Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

A musicalidade na obra de João Guimarães Rosa

André Vinícius Pessôa

Mestre e doutorando em Letras pela UFRJ

“Sou precisamente um escritor que cultiva a ideia antiga, porém sempre moderna, de que o som e o sentido de uma palavra pertencem um ao outro. Vão juntos. A música da língua deve expressar o que a lógica da língua obriga a crer”, afirmou João Guimarães Rosa, dialogando com o crítico alemão gunter Lorenz (Rosa, apud Lorenz, 1983, p. 88). As confissões de Rosa a Lorenz evidenciam como o escritor pensava (e sentia) a tensão dinâmica que rege a musicalidade das palavras. O que quer dizer essa musicalidade? Todos os seus significados apresentados pelo Dicionário Houaiss – “caráter, qualidade ou estado do que é musical”; “talento ou sensibilidade para criar ou executar música”; “sensibilidade para apreciar música; conhecimento musical”; “expressão do talento musical de alguém”; e “cadência harmoniosa; ritmo” (Houaiss, 2001) – se mostram oportunos para motivar uma leitura original da obra de Guimarães Rosa.

Música, sendo corpo e evento sonoro, é o que se faz no encontro de ser e tempo. Já a musicalidade pode ser vista como anterior à música. Uma potência que propicia ao homem fazer música. Nesse sentido é que discorrer sobre a musicalidade na literatura é o mesmo que falar do que envolve não só o escritor na consecução de sua obra mas também o leitor quando este se depara com o texto, que não é senão também corpo e evento sonoro. O que determina o grau de musicalidade de um texto? Seria correto afirmar que todos os textos contêm musicalidade e que alguns são mais aptos ao leitor fazer de sua leitura uma experiência musical?

A prosa do Corpo de Baile, obra publicada em 1956 (no mesmo ano de Grande Sertão: Veredas), ao encontrar-se tão próxima da poesia em sua essência e origem, contém uma disposição musical que transparece e faz soar sentidos inauditos. Quase desnecessário afirmar que é preciso gostar para dar um acolhimento amoroso. Gostar, verbo que vem da mesma raiz do grego geúo, quer dizer provar ou experimentar. Ler em voz alta ou silenciosamente. Circular na tríade que envolve o leitor, a leitura e o ato de ler. Musicar a obra literária na medida em que o ritmo da leitura venha trazer inevitáveis sugestões melódicas e harmônicas. Aproximar-se da sonoridade de cada palavra.

O encadeamento, a abertura das vogais e a alternância consonantal, por si sós, são elementos que têm como propriedade dar ao leitor a musicalidade do texto. No entanto, a obra de Rosa oferece mais. Faz vibrar a celebração poética dos sons constituídos nas palavras. Sons que prescindem da apreensão representacional do mundo. Palavras que confluem “na alegria de tudo, como quando tudo era falante, no inteiro dos campos-gerais...” (Rosa, 1965, p. 67). Poética no transe de sua sagração sonora, onde o nome e a coisa nomeada se fundem. Unificam-se concomitantemente no mesmo destino cósmico a presença e o som. Consagram-se.

Dirce Riedel, na tentativa pioneira de uma investigação em torno da musicalidade da obra de Guimarães Rosa, escreveu em 1962 uma tese chamada O Mundo Sonoro de Guimarães Rosa. Seu maior mérito foi levantar questões sobre a importância do reconhecimento de um operar musical na escrita de Rosa. A autora, na introdução de seu texto, observou no escritor uma disposição para “para se deter diante das coisas, colocando-se dentro delas” (Riedel, 1962, p. I). Ao tocar na questão da “multiplicidade dos ruídos do sertão” (Riedel, 1962, p. 48), Riedel evocou a relação ordenadora que une o evento ruidoso e a música. A obra de Guimarães Rosa, sendo um cosmo ordenado, absorve o ruído e o faz soar como música? O que é o ruído? Seria a “submúsica” (Rosa, 1969, p. 84) mencionada por Rosa em Buriti? Diz a autora que “as imagens suscitadas pelos ruídos ambientes constroem o fundo permanente na narrativa, sustentando a atmosfera sonora do sertão” (Riedel, 1962, p. 72). José Miguel Wisnik, em O Som e o Sentido, afirma que a noção de ruído varia de acordo com o contexto em que este ocorre. As teorias da informação, que lidam com categorias como mensagem, sinal, emissão e recepção, por sua vez, veem o ruído como um elemento desordenador. Se tomado pela ótica da instrumentalidade, é exemplo de uma interferência indesejável, algo que impede o fluxo da comunicação. A arte musical, que o recalcou durante séculos, tornou a acolhê-lo no século XX.

Há na essência do ruído uma duplicidade. Ela sugere o trânsito entre a deformidade caótica e a ordem cósmica. “O jogo entre som e ruído constitui a música. O som do mundo é ruído, o mundo se apresenta para nós a todo momento através de frequências irregulares e caóticas com as quais a música trabalha para extrair-lhes uma ordenação” (Wisnik, 2000, p. 30), afirma Wisnik. O reconhecimento de uma ordem entre os ruídos do mundo é a base constitutiva para a formação das sociedades. No mundo arcaico, onde se assumia a constante luta com as forças caóticas, foi sempre a experiência do sagrado que regeu a possibilidade de uma ordenação cósmica. Observa-se que, nos povos da Antiguidade, a música, ao desafiar o caos, se impunha como matriz constituinte de suas cosmogonias. Daí pode-se afirmar, ao inverter a frase, que todas as cosmogonias originárias são fundadas pela música. Wisnik aponta que, através da indiferenciação da dor e da alegria na música que é tida como primitiva, o ruído se mostra indivisível em sua musicalidade. Na captação telúrica dos sons – irradiadores de elementares fluxos de energia – é que nasce a força geradora da ordem do mundo, ordem fundada nos rituais sagrados em que os sons se metamorfoseiam nas vozes das deidades.

Apoiando-se no pensamento do musicólogo Marius Schneider, Wisnik relembra os mitos da concepção do mundo e observa que neles está sempre embutida uma voz primordial: “O deus profere o mundo através do sopro ou do trovão, da chuva ou do vento, do sino ou da flauta, ou da oralidade em todas as suas possibilidades (sussurro, balbucio, espirro, grito, gemido, soluço, vômito)” (Wisnik, 2000, p. 34). As emanações sonoras originárias vêm sempre de um vazio, um nada, um não-ser inominável. Citado por Wisnik, Schneider afirma que esse principiar é como “um fundo de ressonância, e o som que dele emana deve ser considerado a primeira força criadora, personificada na maior parte das mitologias por deuses-cantores” (Schneider, apud Wisnik, 2000, p. 34).

Octavio Paz, ao lembrar que toda criação humana está fundada no ritmo, escreveu: “Todas as concepções cosmológicas do homem brotam da intuição de um ritmo original” (Paz, 1982, p. 72). Segundo ele, o tempo é encarnado pelo verbo e se mostra nas realizações humanas, regidas poeticamente. “A frase poética é tempo vivo, concreto – é ritmo, tempo original, perpetuamente se recriando. Contínuo renascer e tornar a morrer e renascer de novo” (Paz, 1982, p. 80-81), afirmou o escritor. O ritmo, elemento primordial da música, perpassa e engendra toda e qualquer produção poética. Para Paz, o poeta é um mago que, por intermédio do ritmo, encanta a linguagem. Escreveu ele: “no fundo de todo fenômeno verbal há um ritmo. As palavras se juntam e se separam atendendo a certos princípios rítmicos. Se a linguagem é um contínuo vaivém de frases e associações verbais regido por um ritmo secreto, a reprodução desse ritmo nos dará poder sobre as palavras” (Paz, 1982, p. 64).

Em toda a narrativa do Corpo de Baile vê-se o entrelaçamento rítmico de sons, sejam musicais ou ruidosos. No percurso do conto O Recado do Morro, além da teia de diálogos entre os personagens principais e periféricos, da canção de Laudelim Pulgapé e dos sons musicais emitidos pelos homens em torno da preparação de seus festejos, acontecem em simultaneidade diversos sons da natureza em sua dinâmica movente. O conto de Rosa, afora a trama de vida e morte protagonizada por Pedro Orósio e cantada por Laudelim, possui variados elementos sonoros que ecoam livremente, criando uma atmosfera própria que envolve os personagens. Esses elementos evidenciam ainda mais que na obra rosiana há um parentesco vital entre a arte de contar histórias e a arte musical. O escritor, além disso, articula uma armação sinfônica peculiar que dialoga com o universo humano da narrativa. Os sons são constituintes de um operar musical da obra em que seu cantador, Laudelim Pulgapé, é o principal solista.

Atuando junto à narração como contraponto ou efeitos, não faltam simples exemplos dessas sonoridades. Há sons como as “redondas chuvas ácidas, de grande diâmetro, chuvas cavadoras, recalcantes, que caem fumegando com vapor e empurram enxurradas mãos de rios, se engolfam descendo por fios de furnas, antros e grotas, com tardo gôrgolo musical” (Rosa, 1965, p. 6). Há também a passarada, os papagaios que gritam, o gavião que gutura, “os sofrês cantando claro em bando nas palmas da palmeira” (Rosa, 1965, p. 9) e “o pipio seriado da codorna” (Rosa, 1965, p. 36). “Da gameleira o passarim, superlim. E, longe, piava outro passarinho – um sem nome que se saiba – o que canta a toda hora do dia, nas árvores do ribeirão: – ‘Toma-a-benção-ao-seu-ti-í-o, João!...’” (Rosa, 1965, p. 22). Neste trecho, especificamente, a articulação de sentido do canto dessa ave rara e anônima segue o mesmo processo de composição que nomeou um pássaro bem conhecido, o conhecidíssimo bem-te-vi. Poder que preside toda criação poética, o de acasalar som e palavra.

O Dicionário Groove de Música relata que, originariamente, para a produção de efeitos melódicos na voz ou em instrumentos musicais, o modelo imitativo era “o canto dos pássaros e outros sons animais, bem como o choro e as brincadeiras infantis” (Sadie, 1994, p. 592). Na escrita de Rosa, a melodia da palavra pode ser tanto ouvida em sons involuntários como o “bilo-bilo” (Rosa, 1965, p. 7) do riachinho, motivo recorrente em sua obra, quanto nos sons produzidos pelo homem, donde se ouve “um carro-de-bois, cantando muito bonito, grosso – devia de estar com a roda bem apertada” (Rosa, 1965, p. 36). Melodia que também se encontra no som dos aboios, ouvido pela vaqueirama: “O gado entendia, punha orelhas para o aboio, olhavam, às vezes hesitavam” (Rosa, 1965, p. 147). E na música propriamente dita, mesmo que na entonação estranha de Seo Alquiste e Frei Sinfrão, que juntos “cantavam cantigas com rompante, na língua de outras terras, que não se entendia” (Rosa, 1965, p. 25).

A escrita de Rosa é a escuta de uma complexa paisagem sonora. Há nas suas palavras uma gama de sons que se encontra em uma cadência musical espontânea. A ordem dos sons acontece como uma cosmofonia, um formar-se sonoro que se apresenta aos sentidos do leitor. Cabe interpretá-lo conforme suas possibilidades. A ação na obra de Rosa se dá em grande parte fundada como oralidade. Rosa permanece atado ao relato e à preservação do verbo ancestral. Sua prosa poética tem fortes raízes na música trabalhada pelos poetas e cantadores do sertão. O mundo se faz mundo através de sua musicalidade. Guimarães Rosa é um escritor que presta especial homenagem à fecundidade do mundo auditivo.

No conto O Recado do Morro, a arte de Laudelim Pulgapé e o evento da festa contribuem lado a lado para compor seu universo sonoro. Rosa traz para o interior de sua narrativa uma série de elementos da cultura popular, situando-os no contexto em que os personagens se movem. Festa, que é nome de uma das nove musas da Teogonia, de Hesíodo, no Corpo de Baile é um evento que demarca a ação do tempo em O recado do morro, sendo também o eixo da narrativa de Uma estória de amor e a apoteose teatral que envolve os personagens de A estória de Lélio e Lina. Alegria da palavra! (Rosa, 1965, p. 42). A festinha a ser realizada domingo no Azevre rendia preparações. Via-se “nas cafuas, perto das estradas, em casas quase de cada negro se ensaiava, tocando caixas, com grande ribombo” (Rosa, 1965, p. 43), “era aquele guararape brabo: rufando as caixas, baqueando na zabumba” (Rosa, 1965, p. 50). “Os dos ranchos: os moçambiqueiros, de penacho e com balainhos e guizos prendidos nas pernas; grupos congos em cetim branco e faixa, só faltando os mais adornos; e a rapaziada nova, com uniforme da guarda-marinheira” (Rosa, 1965, p. 50). Luís da Câmara Cascudo, para descrever os ranchos, citou as palavras do também etnólogo Nina Rodrigues: “O Rancho prima pela variedade de vestimentas vistosas, ouropéis e lantejoulas, a sua música é o violão, a viola, o cavaquinho, o ganzá, o prato e às vezes uma flauta; cantam os seus pastores e pastoras, por toda a rua, chulas próprias da ocasião” (Rodrigues, apud Cascudo, 1972, p. 767). Havia no Azevre o pessoal do Mascamole e do Tu, “chefes, tribuzando no tambor: tarapatão, tarapatão, barabão, barabão!...” (Rosa, 1965, p. 51). Também, em festa, na narrativa rosiana “vinham passando uns vinte sujeitos, todos compostos nos trajes brancos e com os capacetes – era a Guarda Marinheira – amanhã haviam de dançar e cantar, rendendo todas as cortesias à Nossa Senhora do Pretos” (Rosa, 1965, p. 56).

Por sua vez, no conto Cara-de-Bronze são muitos os diálogos entre os personagens. Centrado na poesia, o enredo convive com uma musicalidade peculiar. Enquanto da varanda da casa se ouve o cantador João Fulano, entretido no toque de sua viola e na elaboração precisa de seus versos, ali perto, nos arredores da fazenda do velho Cara-de-Bronze, ecoam sons como os latidos dos “cães imemoriais” (Rosa, 1965, p. 97). A escuta recai ao fundo, onde se dão os aboios e os gritos dos vaqueiros nas apartações do gado e as chuvas seguidas de intensos trovões, tão pertinentes nessas terras. “Chuvisca, com rumorejo de fritura. Soam sempre os berrantes, seu uuu trestreme” (Rosa, 1965, p. 91), comenta o narrador. “Touros, de curral para curral, arruam o berro tossido, de u-hu-hã, de desafio” (Rosa, 1965, p. 92), e realçam o som em off do roteiro cinematográfico em que a narrativa se transforma.

Pássaros canoros, por sua vez, são listados no conto em uma nota de pé de página. São as “qualidades de aves do céu e passarinhim que pia e canta” (Rosa, 1965, p. 113). Entre tantos, as “seriemas gritando e correndo, ou silenciosas” (Rosa, 1965, p. 112) e o canto noturno dos socós. O vaqueiro Grivo, em sua extensa viagem na busca da essência da poesia, abre seus ouvidos e nota com precisão “o daridare das cigarras” (Rosa, 1965, p. 110), canto que se harmoniza com a grande sonoridade orquestral ostentada pelas árvores encontradas no caminho de sua peregrinação. Nomeadas uma a uma, as árvores são, como os melodiosos pássaros, reunidas por Guimarães Rosa em uma longa e sonora nota de pé de página.

Uma pretensa leitura do Corpo de Baile que leve em conta aspectos de sua musicalidade pode dar a dividi-lo em movimentos e interpretá-lo a partir de seus ritmos e andamentos diversos. Na obra até é possível, por um esforço de analogias, reconhecer metaforicamente uma estrutura semelhante às peças musicais constituídas ao longo da história da música ocidental, como sonatas, fugas e mesmo sinfonias. No caso específico do Cara-de-Bronze, sua construção polimórfica tem contornos de uma ópera moderna, onde se misturam diversos elementos de composição, inclusive teatrais e cinematográficos.

Já em A estória de Lélio e Lina (Rosa, 1965), além dos diálogos dos personagens e das cantigas do violeiro e cantador Pernambo, os sons mais presentes ao longo da narrativa são os dos animais, principalmente o rumorejar melodioso dos pássaros. São muitos os exemplos:

(...) o curiango cantava, mais cedo e mais rouco, como na entrada-das-águas ele gosta de cantar: – Amanhã eu vou... Amanhã eu vou... E trovejava repetido, no longe da serra do Soldãe (p. 134);

A animalada era sã de mansa: compreendiam espertamente os grandes sons em a, e alguns já aplaudiam pés no chão, querendo vir ao curral (p. 142);

Passarinhos em desarripio cantavam nas moitas e árvores (p. 143);

(...) as araras mandavam e ralhavam, onde queriam, toda a parte (p. 145);

Um cachorro latia, com sotaque humano. Passarinho cantava, o canto de chama: no que diz, desdiz... (p. 178);

(...) só se ouvia o pio dos sabiás-de-peito-alaranjado (p. 194);

(...) faltava nada para as saracuras cantarem. Os passarinhos refinavam. Com esses mil gritos, as maitacas, as araras, os papagaios se cruzavam (p. 245).

Os elementos sonoros podem ser fartamente demonstrados na prosa poética de Guimarães Rosa. Há música nas suas palavras. Mas o que é a música? Sua etimologia leva aos antigos gregos e seus mitos. A música que vem das musas, deusas que se fazem nas palavras cantadas dos poetas. Fundadores das palavras, os poetas músicos são os primeiros e grandes nomeadores. Falar da obra de Guimarães Rosa é falar dos nomes e desse poder de nomear.

Uma poética da musicalidade se dá originariamente a partir das musas. Na consagração dessas divindades, música e poesia lançam o homem na concreta possibilidade de realizar-se na melodia e no ritmo de uma harmonia cósmica. Com seu apostolado, restitui-se a fé arcaica e pré-reflexiva de que a fonte de toda linguagem é musical. Vive-se no limiar de experiências criativas e fabulosas. No corpo de um baile que acontece em sua totalidade realizadora entre terra e céu, mortais e imortais. Um dos grandes ensinamentos de Corpo de Baile é o acatamento festivo de que a existência se faz de acordo com o fluir de sua ressonância vital.

O hermeneuta Hans-Georg Gadamer afirma que a experiência da festa é sempre para todos. Dessa forma, festejar se determina pela reunião. Reunir-se na comemoração de algo. Esse ato comemorativo engloba certos costumes tradicionais que conduzem sempre a um retorno às origens das ações coletivas. A ordem temporal comunitária das festas vem a partir desse comungar de ações. O tempo abandona o caráter sucessivo que o cinde e se torna cíclico. Ao livrar-se da tirania do indivíduo, o tempo de uma festa se distingue radicalmente do que jaz na objetividade cotidiana. Deixa de ser tanto o tempo de uma pobre monotonia quanto o de um preenchimento excessivo, dimensões comumente aferidas pelos limites das individualidades. Gadamer mostra a identidade que há entre o corte temporal da festa e a experiência da obra de arte. A celebração, “pela sua própria festividade, dá o tempo, e com a sua festividade faz parar o tempo e leva-o a demorar-se – isto é o festejar” (Gadamer, 1985, p. 65). O mesmo acontece com o tempo das obras de arte, tempo que, nas palavras do autor, “deixa-se descrever muito bem com a experiência do ritmo” (Gadamer, 1985, p. 63). Para o pensador, é essa a experiência que unifica homem e obra de arte. Se, por um lado, há o ritmo interno do homem em sua intimidade existencial, por outro haverá o ritmo da obra, que se resume em seu tempo mais próprio de ser. Demorar-se na obra é que permitirá ao homem penetrar em seu universo particular, podendo deter-se em uma correspondência rítmica ao celebrá-la em seu tempo infinito.

Não é por acaso que Rosa, autor de obras tão celebradas e festejadas, finda a fabulosa narrativa de Grande Sertão: Veredas com uma lemniscata, sinal que simboliza o infinito. Confessou Rosa a Lorenz: “Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço de infinito. Vivo no infinito; o momento não conta” (Rosa, apud Lorenz, 1983, p. 72).

BIBLIOGRAFIA

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 1972.
GADAMER, Hans-Georg. A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa. Tradução de Celeste Aída Galvão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985.
LORENZ, gunter. Diálogo com Guimarães Rosa (Coleção Fortuna Crítica). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/Pró-Memória – Instituto Nacional do Livro, 1983.
PAZ, Octavio. O arco e a lira. Tradução de Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
ROSA, João Guimarães. Noites do sertão (Corpo de baile). 4ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969.
__________. No Urubuqùaquá, no Pinhém (Corpo de baile). 3ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965.
RIEDEL, Dirce. O mundo sonoro de Guimarães Rosa. Tese para concurso à cátedra de Português e Literatura do Curso Normal do Instituto de Educação do Estado da Guanabara. 1962.
SADIE, Stanley. Dicionário Groove de Música (edição concisa). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Mais sobre André Vinícius Pessôa:

Publicado em 20 de maio de 2008

Publicado em 20 de maio de 2008

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.