apresentadores de programas de entrevistas e colunistas conservadores construíram carreiras demolindo falsas alegações de racismo, mas também descartando discussões legítimas de injustiça e desigualdade racial, classificando-as como reles correção política ou exemplos de racismo reverso.

Da mesma maneira que a raiva negra muitas vezes se provou contraproducente, esses ressentimentos brancos desviaram a atenção quanto aos verdadeiros responsáveis pela compressão que a classe média vem sofrendo: um governo e um sistema político dominados por lobbies e interesses especiais; políticas econômicas criadas para favorecer alguns poucos em detrimento de muitos. No entanto, ignorar os ressentimentos dos norte-americanos brancos ou classificá-los como equivocados ou racistas também serve para ampliar a divisão entre as raças e para bloquear o caminho do entendimento.

É este o ponto em que estamos agora. Trata-se de um impasse racial no qual vivemos há anos. Ao contrário das alegações de alguns de meus críticos (brancos e negros), jamais fui ingênuo a ponto de acreditar que podemos superar nossas divisões raciais em um único ciclo eleitoral ou por meio de uma única candidatura – especialmente uma candidatura tão imperfeita quanto a minha.

Mas assevero minha firme convicção – enraizada em minha fé em Deus e no povo dos Estados Unidos – de que trabalhando juntos seremos capazes de curar algumas de nossas velhas feridas raciais, e de que efetivamente não nos resta escolha se desejamos continuar no caminho de uma união mais perfeita.

Para a comunidade negra, esse caminho significa aceitar os fardos do passado sem que nos tornemos vítimas dele. Significa continuar a insistir em justiça plena quanto a todos os aspectos da vida norte-americana. Mas significa também combinar nossas queixas específicas – a busca de melhor saúde, melhor educação, melhores empregos – às aspirações mais amplas de todos os norte-americanos: a mulher branca que luta para superar as restrições ao avanço profissional feminino, o homem branco que perdeu o emprego, o imigrante que tenta alimentar sua família. E isso significa aceitar plena responsabilidade por nossas vidas – exigindo mais de nossos pais e passando mais tempo com nossos filhos, lendo para eles, ensinando-lhes que, embora possam enfrentar desafios e discriminação em suas vidas, jamais devem sucumbir ao desespero ou ao cinismo; devem sempre acreditar que lhes será possível escrever seu destino.

Ironicamente, este conceito fundamentalmente americano – e, sim, conservador –, o de 'ajuda a ti mesmo', encontrava expressão frequente nos sermões do reverendo Wright. Mas o que meu antigo pastor muitas vezes não conseguia compreender era que iniciar um programa de autoajuda requer igualmente a crença em que a sociedade seja capaz de mudar.

O erro profundo dos sermões do reverendo Wright não é que ele tenha falado do racismo em nossa sociedade, mas sim que o tenha feito como se nossa sociedade fosse estática, como se progresso algum tivesse sido realizado, como se este país – um país que permitiu a um membro da congregação dele disputar o mais alto dos cargos e criar uma coalizão de negros e brancos, latinos e asiáticos, ricos e pobres, jovens e velhos – esteja ainda acorrentado a um passado trágico.

Mas aquilo que sabemos – aquilo que testemunhamos – é que os Estados Unidos podem mudar. É essa a verdadeira alma de nosso país. O que conseguimos realizar nos dá esperança – a audácia da esperança – quanto ao que podemos e devemos realizar amanhã.

Na comunidade branca, o caminho para uma união mais perfeita significa reconhecer que os problemas da comunidade negra não existem apenas na cabeça dos negros; que o legado da discriminação – e incidentes atuais de discriminação, embora menos escancarados do que no passado – existe e precisa ser corrigido. E não apenas com palavras, mas por meio de fatos – investimento em nossas escolas e comunidades, defesa dos direitos civis e de julgamento justo nos tribunais criminais, criação de oportunidades que permitam à atual geração uma ascensão impossível para as gerações passadas. Isso requer que todos os norte-americanos compreendam que seus sonhos não precisam ser realizados à custa de sonhos alheios; que investir em saúde, bem-estar e educação de crianças brancas, negras e mulatas, em última análise, ajudará a prosperar o país como um todo.

Aquilo de que precisamos, portanto, é nada mais e nada menos do que aquilo que todas as grandes religiões do mundo pedem: que façamos aos outros aquilo que gostaríamos nos fosse feito. A Bíblia pede que protejamos os nossos irmãos e irmãs. Devemos encontrar nos outros o interesse que nos une; e nossas políticas deveriam refletir esse fato.

Temos, em nosso país, uma escolha a fazer. Podemos aceitar uma política que fomente a divisão, o conflito e o cinismo. Podemos tratar da questão racial apenas como espetáculo – como fizemos no julgamento de O. J. (Simpson) – ou apenas em momentos de tragédia – como o fizemos depois do Katrina –, como munição para as notícias noturnas. Podemos exibir os vídeos do reverendo Wright em todos os canais, todos os dias, falar sobre eles daqui até a eleição e fazer com que a única questão a ser debatida no pleito seja a possibilidade de que eu concorde ou simpatize de alguma maneira com as mais ofensivas de suas palavras. Podemos explorar uma gafe de algum assessor de Hillary ou podemos especular se todos os homens brancos votarão em McCain, não importa quais sejam suas opiniões políticas.

Podemos agir assim. Mas posso lhes afirmar que, se o fizermos, na próxima eleição estaremos falando sobre outra distração; e depois outra; e mais outra; e nada jamais mudará.

Essa é uma opção. Ou podemos, neste momento, nesta eleição, nos unir e exclamar: “Desta vez, não! Desta vez queremos falar sobre as escolas decadentes que estão roubando o futuro de crianças negras, brancas, asiáticas, hispânicas e indígenas. Desta vez podemos rejeitar o cinismo que nos diz que essas crianças são incapazes de aprender, que essas crianças de aparência diferente das nossas são problema de outra pessoa. As crianças dos Estados Unidos não são 'essas crianças'; são as nossas crianças, e não permitiremos que fiquem para trás na economia do século XXI”. Não desta vez.

Desta vez queremos discutir as filas repletas de brancos, negros e hispânicos desprovidos de planos de saúde nos pronto-socorros, pessoas que não têm o poder de superar sozinhas os lobbies em Washington mas que poderiam fazê-lo caso nos uníssemos. Desta vez queremos falar sobre as fábricas abandonadas, que, no passado, ofereciam vida decente a homens e mulheres de todas as raças; falar sobre as casas à venda que no passado pertenceram a pessoas de todas as religiões, de todas as regiões, de todas as ocupações. Desta vez queremos falar sobre o fato de que o verdadeiro problema não é que alguém de aparência diferente possa tomar nosso emprego, mas sim que a empresa para a qual alguém trabalha possa decidir despachar esse emprego para outro país em busca de nada mais que lucro.

Desta vez queremos falar sobre homens e mulheres de todas as cores e credos, que servem unidos, lutam unidos e sangram unidos sob a mesma orgulhosa bandeira. Queremos falar sobre como trazê-los para casa de uma guerra que não deveria ter sido autorizada e jamais deveria ter sido travada. Queremos falar sobre como devemos demonstrar nosso patriotismo cuidando deles e de suas famílias, propiciando a eles os benefícios que conquistaram.

Eu não estaria disputando a presidência caso não acreditasse de coração que é isso que a vasta maioria dos norte-americanos deseja para o país. Nossa união talvez jamais venha a ser perfeita, mas gerações após gerações demonstraram que ela sempre pode ser melhorada. E hoje, sempre que me vejo cínico ou em dúvida em relação a essa possibilidade, aquilo que me dá mais esperança é a próxima geração: os jovens cujas crenças e atitudes e abertura à mudança já fizeram história nesta eleição.

Existe uma história em especial que eu gostaria de deixar com vocês hoje: uma história que contei quanto tive a grande honra de discursar no aniversário do Dr. (Martin Luther) King em sua igreja, a Ebenezer Baptist, em Atlanta.

Há uma jovem voluntária branca, Ashley Baia, de 23 anos, que nos ajudou a organizar nossa campanha em Florence, na Carolina do Sul. Ela vem trabalhando desde o começo da campanha para ajudar a organizar uma comunidade formada majoritariamente por negros, e um dia participou de uma mesa-redonda na qual todo mundo contou sua história e explicou os motivos de sua presença.

Ashley contou que, quando tinha nove anos, sua mãe adoeceu de câncer e, porque iria perder dias de trabalho, foi demitida e perdeu seu seguro-saúde. A família teve de pedir falência; foi então que Ashley decidiu que tinha de fazer alguma coisa para ajudar a mãe.

Ela sabia que comida era uma das maiores despesas da casa; por isso, convenceu a mãe de que a comida que ela mais apreciava eram sanduíches de pão com mostarda e molho inglês, porque era a comida mais barata que encontrou.

Ela fez isso por um ano, até que sua mãe melhorou; ela contou a todo mundo na mesa-redonda que aderiu à nossa campanha para que pudesse ajudar os milhões de crianças do país que querem e precisam ajudar os pais.

Certamente Ashley poderia ter feito escolha diferente. Alguém pode ter dito a ela, em algum momento, que o motivo dos problemas de sua mãe eram os negros que viviam de assistência social por serem preguiçosos demais para trabalhar ou os hispânicos que chegam ao país ilegalmente. Ela poderia ter feito outra escolha. Mas não. Em lugar disso, procurou aliados em sua luta contra a injustiça.

Quando Ashley terminou sua história, ela perguntou aos demais por que eles haviam aderido à campanha. Cada um deles tinha histórias e razões próprias. Muitos mencionaram uma questão específica. Por fim, chegou a vez de um velho negro que havia assistido a tudo aquilo em silêncio. Ashley perguntou por que ele estava lá. E ele não mencionou um motivo específico. Não citou a saúde ou a economia, a educação ou a guerra. Não disse que estava lá por causa de Barack Obama. Ele simplesmente disse a todos os presentes: 'Estou aqui por causa de Ashley'.

'Estou aqui por causa de Ashley'. Em si, aquele momento único de reconhecimento entre uma jovem branca e um velho negro não seria suficiente. Não é suficiente que ofereçamos saúde aos doentes, trabalho aos desempregados ou educação às crianças.  Mas é assim que devemos começar. É assim que nossa união se tornará mais forte. Como tantas gerações vieram a perceber ao longo dos 221 anos desde que aquele grupo de patriotas assinou aquele documento na Filadélfia, é assim que começa a perfeição.

Publicado em 13 de maio de 2008

Publicado em 13 de maio de 2008

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