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A pós-escravidão brasileira na era da globalização

Prof. Dr. Eduardo Marques da Silva

O choque de modelos políticos-sociais na América Latina se agrava

Faz-se necessário impor um detido olhar para o mundo, em especial para o final do século XIX, em que fervilharam novidades, invenções e mudanças econômicas e tecnológicas, algumas inclusive que se proliferaram pelo ‘século do não’ (o século XX). Enquanto o Brasil se arrastava com um escravismo retrógrado, com a mão-de-obra obrigatoriamente submetida ao trabalho compulsório – prática absolutamente dissonante do que havia de evolução nas práticas capitalistas mundiais –, a dança do avesso/anverso evoluía em seus largos passos por aqui. A Lei das Ferrovias, de 1844, era o inicio dos reflexos dos novos tempos no mundo. Por aqui as locomotivas causaram verdadeiro impacto.

No começo da década, as leis focavam monopólios naturais, faltando-lhes ainda regulamentação para tudo. Willian Ewart Gladstone entrou com novas ideias sobre a elaboração de uma nova legislação e obteve várias opiniões diferentes. O banqueiro londrino George Carr Glyn, presidente da London and Birmingham Railway, falava que iria ocorrer depreciação da propriedade das ferrovias caso não houvesse a elaboração de uma nova legislação. Outro banqueiro, Hudson, dizia que essa regulamentação seria prejudicial para a propriedade privada – e foi o que prevaleceu. A Lei das Ferrovias, o Raiway Act, criou um Departamento de Ferrovias para examinar as novas linhas, mas o Parlamento não era obrigado a obedecer ao Departamento, dificultando mais. Gladstone aumentou o depósito para novos projetos, na esperança de abalar as especulações, mas renunciou, pois não conseguiu evitá-las. Em 1845, como foram projetadas e registradas muitas ferrovias, havia um momento favorável economicamente. Os jornais, principalmente os ferroviários, incentivavam as pessoas a fazer subscrições.

Como sabemos, quando tem sucesso toda inovação deixa de lado a especulação e dá lugar ao investimento. Todos os tipos de novidades chamavam a atenção dos especuladores. A partir do final do século XVIII, surgiram inovações também na área da comunicação, produzindo efeitos que até hoje vigoram. Primeiramente foram os canais, logo depois os automóveis, o rádio e muitos outros inventos surpreendentes.

Os canais geravam grandes retornos, elevando o preço das ações, dando novo impulso ao capitalismo. Voltando um pouco no tempo, nos anos 1790 a especulação surgiu e mais de cinquenta leis aprovaram a construção deles. Era uma verdadeira onda de canais que acabou por preceder à crise comercial de 1793, a qual teria começado pelas guerras revolucionárias francesas e a diminuição do comércio internacional na Europa. A motivação para a criação de novas linhas de comércio enfraqueceu, as ações despencaram. Os canais beneficiavam o transporte e representavam mudança no cotidiano das pessoas no mundo europeu. Locomoção com rapidez, transporte e movimento maior de pessoas passou a ser significativo.

Por questões de mercado, muitos embates aconteciam, principalmente de proprietários de canais opondo-se às ferrovias. Em 1825, surgiu a primeira febre das ferrovias, sanada com a crise econômica da época. Em 1831, a segunda febre gerou grande especulação, pois abrangia as obrigações espanholas e até os bancos de fundo acionário. Os donos de terra, proprietários de canais, que ficaram obviamente contra a construção de ferrovias, passaram a não ser mais de oposição, pois as terras adjacentes às linhas ferroviárias ficavam valorizadas.

Mudanças do global e suas influências

O rei das ferrovias, George Hudson, de Yorkshire, presidente das empresas ferroviárias York and North Midland Railways, foi um que soube aproveitar bem a onda. Criou novas linhas e novos ramais, comprou algumas companhias já existentes. No início do ano de 1845, todos os novos esquemas de ferrovias renderam lucros para os railways stags (ou veados das ferrovias, como eram chamados). Assinavam os documentos de subscrição na esperança de vender script com ágio no mercado, inclusive. Para o Times, os especuladores eram mais ingênuos que os cínicos, pois não estavam interessados no futuro das ferrovias e sim no presente; quer dizer, queriam ter lucros extraordinariamente velozes. O jogo do capital no capitalismo se mostrava de maneira diferenciada e surpreendente, alterando sempre as regras, inclusive as próprias. Vários jornais tentavam alertar para o fato de que o nível de capital para financiar a ampliação das linhas ferroviárias era insustentável. Essa mania de ferrovias se expandia e crescia desordenadamente. Era a Revolução Ferroviária da década de 1840, que, com o correr do tempo, faria soterrar por definitivo o trabalho escravo pelo mundo afora, com velhas e tristonhas exceções.

A Revolução Industrial, apesar de ter sido um grande salto em termos de oportunidade econômica, também gerou conflitos entre os incluídos e os excluídos dos benefícios dessa oportunidade; essa é uma das razões para insistirmos em abordá-los na realidade brasileira. Esses conflitos, somados a outros agravantes, manifestaram-se de modo extremado através da guerra e da destruição de pessoas e propriedades. Como as duas guerras mundiais não conseguiram solucionar essas questões, houve repetição desses conflitos na ordem/desordem internacional, que era repleta de pequenas guerras que pululavam pelo mundo afora, expressando sempre uns poucos candidatos à liderança e à redenção do mundo.

O período forte de guerras, de 1914 a 1918 e de 1930 a 1945, teve dois principais efeitos duradouros: a arrancada do Tio Sam, que praticamente dobrou a produção de suas manufaturas entre 1913 e 1925, enquanto a da Europa permaneceu, diríamos, inalterada; portanto, foram os efeitos da primeira crise que se multiplicaram num suceder cíclico. Tudo porque os norte-americanos foram poupados dos estragos financeiros e materiais e prosseguiram na exploração do potencial de crescimento demográfico, disponibilidade de terras, competência técnica e energia empreendedora.

Havia vários fatores favoráveis. Aqui no Brasil, entretanto, amargava-se um modelo de produção ainda bastante retrógrado, com uma pós-escravidão em que o preto, mal resolvido social e socioculturalmente, ficava à deriva social.

Da passagem do século XIX até 1945, o mundo assistiu ao aniquilamento completo e irreversível da economia internacional do século XIX, baseada no livre comércio e no padrão-ouro. Isso era sinal de que o sistema já vinha sendo pressionado pelo avanço do protecionismo seguido do nacionalismo econômico de tonalidades variadas, expressas pelas novas potências: EUA, Alemanha e Japão. Muitos acreditavam que só uma guerra mundial conseguiria impor a suspensão do padrão-ouro e acabar com os decantados e desejados preceitos de estabilidade macroeconômica, com governos tentando financiar seus déficits, e destruir para sempre os padrões comerciais estabelecidos pela versão britânica do livre comércio.

As mudanças foram fantásticas. Em 1917, após sete meses de governo praticamente parlamentarista, a Revolução Russa tira violentamente o poder das mãos da dinastia absolutista dos Romanov, transferindo-o para os bolcheviques, acontecimento que teve como inspiração a proposta de transformar revolucionariamente a economia e a sociedade através da chamada ditadura do proletariado, visando o comunismo, que pregava um Estado societário em que cada indivíduo seria suprido de acordo com suas necessidades e contribuiria de acordo com sua capacidade; toda propriedade seria de posse da coletividade e todos seriam iguais numa sociedade sem classes, como vaticinara Karl Marx.

Os bolcheviques acreditavam que assim acabariam com as injustiças sociais existentes no capitalismo, que, segundo eles, estava indo em direção a um colapso. O susto foi muito grande. Mas iniciava-se o que chamamos de ‘século do não’, e no nosso país se instalava o que chamamos avesso/anverso.

Após 1929, com a crise econômica mundial, países e nações abalados e certos governos, principalmente latino-americanos, buscaram endurecer seus regimes ou se tornaram absolutamente interventores (Estado autoritário na economia). Uns chegaram ao extremo de se apresentar como segregacionistas, como a política nazista dos alemães contra os judeus, transferindo-lhes a culpa pelos insucessos econômicos.

Tratava-se de uma “fatia da burguesia capitalista fracassada” e excludente, por isso mesmo segregacionista, que liderava e/ou havia passado a liderar, que buscava arranjar culpado para tudo aquilo que passava a nação. O “discurso racista” coube-lhe oportunamente.

Os países de economia recém-liberta do “velho colonialismo”, portanto apresentando perfil de “economia periférica”, buscaram justificar a “mímica” que faziam de governos europeus, apelando para ditaduras – algumas militares, outras caudilhescas –, modismo do ato de governar por conta disso também e de trágicas consequências. O exemplo do nazifascismo alemão e italiano foi usado de forma pouco diferenciada nos países latino-americanos e naqueles da Europa onde estava o foco central do modismo, abalados pelos impactos socioeconômicos da “crise econômica mundial”.

A palavra de ordem era “intervenção na economia liberal”, apoiada sempre em uma desesperada classe média e nos trabalhadores urbanos com baixo poder de compra, setor de consumo da economia capitalista que via reduzido drasticamente seu poder de consumo e que politicamente os apoiava, transferindo a culpa aos menos favorecidos e à grande fatia de trabalhadores assalariados pauperizados. Alguns governos chegaram a se denominar “socialistas”, como o nacional-socialismo alemão, mas o porte governamental era claramente marcado pelo “velho modelo de capital monopolista-imperialista e expansionista” com vistas à conquista de novos mercados consumidores, principalmente em áreas da futuramente chamada “economia periférica” ou tornadas assim pela crise, inclusive dentro do continente europeu.

O resultado foi o conflito internacional, pois muitos já se apresentavam como mercado consumidor de velhas potências imperialistas que não se sentiram confortáveis com a violenta política de anexações implantada por Alemanha e Itália.

No capitalismo caubói, ocorreu o encontro dos delegados das potências aliadas no Mount Washington Hotel, em Bretton Woods, e Michael Milken, em 1944; em vez de reviverem o padrão-ouro, concordaram que as moedas dos países deveriam ser fixadas em relação ao dólar, sendo este então conversível em ouro a trinta e cinco dólares a onça. Porém, para obter êxito, o novo sistema dependia do controle da movimentação de capitais entre os países; esse controle foi marcado por um comportamento de profunda antipatia dos especuladores da época. Com isso, a liberdade do capitalista especulador seria severamente diminuída pelo sistema, que chegou ao ponto de abrir correspondências para deter os fluxos indesejados de moeda. Era vigilância absoluta, pois o momento exigia cuidados; afinal, vivia-se uma crise de dimensões gigantescas no espectro que se apresentava.

Brincar com a coisa poderia ser trágico; não se podia facilitar. Aqui no Brasil, começávamos a vivenciar a fase do primeiro e agudo momento de impacto econômico nacional, com todas as contradições e complexidades que trazíamos de herança pós-escravista (D’Intignano, 1999; Cooper, Holt, Scott, 2005; Quijano, 1978; Alencastro, 1988), eivada de práticas ferozes de exclusões sociais e socioculturais, multiplicando-se uma febre de corpos socioculturais autônomos também reunidos em suas corporificações socioculturais autônomas, em que se abrigavam todos os que habitavam o espaço da exclusão social (Forrester, 1997; Pereira, 1971; Foracchi, s/d), local onde se encontravam muitos dos pretos que haviam saído da escravidão.

A oligarquia cafeicultora dissidente se juntou aos tenentes, que representavam a pequena classe média; realizaram juntos a Revolução de 1930. Caiu Washington Luís, por não permitir que o governo federal comprasse o café não exportado em função da crise. Ele foi denominado, nesse episódio, por motivos econômicos, general café. Era o final da República Velha, chegando ao regime de força do presidente Getúlio Vargas. O problema estava em que, além de o perfil de nossa sociedade trazer mazelas do velho regime de trabalho, ele não conseguiria se adequar rapidamente ao novo que se exigia para a época.

Com a crise da estagflação de 1929 na Argentina, no período em que o presidente era Irigoyen, representante da classe média e dos trabalhadores urbanos (contrários à tradicional oligarquia agrária do gado e do trigo), fez-se um bloqueio às exportações e ao impositivo declínio dos preços. O governo do general José F. Uriburo, que representava o interesse dos ruralistas e derrubou Irigoyen em 1930, propôs ao país um sistema corporativista, copiando a Itália de Mussolini. Depois dele, o general Agustín Justo, eleito pelo voto direto, garantiu a predominância dos conservadores, num governo conhecido como “de concordância”; foi de 8 de setembro de 1931 a 1943; mas o humilhante convênio assinado com a Inglaterra em 1932, conhecido por Roca-Runcioman, reduziu as tarifas sobre as mercadorias do país europeu aos valores de 1930; de sua parte, aquele país obrigava-se a não reduzir as importações de carne argentina.

No México, com a crise de 1929, recrudesceu o rigor da Revolução. Surgiram muitas organizações políticas e sindicais de massas reivindicando leis trabalhistas, jornada de trabalho de oito horas, salários mínimos, direito de greve e arbitragem obrigatória dos dissídios de patrões e empregados. Em julho de 1931, houve a adoção do padrão-ouro, com o abandono da prata. Em dezembro de 1933, o governo Calles optou pela elaboração de um plano sexenal, mas foi Cárdenas que o colocou em prática em 1935, com a socialização das indústrias e a distribuição de terras aos agricultores. Ele criou a Pemex – Petróleos Mexicanos em março de 1938, com a expulsão das empresas estrangeiras. Constituiu-se assim, um Estado intervencionista, semelhante ao New Deal dos EUA, contrapondo-se ao liberalismo smithiano.

Voltando ao panorama mundial: no início de 1946, depois que o mercado futuro de grãos foi limitado pela escassez, o presidente dos Estados Unidos, Henry Truman, disse que os preços dos grãos não deviam estar sujeitos à cobiça dos especuladores, acusando-os de mercadejar a miséria humana, o que resultou numa manifestação da Inglaterra, dizendo que “seriam os especuladores em ações que queremos atingir: aquelas pessoas cujo negócio é comprar e vender ações não com o objetivo de mantê-las por suas propriedades produtoras de renda, mas para viver do lucro que obtém com transações”.

Contudo, os especuladores tornaram-se um bode expiatório conveniente para o fracasso político, desintegrando os sistemas monetários formais feitos pelos governos. Getúlio Vargas e Hitler – de quem o brasileiro reproduzia a postura política no poder, guardando os devidos exageros, certas mímicas já muito analisadas pela historiografia moderna – culpavam os especuladores pela inflação e pela deflação. Lênin e Stálin, pelo lado soviético, chegavam a amaldiçoá-los pelas tributações econômicas impingidas à URSS de então. O mundo reagia ferozmente a tudo, cada um à sua maneira e orientação. Aqui amargávamos uma pós-escravidão lenta e pesada, pois os oriundos dela não dimensionavam sequer a continuação e o espectro de desgraça que portávamos e continuaríamos a portar por muito tempo.

Durante a passagem da Crise de Suez, em 1956, os especuladores fizeram com que o governo inglês desvalorizasse a libra esterlina, então moeda-pólo no jogo do capital. Após quatro anos, o presidente norte-americano suspendeu a conversibilidade do dólar em ouro. Com isso, punha fim ao sistema de Bretton Woods, condenando os especuladores que prosperavam nas crises (Henderson, 2003).

Os choques políticos contra os especuladores duraram vários anos. Em setembro de 1992, a Grã-Bretanha foi forçada mais uma vez a desvalorizar sua moeda e abandonar o mecanismo da taxa cambial. Na Crise Asiática de 1997, o governo da Malásia afirmou que por trás dos especuladores havia um grande projeto judeu e ameaçou tratar a especulação como um crime grave. Era uma fase complexa do jogo do capital, que não desejava deixar alguém sem culpa por tudo. A guerra aos especuladores resultou em uma mudança de atitude em relação à maneira de ganhar dinheiro, segundo Keynes; um mundo de prosperidade tornaria o lucro extinto, mas a mudança ocorreu no alicerce filosófico da época; era uma mudança de estilos do homem de negócios, acompanhada por uma mudança nas prioridades das empresas. A busca individual da riqueza fora substituída por um ideal empresarial, mudança que já era vista na década de 1950. Heilbroner dizia então que a acumulação adicional de riqueza, no futuro próximo, poderia gerar uma nova motivação econômica para substituir a "mão invisível de Adam Smith” no caminhar do pensamento liberal.

Friedman, junto com o outro economista, formou uma nova linha de pensamento econômico, conhecida como Hipótese do Mercado Eficiente (HME), contribuindo para o ressurgimento do liberalismo econômico novamente. Os defensores do HME ressuscitavam ideias sobre equilíbrio nos mercados financeiros que remontavam à assimilação, por Adam Smith, da teoria newtoniana do equilíbrio; era o velho liberalismo, que vaticinava o laissez faire configurando-se analogamente ao relojoeiro divino e ao conceito de imanência da racionalidade no mundo, como afirmava Leibniz.

Assim, nos anos 1970, o HME contaminou as universidades e faculdades norte-americanas, enquanto bancos e empresas começaram a aplicar técnicas financeiras baseadas em suas suposições. Ao final da década, essa hipótese se tornara a ideologia prática do capitalismo financeiro. Era uma nova roupagem para o capitalismo que se transmutava novamente, mostrando que era um jogo do capital em que as regras poderiam variar ao sabor do momento, do mercado; enfim, do jogo.

Os adeptos do novo modelo, que fazia referência aos economistas do mercado eficiente, tinham grande simpatia pelos especuladores. Ora, se os mercados eram eficientes e estavam em constante equilíbrio, e se os preços eram sempre aleatórios, as atividades dos especuladores não podiam ser irracionais em sua motivação nem desestabilizadoras em seus efeitos, levando à negação da existência de bolhas irracionais, substituindo-as pela tendenciosa noção de bolha racional. Friedman descartava, assim, a ideia de que o excesso especulativo causara o colapso econômico de 1930. Mas nem todos ficariam convencidos; Warren Buffett trouxe a desconfiança dizendo que o mercado era frequentemente eficiente. Havia grande rebuliço no (re)arranjo da economia da época, o que acabou por fazer aqui uma configuração social e sociocultural diferente, crioula, extremamente novidadeira, mas que mimetizava prioritariamente o que vinha de fora. Faz-se urgente, então, ler com verossimilhança máxima a história desse período e seus intrincados mundos ou corpos socioculturais autônomos que se multiplicavam no conjunto de relacionamentos, tanto no campo do localismo global quanto no do globalismo local, como alertou a professora Luiza Cortezão (2003) e está refletido hoje em um Rio dos vários Brasis (Lessa, 2003).

A revolução dos derivativos na fase da globalização: escândalos como falhas administrativas irrelevantes?!

Essa nova era do papel-moeda, de liberalismo econômico e tecnologia da informação, mais notada principalmente na esfera dos derivativos financeiros, gerou uma riqueza de criatividade financeira tão ampla e abrangente quanto a da Revolução Financeira, na virada do século XVIII.

Na forma de contratos futuros e opções sobre ações e commodities, os derivativos são tão antigos quanto o próprio capitalismo. Eles tinham os preços reduzidos; a aquisição era mais fácil do que a de uma ação real, em que o valor teria que ser totalmente coberto. Assim, acreditava-se que daria margem mais que suficiente para o especulador agir. Contudo, os governos tentaram proibir as transações com derivativos a partir de 1734. Na nova era de liberalismo econômico, o velho estigma fora removido e os derivativos emergiram na linha de frente da inovação das práticas financeiras do capitalismo.

Em 1967, Friedman tentou apostar na queda da libra esterlina antes da desvalorização forçada pela Grã-Bretanha, mas foi impedido pelos bancos de Chicago, principalmente com a justificativa de que tal comportamento incentivaria a temida especulação. Depois, ele publicaria o relato dessa experiência frustrante.

Após o colapso de Bretton Woods, Friedman, a pedido de Mellamed, publicou um artigo no qual justificava a criação de um mercado futuro, afirmando que os contratos futuros para moedas teriam um efeito estabilizador sobre as taxas de câmbio e impulsionariam o desenvolvimento de futuras atividades financeiras nesse país. Com esse artigo, concretizou-se o estabelecimento do Internacional Monetary Market na Merc, inaugurado em 1972.

A Revolução Financeira começava então sua trajetória novidadeira no ‘século do não’. Em menos de um ano foi aberta uma bolsa de valores em Chicago. Assim as portas abriam-se para outros mercados de derivativos nesse período, entre eles o de contratos futuros de ouro e o de futuros da Government National Mortgage Association, em 1975; o de futuro de obrigações do Tesouro, em 1976; o de futuros de petróleo bruto, em 1997; e o de opções de moedas, em 1982. Como vemos, era avassalador o processo de mudança. Toda a revolução financeira ganhava força, inclusive adicional, no início dos 1980, quando Sidney Homer, então especialista em obrigações, teve a ideia de separar as obrigações de seus dividendos e vender os dois mobiliários separadamente. Essa divisão permitiu que os bancos transformassem diversos ativos, antes sem liquidez, em papéis negociáveis, ou seja, fazer securitização. Rapidamente a ideia foi aplicada ao gigantesco mercado de hipotecas garantidas pelo governo americano, nos quais os juros e os pagamentos do principal eram divididos e negociados como obrigações separadas.

Na década de 1980, novos produtos financeiros foram criados: em 1981, o Salomon Brothers organizou o primeiro swap, que é a troca de dívidas entre o Banco Mundial e a IBM. A inovação financeira prosseguiu, com uma multidão de novos instrumentos financeiros considerando Londres como uma fonte de criatividade nesses instrumentos. Tratava-se de algo engenhoso e significativo no período, pois eram operações vitais para o sustento do capitalismo e de seu jogo.

Na época, as opiniões diferiam quanto à questão de a proliferação de novos instrumentos financeiros ser capaz de provocar um aumento da especulação; o professor Merton Miller afirmava que os derivativos seriam as matérias-primas essencialmente industriais, criadas para lidar com a incerteza e a volatilidade financeira subsequentes ao fim de Bretton Woods e à Crise do Petróleo de 1974 – que também causou grande impacto econômico. No entanto, se fosse feito um hedge para uma posição em derivativos, teria segurança como se fosse um seguro contra perda; caso contrário, seria altamente especulativa.

Logo, o mercado da década de 1990 sofreria grandes desastres com a prática moderna de derivativos, abrigando prejuízos de mais de US$ 5 milhões em várias empresas, cujas causas foram a má gestão de transações feitas com hedge de boa fé e de especulações sem hedge e não autorizadas. Especuladores tiveram participação, por exemplo, na quebra do banco da rainha, pondo seu administrador na prisão. O professor Miller descartou esses escândalos com derivativos como falhas administrativas irrelevantes.

Assim, só se percebeu todo o potencial da Revolução Financeira quando as condições políticas foram ficando adequadas. A revivida ideologia do livre mercado levou toda a década de 1970 para se propagar das universidades para o mundo político. Friedman teve papel fundamental em todo o processo; em 1960, era consultor dos candidatos a presidência dos EUA. Na década de 1970, teve suas ideias adotadas pela senhora Thatcher, na época líder da oposição conservadora da Grã-Bretanha. Em 1976, Friedman ganhou o Premio Nobel, como economista mais conhecido do mundo. Margaret Thatcher, empossada em abril de 1979, e Ronald Reagan, que havia sido eleito em novembro de 1980, estavam prontos para pôr em pratica a filosofia econômica de Friedman; formava-se então uma união pela não-intervenção do governo nos assuntos econômicos, ou seja, o julgamento de mercado era soberano e se reconhecia definitivamente a imperiosa presença dele como regulador da movimentação e das transações econômicas, enfim, ao abrigo de todo o jogo do capital.

O surgimento e a ascensão do trader na década de 1970 foram marcados pela instabilidade financeira crônica, as moedas flutuantes, a inflação crescente, as políticas econômicas do chamado stop-and-go e taxas de crescimento declinantes, que reduziram uma indesejável volatilidade, que tornou o mercado acionário um lugar extremamente perigoso para os investidores de qualquer área. O boom das cinquenta melhores empresas do ano de 1972, com valor alto demais, teve como consequência um drástico declínio do mercado, com inflação alta e baixocrescimento. As ações não despertaram interesse especulativo do público.

Em janeiro de 1979, após a invasão dos soviéticos ao Afeganistão, o preço do ouro caiu para US$ 875 a onça. A formação do pool da prata e sua acumulação posterior fizeram o valor de mercado desse metal subir dez vezes. Contudo, a intervenção do Federal Reserve lancetou a bolha e o preço da prata tornou a cair em 1980, acarretando prejuízos de mais de US$ 1 bilhão, pondo fim ao pool de prata instalado pelos irmãos Hunt.

Vários fatores institucionais contribuíram para a ascensão do negociador, o profissional da bolsa. Ainda na década de 1970, muitos bancos de investimento dos EUA, incluindo o Morgan Stanley, transformaram-se em companhias de capital aberto. Empresas tiveram acionistas desconhecidos e assumiram responsabilidade maior diante dos acionistas; os lucros foram maximizados de maneira rápida e os gordos dividendos também.

Na década de 1980, os negociadores estavam governando Wall Street. O negociador que também prosperava fora do mundo dos bancos de investimento, com avanços nas comunicações, impeliu o crescimento dos fundos hedge, sociedades privadas de investimento que fugiam da regulamentação. O mais bem-sucedido desses fundos, o Quantum Fonda, criado em 1973 por George Soros, financista originário da Hungria, acabou reduzindo os retornos anuais médios superiores a 25% em relação às suas posições alavancadas em diversos mercados de ações, obrigações e moedas.

Com tudo isso, o negociador constituiu-se num fenômeno internacional. Um produto da desregulamentação e da globalização da economia internacional, pois a coisa se espalhava de maneira virulenta. Não podemos nos esquecer de que os EUA ostentavam uma posição de destaque em tudo. Era inclusive chamado república imperial. Os negociadores introduziram um clima que representava um misto de frenesi com brutalidade no mundo das finanças, pois a velocidade com que as ações corriam fazia com que os investidores mal pudessem almoçar, chegando a dormir três horas por dia; o trabalho árduo, produto da cultura dos traders, acabava por substituir inclusive o lazer. Na era das negociações globais, tanto o dinheiro quanto os que freneticamente o buscavam ficavam acordados vinte quatro horas por dia. Tudo mudava rapidamente, e não havia sequer um desenho de seus resultados imediatos para um mundo globalizado ou globalizando-se.

No Brasil, enquanto o modelo extremamente novidadeiro também no econômico se assentava, assumíamos a sina de acompanhar a carruagem, vivendo verdadeiramente no espectro mimético de tudo, tendo a população – no caso, a elite – atrelada, como se flutuasse em um grandioso nirvana. Saboreava – ou talvez achasse que, saboreando tudo, como um espectador atento, estivesse na realidade dominando. Mas qual!, estávamos mesmo cada vez mais dominados e nem compreendíamos as montanhas à nossa frente – o que se passava então em um mundo absolutamente direcionado e mimetizador dos EUA. A república imperial, Tio Sam, assumia outro papel no mundo que se globalizavarapidamente, com sua traquitana diabólica tornando tudo muito mais veloz.

A população daqui vivia, em sua maioria esmagadora, ao largo de tudo, principalmente pelo fato de grande parte dela não se sentir e nem se ver inserida no desenho do modelosocial que havia por se configurar como corpos socioculturais autônomos do nosso urbano, que careciam, em primeiro lugar, de um trabalho escolar efetivo de inclusão social (Forrester, 1997). Algumas perguntas nos intrigam bastante: poderia o protocidadão preto, oriundo da hedionda escravidão brasileira, entender e participar de tudo? Em meio a tudo isso, ele teria alternativas que não fossem caminhar independentemente? Será que o aparelho administrativo do poder o via? Notava-o em suas contradições socioculturais? O Brasil, como a América Latina, guardando suas particularidades intrínsecas, vivia histórias distintas de um abrir-se para o admirável mundo novo. Mimetizava-se tudo, mas nem por isso se entendia direito. Era o avesso/anverso.

Uma nova ordem mundial

Fatalmente sofreríamos um processo grandioso de acertos e erros para uma plena e definitiva inclusão sociocultural, para o que se anunciava no mundo da globalização que já se fazia notar. As sociedades foram formadas por modelos semelhantes de colonização, mas com diferenças sutis que não se pode deixar de registrar.

Entre o caso latino-americano e o brasileiro podemos notar uma gigantesca diferença de ritmos que denunciava haver atropelos significativos quanto às conquistas e avanços. Não podemos negligenciar tal comparação, principalmente no aspecto jurídico-político, pois apresentava reflexos no plano econômico-social. Um novo império se anunciava: a ordem de um planeta mundializado, talvez uma forma diferenciada de mundialismo.

Michael Hardt e Antonio Negri afirmam que a problemática do império é determinada, em primeiro lugar, pela existência de uma ordem mundial expressa como uma formação jurídica que está em constante desenvolvimento e mudança. O principal objetivo é entender a ordem que está sendo formada hoje, eliminando duas concepções comuns: (a) surge da interação de forças globais heterogêneas e (b) o poder fica concentrado em uma única potência.

A possibilidade de a ordem internacional estar em crise vem impulsionando a criação do império ao longo dos anos. A partir daí, começa a ser formado um novo conceito de ordem global, em que a ONU tem papel fundamental, sendo um novo centro de produção normativa do mundo e desempenhando papel jurídico soberano e de escala global, de forma a compensar a concentração de poderes da globalização, em que os Estados-nações capitalistas exercem domínio imperialista sobre os demais.

O novo conceito de ordem mundial que se formava era apenas o aperfeiçoamento do imperialismo. Foi a transição da lei internacional tradicional (antes definida por tratados e contratos) para a constituição de um novo poder soberano e supranacional. A expressão novo conceito de ordem mundial que se formava era apenas o aperfeiçoamento do que se poderia conceber como o então nomeado imperialismo no jogo do capital, o qual poderia estar trocando a pele. O mundo mudava de forma bombástica diante de nossos olhares petrificados no passado.

Com isso, o Direito internacional sofria mudanças constantes e se aperfeiçoava para tornar-se um conceito de Direito em que a legitimidade dos Estados soberanos fosse ajustada à nova realidade política, econômica e social em que o planeta se colocava.

Mundializava-se tudo à volta, e no Brasil isso não se percebia. Um novo modelo de autoridade imperial surgia na época, fugindo à percepção dos desavisados. O desenvolvimento do capitalismo ocorreu com a paulatina formação de um mercado verdadeiramente mundial, fugindo à percepção dos espectadores mais preocupados; agora a globalização passaria a dar as cartas, inclusive no jogo do capital; era também uma fonte jurídica tendente a projetar uma configuração única e supranacional de poder político. Entretanto, a permanência do antigo paradigma promoveu uma dinâmica de legitimação que conduziu à inexorável ordem do novo paradigma, estabelecido com o poder supranacional. O império não nasceu por vontade própria; foi convocado a nascer e então constituído com base em sua capacidade de resolver conflitos – que inclusive já se faziam sentir pelo mundo afora.

O modelo global de autoridade baseia-se e atende ao positivismo jurídico, que necessita de um poder forte. A Teoria do Direito Natural realça valores de paz e equilíbrio, o que antes requeria maior habilidade jurídico-política-social, pois eram imensas as diferenças nos mundos culturais. O contratualismo, sempre pela formação do consenso, acenava como novidade, mas era extremamente complexo pela variação sociocultural autônoma – tanto no plano global quanto local – com que agora haveria de dialogar efetivamente, sob pena de aprender a viver na mais absoluta exclusão social. O realismo trouxe à tona os processos formativos; estava sendo-nos imposta uma situação que justificava e organizava as vidas funcionalmente modernas, vivas, dinâmicas.

Havia uma fonte inicial e implícita de Direito imperial para o novo mundo que se desenhava então: uma ação policial, a partir da capacidade da polícia de criar e manter a ordem; dos poderes jurídicos, de reinar sobre a exceção; e a capacidade de usar a força policial. Essas eram as coordenadas iniciais do modelo imperial de autoridade.

Também houve mudanças quanto aos valores universais, especialmente quanto ao conceito de Estado-nação. O ponto principal dessa transformação era o desenvolvimento do direito de intervenção em territórios de outros senhores, no interesse de prevenir e/ou resolver problemas humanitários; para isso, surgiu a Organização das Nações Unidas (ONU). Os estados de emergência e de exceção legitimavam o poder de polícia.

Essa definição do desenvolvimento do poder imperial com ciência da polícia, fundamentada na prática da guerra justa, pode estar correta; porém acreditamos que esteja incompleta. Essa formação jurídica já atinge todos nós. Participamos ativamente desse mundo globalizado em que vivemos. Nossa moral interna tende a ser determinada pelas categorias e éticas políticas e jurídicas do império. A moralidade externa de cada ser humano, ou seja, a moral praticada por cada cidadão é agora proporcional apenas ao contexto do então império. Não existem mais as formas individuais e privadas de valores. Já não há mais a confrontação local, e sim com o próprio mundo absolutamente globalizado como o temos.

O rápido processo de corrida para o século XXI, chamado ‘século da esperança’, foi provocador de abalos terríveis em nossa maneira de construir a percepção. E acabou por permitir ver que era significativa a incompatibilidade com o que havia no Brasil, em termos de história construída. Aqui, a produção historiográfica que foi legada e construída representava um acervo valioso para a recuperação da história de corpos em conflito no urbano da cidade do Rio de Janeiro no tempo presente, ou seja, no alvorecer do novo milênio, para a inserção em um mundo extremamente complexo da globalização que nos avizinhou.

Referências

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COOPER, Frederick; HOLT, Thomas C.; SCOTT, Rebeca J. Além da escravidão: investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
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Publicado em 20 de maio de 2008.

Publicado em 20 de maio de 2008

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