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Movimento Estudantil

Giovânia Costa

Mestre em Educação

Quando fui convidada a falar sobre movimento estudantil fiz uma viagem na minha história pessoal; assim, começo situando de onde falo para que possam me acompanhar nessa reflexão. Minha primeira graduação foi em Belo Horizonte, na UFMG, e só pude cursar a faculdade de Comunicação pelo apoio que tive ao conseguir uma vaga na moradia estudantil Borges da Costa, um hospital abandonado dentro do Campus da Medicina, que os estudantes invadiram e conquistaram o direito de lá morar. Não sem luta. Mas uma luta da qual não participei.

Na época da invasão, eu ainda estava chupando picolé na porta do colégio. Só uma vez fui a uma reunião da União Nacional dos Estudantes (UNE), clandestina. Aliás, fui pela excitação que era participar daquilo, da clandestinidade. Não entendia nada do que estava acontecendo. Faço parte da leva "filhotes da ditadura", a geração que teve aulas de Educação Moral e Cívica, Organização Social e Política do Brasil (OSPB), Técnicas Comerciais. Ou seja, informação política na escola? Só Ordem e Progresso. Mas, isso faz muito tempo.

Como moradora de casa estudantil, confesso que minha participação política não era das mais conscientes. Fazíamos festas, recebíamos estudantes de outros estados para os encontros no início da abertura política, lutávamos por melhores condições de ensino, contra o aumento das passagens de ônibus e tudo que achávamos importante. As reuniões eram muito bem dirigidas, cheias de "questões de ordem". Quem tinha o traquejo da coisa mandava mais, com certeza. Poucos falavam, e as votações aconteciam em meio a um certo clima de opressão. Anos depois me mudei para o Rio de Janeiro, e um prédio abandonado, em plena Zona Sul, me chamou a atenção. Curiosa, perguntei o que tinha sido e, até hoje, quando passo na Praia do Flamengo e vejo a Casa do Estudante em ruínas, meu coração se aperta. Penso no direito à moradia que tive e que está ausente da UFRJ. A moradia de lá é bastante precária, atende a poucos alunos, fica no campus do Fundão (de difícil acesso) e está exposta à violência da cidade. Recentemente, alguns dirigentes da UNE estiveram acampados no local da antiga sede e conquistaram novamente o espaço. Li isso no site da entidade, mas a atualização da matéria era de 20 de maio de 2007.  Não sei como andam as negociações. As ruínas continuam lá.

Faço essa introdução para me situar como parte da geração que hoje atua nas salas de aula. Nossa formação foi marcada pela ditadura militar e fomos ceifados da participação política por anos. Nós nos tornamos educadores, e, em meio às questões educacionais e salariais, tentamos não repetir o modelo a que fomos submetidos. Difícil!

O desconhecimento da história brasileira recente é enorme. Os livros didáticos pouco trazem. Por vezes, penso que muitos, ao falar com a garotada numa sala de aula onde cobram dos alunos participação, conhecimento, envolvimento, se esquecem de que os jovens que se sentam nos bancos escolares hoje nasceram depois da abertura política. São de 1989, 90... E pouco sabem como a vida deles foi determinada pelos anos que antecederam seu nascimento. Anos que determinaram mudanças de currículo nas escolas, silêncio nas salas de aula, não-envolvimento nas questões sociais para não correr risco de prisão ou mesmo morte por parte da repressão. Ou seja, a não-participação dos alunos é diretamente ligada ao que foi ensinado durante os anos em que vivemos sob o império do medo. A ditadura passou, mas por vezes penso que até hoje não voltamos ainda totalmente ao estado de normalidade.

Vou me aproximando do tema que me cabe: movimento estudantil. A Lei 7.398, de 04 de novembro de 1985, dispõe sobre a organização de entidades representativas dos estudantes de 1º e 2º graus e dá outras providências. Uma campanha do governo federal pela memória do movimento estudantil foi realizada  na grande mídia. A revista IstoÉ traz, esta semana, os “cara-lavadas” e a volta do movimento estudantil. A pressão dos estudantes e a consequente renúncia do reitor da UnB trouxeram a reflexão à tona. Mas, aqui, queremos pensar o movimento estudantil num recorte específico e por isso daremos prioridade à mobilização na Educação Básica. Teoricamente, todos repetem a importância do grêmio estudantil. Digo teoricamente expondo-me ao erro da generalização, mas o convite para essa reflexão me tocou pela falta de atuação da comunidade escolar, e não pelos pontos de resistência que, claro, existem.

Os estudantes são livres para se organizar; mas em que bases? A falta de informação dos alunos (e de grande parte da sociedade) sobre a história do movimento estudantil é real. O resgate dessa história está chegando às escolas? Como estamos nos envolvendo nisso?
É fácil teorizar sobre a importância dos grêmios estudantis: cito um site do governo:
"A concepção de uma Escola Democrática implica o exercício da cidadania. Os grêmios estudantis são, por excelência, o campo pedagógico de aprendizado das noções de direitos e deveres; base da compreensão e desenvolvimento do conceito de cidadão consciente. Trabalhar um novo conceito de Gestão objetivando o compromisso de toda Comunidade Escolar deve, necessariamente, incluir uma ação de organização dos alunos".

Como é o grêmio da sua escola? É participativo? Os representantes vão aos conselhos de classe? Você incentiva a formação de grêmios ou acha que eles só querem saber de fazer bagunça?

Pergunto-me como os alunos que nasceram no final dos anos 1980 e na década de 1990, que pouco ou nada conhecem sobre a história e as potencialidades de entidades estudantis, podem se organizar para participar do processo que lhes diz respeito diretamente. Ninguém deveria ser mais interessado na melhoria da educação, em mais vagas, em melhores condições de ensino, em melhoria da infraestrutura escolar, em melhores professores etc. do que o estudante; afinal, ele é a razão de a escola existir.

Javier Alfaya, líder estudantil que chegou a ser eleito presidente da UNE em 1981-1982, afirma que "não dá para comparar épocas, é um erro, é um equívoco metodológico do ponto de vista da pesquisa científica, histórica mesmo, como é uma injustiça comparar mecanicamente épocas com épocas, movimento estudantil com movimento estudantil" (Fonte: Site Cronologia do Movimento Estudantil).

Alertada por ele, vou tentar não cair na armadilha de simplificar tudo e entrar na nostalgia de querer que tudo fosse como antes. Mas, sinceramente, vejo que deixar as coisas como estão é nocivo para a melhoria da organização dos grêmios. É certo que a demanda deve partir dos alunos, mas eles precisam ser orientados para que possam participar do processo de criação de uma escola que seja a escola que eles querem.

Haverá os pessimistas, que nesse momento dirão: “A escola que eles querem... Mas eles não querem estudar.” Não acredito nisso. Não conseguiria me manter atuando em uma sala  de aula, tentando contribuir para a formação de um ser humano com esse pensamento. Acredito que, sem uma dose de utopia, o mundo não anda. E essa posição me obriga a avaliar o que não acontece nas escolas que acompanho. Me obriga a ver o que eu poderia fazer e não faço. E a velha desculpa de "não ganho para isso" tem me entristecido bastante. Quando ouço, repetidas vezes, na sala dos professores, penso: se não ganhamos para isso, para o que ganhamos (ainda que mal), então?

Mas voltemos à importância da formação dos grêmios estudantis, e aqui ressalto e recorto a escola pública. Pergunto-me se não existe um receio das modificações que se processarão se os grêmios forem realmente atuantes (e não só para promover festas).

O que levanto é que apenas uma pequena parcela da comunidade escolar parece realmente entender o significado do grêmio estudantil com relação à democratização da educação. Os diretores e professores ainda têm muita dificuldade de envolver os alunos e a comunidade e convocá-los a pensar a escola como instrumento de modificação e conscientização de uma nova mentalidade no Brasil, em que essa mesma comunidade participe ativamente dos destinos da nação. Como refletir sobre isso e levar aos nossos alunos?

Talvez passando pela nossa história. Como comecei, nossa formação política é deficiente. Não temos a cultura da participação. Esta reflexão é de agora, não daquela época em que eu estudante morava no Borges e me achava "superconsciente". A grande participação estudantil dos últimos anos, os "caras pintadas", em 1992, já me pegou formada. Estava nas ruas (não mais em Belo Horizonte e sim em São Paulo), mas não era estudante naquele ano. Gritamos juntos, choramos juntos. Foi bom ganhar as ruas, botar a indignação para fora, aos berros, me sentir povo, me sentir atuando, fazendo diferença. Não era uma a mais na multidão. A multidão era uma coisa só, uma vontade só, e ganhamos.

Hoje, a cada semestre letivo das universidades me vejo tomada pela indignação (caretice?) ao ver os “calouros caras-pintadas” pedindo dinheiro nas ruas para a chopada que ritualiza o ingresso no ensino superior. Nesses momentos, pergunto-me o quanto do autoritarismo aprendido nos anos que passei nos bancos de escola me influenciam nessa indignação: porque considero que essa não é a melhor forma de trote, que espero dos estudantes mais criatividade, mais envolvimento, mais, mais... Mas o chope os mobiliza, é dessa forma que se reúnem, se organizam. Quando comecei a escrever este texto, ainda não fazia parte do meu vocabulário o novo rótulo “cara-lavadas”, citados como movimento estudantil de resultado e ausência de ideologias revolucionárias. Mas, se não quero cair na armadilha da nostalgia, que caminho me resta? Buscar esclarecimento para a organização democrática.
É somente no lugar democrático que o indivíduo constrói para si uma outra etapa de seu esclarecimento: o encontro com o outro, o estar entre pares, a presença no mundo. Quando pensamos a democracia como valor, nós o fazemos porque ela é um momento insubstituível para a constituição de cada um de nós como indivíduo, na medida em que vemos o espaço compartilhado com outros, não como um palco a cujos acontecimentos assistimos, mas como algo em que atuamos e no que tomamos parte, tornando-nos, nesse processo, superiores a meras engrenagens na máquina.

Com certeza, um grupo de homens não é uma máquina cujo funcionamento é monotônico e previsível. O lugar onde os homens se encontram é o lugar do novo, do inesperado e da liberdade. Nem sempre eles são eficientes, mas, se livres, podem passar a ser.

Democracia não é uma receita infalível. Nem sempre dá certo. E não tem que dar, ela não serve pra isso! Na verdade, democracia não faz as coisas funcionarem melhor, mas sem ela não nos importa que qualquer coisa funcione.

E neste momento quero me remeter à democracia direta e às formas democráticas em que hoje vivemos. A democracia direta, a meu ver, é a realização política maior, em que cada um de nós está sempre a pensar maneiras de influir na decisão de questões que interessam a todos, de participar dos processos do poder nas mais diversas instâncias.  Queremos ser ouvidos no trabalho, na sala de aula, na praça e nas questões de Estado, pois somos pessoas num mundo compartilhado, e abdicar dessa atuação entre outros é abdicar de algo essencial à nossa condição humana.

Levanto esta questão pela minha preocupação com os movimentos estudantis e suas relações partidárias. Os interesses me parecem difusos, a repetição do grande modelo político me assusta. Por vezes, quando as tarefas a serem realizadas são por demais complexas, temos que lançar mão de formas democráticas diferidas, especializações que adquirem autoridade; é isso que faz com que nações regidas por parlamentos representativos se considerem uma democracia, representativa no caso.  Por vezes, tais desvios degeneram em tirania ou tecnocracia.

O mundo hoje é muito grande e complexo, e há pessoas demais para se reunirem e se entenderem sobre tudo que lhes interessa. Mas, a princípio, as questões de interesse de um grêmio estudantil, por exemplo, não têm nenhuma complexidade técnica que exija a delegação do poder de voto deliberativo dos estudantes. Quando a forma de participação direta dos estudantes não é sequer considerada como possibilidade, lamento... E talvez isso se dê por falta de informação de toda a comunidade escolar sobre possibilidades de formas de participação. Como a autogestão, por exemplo. Ou seja, a discussão sobre a participação democrática parece não tangenciar as questões pertinentes à boa e velha democracia.

Um grupo de pessoas que delibera em conjunto e democraticamente pode – e deve – fixar tarefas a serem realizadas, designar os mais capazes para desempenhar essas tarefas e acompanhar seus resultados. Há tarefas que são essenciais ao funcionamento do grupo, o qual tem, de tempos em tempos, que escolher pessoas para as desempenhar. Outras são circunstanciais, e o grupo pode confiar temporariamente a certos membros a solução do problema. Mas o mais interessante na autogestão é que tais pessoas não recebem uma folha em branco para agir livremente em nome da instituição; pelo contrário, são acompanhadas de perto em suas atuações, têm que prestar conta do que fazem ao coletivo que as escolheu e acatar sua orientação. Nesse sentido, na autogestão, as pessoas são muito mais responsabilizadas do que num sistema de diretores representativos.
Fico me perguntando por que reclamamos tanto do modelo vigente que nos faz agir democraticamente de dois em dois anos ou de quatro em quatro, e ao pensarmos promover uma eleição do grêmio a maioria sequer considera outras formas de participação, para informar aos alunos. Será que não somos nós mesmos que precisamos buscar essas informações pela ineficiência de nossa formação política?

A forma como vejo o movimento estudantil hoje é quase um trampolim para a grande política. Encontrei eco dessa fala na edição da IstoÉ ao citar Vladimir Palmeira: “O estudante que começa na política hoje só aspira a ser deputado ou assessor parlamentar”. Os lideres saem da presidência das entidades e vão para as assembleias muito bem votados. Claro que é natural o envolvimento com a política de uma forma geral, que lideranças surgem e se fazem atuantes ao longo da vida após os anos da escola. O que questiono é a captura das lideranças estudantis pela política partidária, o desvio de interesses, a repetição dos slogans e de uma formula esvaziada de fazer política.

Surgida nas cidades-Estado da Grécia, a democracia tem uma tradição de 2.500 anos que o Ocidente vem tentando aprimorar desde então. Há uma outra tradição de mesma idade e origem; esta é hoje nosso objeto de estudo: a Filosofia. Pensando no nascimento da democracia e da própria Filosofia, conduzo a reflexão para outro termo: cidadania. Busco, então, fazer uma articulação com esse conceito que fundamenta a importância da necessidade de participação do estudante. Ao se organizarem, eles estão aprendendo e exercendo cidadania. O lema da moda é educar para a cidadania, slogan presente em todos os discursos oficiais e não-oficiais. Seria uma irresponsabilidade nos colocarmos contra esse princípio, que vem sendo defendido, não só no Brasil mas em muitas nações, como um imperativo para que, pela educação, conquistemos melhoras na condição de vida de milhares de excluídos que vivem à margem da sociedade. O movimento estudantil se insere como uma estratégia de buscar um exercício mais amplo da cidadania.

Que fique bem claro que não estamos contra a proposta. É pela importância que tem que ela se faz presente neste enunciado. Mas se é atribuição da educação formar cidadãos, de que cidadania estamos falando?

Cidadania se conjuga com democracia. Na Grécia antiga, cidadania se referia ao direito e também ao dever de determinados atores, de participar das decisões da polis. O melhor cidadão era aquele que atuava para o bem-comum. O poder social era partilhado por todos, igualmente – deixo de lado o contexto e as considerações de que nem todos eram considerados cidadãos, pois seria preciso especificar a ideia de público e privado na Grécia e com isso nos afastaríamos muito do tema. O que interessa para nossa reflexão é que todos os cidadãos eram iguais. Na modernidade, o liberalismo de certa forma descarta a igualdade e valoriza a liberdade.

Assim, na modernidade, vemos a ideia de liberdade se identificar com a possibilidade de segurança dos direitos do indivíduo nas questões privadas.

Repetimos o óbvio do senso comum: ser cidadão não é somente gozar de direitos políticos. É assumir a dimensão política do ser humano e participar da sociedade ativamente. Mas como fazer isso preso ao mundo das necessidades básicas que restringem grande parte da humanidade? Essa restrição tem, aqui, um duplo sentido: quantitativo e qualitativo. No sentido quantitativo porque são muitos os que se encontram presos à mera sobrevivência; e qualitativo porque não atuam politicamente, o que significa que têm sua humanidade tolhida. Esse quadro se soma à falta de informação dos nossos alunos sobre a história e as formas de participação política. A ideia de formar o cidadão para a cidadania não é suficiente se antes não instituirmos o que seja essa cidadania e assumirmos a impossibilidade de muitos de exercê-la.

Assim, conjugando educação com cidadania, me aproximo de outro termo: exclusão. O conceito ganha força a partir da década de 1990, juntamente com sua antítese, a inclusão. Educação, cidadania e inclusão passam a ser imperativos necessários a qualquer país na era planetária. A localização temporal do uso dos termos é proposital para chamar a atenção para o fato de que a década anterior, os anos 80, foi fortemente marcada pelo discurso de redemocratização, denunciador dos interesses econômicos que se opunham aos interesses sociais. Esse discurso se dava por intermédio de palavras como desigualdade e pobreza; mas, com a hegemonia do discurso neoliberal, os termos passam a ser substituídos por novos; "o novo nome da pobreza é a exclusão".

Mas será simplesmente uma troca de palavras para falarmos de velhos problemas ou a linguagem indica mudanças de concepção e de abordagem? A meu ver, a substituição denuncia um deslocamento do foco de responsabilidade do Estado para o indivíduo. Inclusão apela para a solidariedade, caridade, voluntarismo (trabalho não-remunerado). Inclusão nada tem a ver com igualdade ou redistribuição; significa elevar os pobres acima do limite de padrão mínimo. A inclusão hoje é quase uma unanimidade. Mas como viabilizá-la?

A resposta parece ser: pela educação. Exclusão é o oposto de cidadania. E o sistema educacional é chamado a participar. A partir daí surge o tema que nos é tão repetido: educar para a cidadania.

O perigo que a moda carrega é utilizar a ideia de cidadania no seu sentido de moldagem do indivíduo para a reprodução de um desempenho social absolutamente nefasto. Precisamos estar sempre atentos para o papel da educação formal, que age, enquanto processo de ensino-aprendizagem e aquisição de cultura, muitas vezes (e, por que não dizer, na maioria das vezes) como um grande sistema de reprodução cultural. Educar para a cidadania pode ser educar um sujeito "participativo" – no sentido de colaborador do sistema, que ensina a passividade, ou educar para ser um sujeito crítico. Essa é a educação para uma nova cidadania.

Nessa nova missão da escola, a ideia de cidadania necessita renascer não como um conceito que é aprendido. Cidadania não é uma lição a ser ensinada. É uma postura que precisa ser estimulada, postura essa que possa fazer nascer em cada um o sentimento do que é viver em prol do bem-comum. O conceito se refere, sim, a direitos e deveres civis e políticos, mas não podemos nos esquecer de que é necessário que esses direitos sejam pensados por meio de valores éticos. É necessário conjugar cidadania com diversidade, justiça, dignidade. Ser cidadão não é uma opção. É uma possibilidade que dependerá de acessos econômicos, culturais e sociais. É ter acesso a saúde, lazer, educação de qualidade.

Cidadania é um espaço de construção compartilhado. Precisamos estar atentos. Se a educação pode estar a serviço de um desenvolvimento humano que favoreça o exercício da cidadania, também pode estar reforçando sistemas a que teoricamente somos críticos. E é nesse contexto que reclamo da utilização do movimento estudantil como exercício partidário, da formação de lideranças para o exercício político profissional e bem pago.

A educação para a nova cidadania acontece por intermédio dos currículos oficiais, e para isso é necessário que os currículos sejam revistos. Acontece também em todos os demais espaços escolares, e tudo necessita de um olhar novo para que saiamos do quadro de fracasso da instituição escolar no qual, sabemos, o país está imerso.

É necessário ensinar às nossas crianças e jovens não apenas a ler e a escrever, mas a olhar o mundo a partir de novas perspectivas. Ensinar a ouvir, falar e escutar, a desenvolver atitudes de solidariedade, a aprender a dizer não ao consumismo imposto pela mídia, a dizer não ao individualismo e sim à paz. A meu ver, isso só se dará quando formos, nós mesmos, capazes de ouvir e falar.

Educar para a cidadania é adotar uma postura, é fazer escolhas. É despertar para as consciências dos direitos e deveres, é lutar pela justiça e não servir a interesses seculares. É uma urgência que grita e que deveria ecoar nos corações humanos – e não nos alarmes das propriedades que tentam proteger a vergonha do que a civilização humana construiu. A escola não pode ser a "fábrica" a prestar o serviço de reprodução do quadro nefasto que está por aí rondando o sistema partidário. Acredito que educar para a nova cidadania é a utopia dos que têm na educação a sua trincheira, mas talvez isso só seja possível quando a utopia for assumida por todos e, assim, possamos fazer um projeto de escola que valorize a pessoa humana, a dignidade necessária para todos.    

Para alcançarmos isso, não podemos ficar somente no ensinar para a cidadania. É preciso construir o espaço de se educar na cidadania. E nesse sentido não é somente a preposição que muda. Muda a postura da direção, dos funcionários e principalmente do professor que se posiciona na luta. Que recupera a figura importante – que é – na formação de uma sociedade mais justa. Que saiba que ser cidadão é alcançar a dimensão política do homem, que ser cidadão é condição fundamental para exercermos nossa humanidade.

E isso não se alcança sem um posicionamento claro e atuante. Posicionamento que deve ser exposto tanto na sala de aula, como reflexo de um planejamento sério e comprometido, como também nas conversas com os colegas durante os intervalos. Nas reuniões das entidades que decidem por nós e decidem com quóruns baixíssimos. É conjugar nossos direitos e fazer com que aconteçam, com que se ampliem, e que isso possa ser pensado não a partir dos benefícios individuais, mas também no bem-comum de toda a comunidade. E, a partir desse exercício, talvez possamos aprender a deixar os jovens se organizar de forma realmente democrática, e assim os grêmios deixem de ser recreativos e reprodutores de formas desgastadas de fazer política e possam se reinventar.

Vou me encaminhando para uma conclusão, pois sei que dei voltas e talvez tenha me perdido em algum desabafo.

Minha análise partiu da minha não-formação política, resultante do contexto histórico brasileiro no qual passei a maior parte de minha vida escolar para o reconhecimento da ausência de uma formação política mais ampla e consciente relevante para que a mobilização estudantil aconteça e possa atingir os alunos do Ensino Médio com 15, 16, 17, 18 anos.

É função da escola promover ações e situações e criar um ambiente favorável para que os grêmios se formem e exerçam seu papel. As vozes juvenis precisam ser ouvidas nos conselhos de classe. Os alunos precisam aprender a se organizar e a exigir de nós, professores, diretores de escola, representantes do poder público, o que lhes é de direito. Desde 1985, voltaram a permitir a organização dos grêmios. Às vezes acho que, na maioria das escolas, esse processo ainda nem começou, e tenho receio que demore a começar.

Listo aqui algumas propostas de atividades que podem ser desenvolvidas na escola com o objetivo de incentivar, estimular, despertar o interesse e a consciência dos alunos para a importância do movimento estudantil.

  • Dar espaço para as eleições acontecerem, mas antes possibilitar aos alunos informações que os ajudem a escolher a forma de participação que queiram, que considerem melhor, seja ela a formação de chapas ou autogestão, por exemplo.
  • Convidar pessoas – pesquisadores, estudiosos do movimento estudantil – para dar palestras na escola.
  • Propor aos alunos que façam entrevistas com antigos líderes ou participantes desses movimentos.
  • Exibir vídeos e filmes.
  • Estimular a pesquisa sobre a história do movimento e sobre a legislação.
  • Montar peças de teatro.
  • Projeto de estação de rádio.
  • Projeto de jornal do grêmio.

Enfim, a livre organização dos estudantes é interesse maior de todos na escola. Diretor, professor, alunos, pais, funcionários. A escola é de interesse público. Se a “ficha não cair” em toda a comunidade escolar, vamos continuar patinando e reforçando preconceitos como o de que os alunos “não querem estudar”. O grêmio é talvez o primeiro passo para que eles possam se conscientizar para defender o que é nosso e começar a entender que a escola tem tudo a ver com o país.

Hannah Arendt, no capítulo 5 do livro A condição humana, fala da crise na educação. Lá ela alerta sobre o velho tentar ensinar o novo. Fiquemos atentos a isso e deixemos que o novo ocupe seu lugar.

Obrigada pela atenção.

Atualizado em 10 de junho de 2005

Publicado em 10 de junho de 2008

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