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Pequenos terremotos

Pablo Capistrano

Meu lema nestes últimos anos é simples: “a última coisa que você deve fazer em uma situação ruim é torná-la pior”. Por isso minha televisão está desligada este fim de semana e, com exceção de um vídeo de 22 minutos que estou baixando pelo YouTube neste exato momento, não pretendo assistir a nada, a não ser talvez algum velho filme de 1923, como a primeira parte de Os Nibelungos, dirigido por Fritz Lang.

Se este fim de semana, o mundo for invadido por extraterrestres, se o Bush entrar em uma mesquita para rezar, o Papa Bento XVI defender a eutanásia no seu sermão de domingo, o ABC ganhar do Corinthians na partida pela série B do Campeonato Brasileiro ou alguém falar mal do José Serra no Jornal Nacional, ou seja, se qualquer evento extraordinário, qualquer ruptura na ordem natural das coisas acontecer, eu não saberei.

 Permanecerei sozinho com Tori Amos, com meu documentário do YouTube sobre o fim do mundo e meu filme alemão, porque nesta vida precisamos de uma ou outra dose de autenticidade para levantar nosso olhar e encontrar uma migalha qualquer de transcendência que nos envolva e nos salve dessa rede de vazio que nos cerca.

Um domingo desses liguei a TV em um canal de notícias e vi a imagem de um prédio. Fiquei espantado porque a câmara estava aberta, estática, diante daquele prédio. Pensei ter ligado por engano no canal da portaria do meu condomínio; mas não, na verdade eu estava diante de uma “notícia”. Aquela imagem estática daquele prédio anônimo, que poderia ser qualquer prédio em qualquer cidade brasileira, em tese deveria me passar alguma informação relevante. De vez em quando, muito esporadicamente, alguém aparecia na janela, um ou outro policial encostado no muro movia o braço e algum jornalista atravessava com sua câmera na telinha; depois nada. O mais vazio e absoluto nada. Só aquela imagem parada, vazia e monocromática, de um imenso prédio branco e silencioso, junto com o eco de fundo de uma voz que repetia ininterruptamente: “Estamos ao vivo, direto do Edifício London, na Zona Norte de São Paulo. Começou ainda há pouco a reconstituição da morte da menina Isabela. Você está acompanhando ao vivo, direto do Edifício London, na Zona Norte de São Paulo, a reconstituição do crime que vitimou a menina Isabela. Estamos agora, ao vivo, diante do edifício London, acompanhando a reconstituição, que neste momento está ocorrendo dentro do edifício, da morte da menina Isabela. Agora, na Zona Norte de São Paulo...”

Depois de alguns minutos observando aquilo, eu desliguei a TV, e, em minha sincera ignorância, perguntei-me como é possível que uma quantidade tão substancial de seres humanos, eu inclusive, pudesse permanecer diante da tela de uma TV assistindo ao mais puro e absoluto nada. Semanas depois, ligo novamente a TV em um canal de notícias e vejo o depoimento de dois sujeitos (não consegui ainda decorar os nomes deles) em mais uma CPI no congresso, sobre um suposto dossiê, ou banco de dados, ou banco de dados seletivo, ou relatório, ou planilha do Excel ou qualquer outra coisa que você queira chamar.

A teletransmissão daquela sessão me pareceu ter relações estreitas com a cobertura da reconstituição do crime que vitimou a menina Isabela. Ambas são produto de uma mesma ansiedade. Vivemos no mundo da notícia. Precisamos de uma notícia qualquer que possa dar à nossa vida cotidiana algum significado, algum sentido que transcenda o banal.

Quando a notícia não vem é preciso criá-la. Ao contrário das grandes catástrofes mundiais, dos tsunamis e dos grandes tremores de terra (noticiados pela DW-TV, BBC, RAI ou CNN), no Brasil precisamos de outros cataclismos, pequenos terremotos como os cantados por Tori Amos, na parte ao vivo do disco To Venus and Back. Neste fim de semana prefiro ficar com a Tori Amos, com o Fritz Lang e com o YouTube, porque a arte pode ser melhor do que a vida que passa ao vivo no telejornal e porque, como Tori mesmo canta na faixa dez do CD: “E eu odeio, e odeio, e odeio, e odeio música de elevador”. Eu sei, sim, eu sei, nossa vida é bem maior do que isso tudo, e um dia ela vai ser ainda mais sedutora que o telejornal diário.

Publicado em 03 de junho de 2008

Publicado em 03 de junho de 2008

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