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Era uma vez...

Rosemary dos Santos

Somos seres da linguagem. Desde a escuridão das cavernas até os dias de hoje, adoramos contar e ouvir histórias.

Fico imaginando homens e mulheres sentados ao redor do fogo para ouvir alguém contar histórias de monstros, ou de como foi difícil a caça daquele dia. E, ao escutar atentos as narrações alheias, aprendem a formar imagens mentais de coisas ausentes, diferentes e imagináveis.

Nessa longa caminhada muita coisa se transformou, muitos fatos aconteceram, e mesmo assim nunca acabou a situação de seres humanos ouvindo uns aos outros.

Os espaços e tempos podem ter mudado. Pode não ser mais em volta do fogo nem na escuridão da caverna, mas na escola, na reunião de trabalho, num barzinho, diante de um livro, em frente a uma TV ou a um computador. Somos ávidos por histórias e novos conhecimentos. Gostamos de saber de outros lugares, de outros pensamentos, de outras realidades e de novos testamentos e percursos. E é a partir do que lemos ou ouvimos que aguçamos nossos sentidos, nossas experiências e nosso espírito. Ficamos mais inteligentes.

A ciência explica.

Num mundo cada vez mais complexo, as maneiras de contar histórias também mudam. Da palavra dita passamos à palavra escrita e depois retornamos a uma comunicação oral (e audiovisual) mediada por tecnologias. As histórias podem até ser semelhantes, mas o suporte sobre o qual elas são veiculadas muda as maneiras pelas quais elas são narradas, ouvidas, lidas, imaginadas e apreendidas.

Com o desenvolvimento da escrita, aqueles privilegiados que aprendiam a ler eram valorizados por saber decodificar os símbolos. Símbolos que se transformavam em histórias e em ideias. Mágicos. Símbolos que traziam mundos distantes, que levavam a uma viagem no tempo.Alimentavam a imaginação. A maior parte das pessoas não tinha esse privilégio e ficava excluída dos processos que transformavam a sociedade, que rumava na direção do progresso.

A escola surgiu como o local sagrado, onde se ensinava a desvendar os símbolos mágicos e, a partir disso, a ter acesso a todos os conhecimentos da humanidade, a desenvolver o pensamento e ainda a como se comportar de modo adequado para viver em sociedade. Lá, os detentores do saber organizavam a melhor maneira de contar as histórias para as novas gerações, tudo que os seres humanos acumularam em sua caminhada. Aquilo que chamamos de conhecimento historicamente construído. No princípio, como a escola era um dos poucos locais onde se podia adquirir os saberes, as coisas fluíram sem muitos obstáculos. Todos a respeitavam e compreendiam que era através dela, somente dela, que era possível aproximar mundos distantes e aprender tudo que era necessário para viver e sobreviver.

Até que começaram a surgir alguns recursos tecnológicos que vieram para contar histórias também. Imediatamente foram rotulados de fúteis e somente para divertimento, ou melhor, entretenimento (palavra da moda). Realmente, os novos recursos não pretendiam ensinar nada, só pretendiam divertir e informar. Porém tinham grande potencial para expandir qualquer ideia que fosse, qualquer mensagem, e até mesmo os tais conhecimentos e saberes que o local sagrado difundia. Afinal, eram meios de comunicação e sempre foi através desse processo, a comunicação, que se transmitiram os conhecimentos da humanidade.

Para desespero dos detentores do saber, os tais recursos passaram a fazer um sucesso estrondoso! Contavam histórias como ninguém jamais havia contado, encantavam homens, mulheres, crianças e pessoas de todas as idades. Através delas, as pessoas conheceram outros valores, sabiam de tudo com uma rapidez incrível. A princípio, era só oralmente, mas depois, com a invenção de outro instrumento tecnológico que uniu imagens, sons, ícones e símbolos diversos, sabiam de tudo de todas as formas. A humanidade ficou encantada. As imagens em movimento e luz traziam sensação de realidade. Os diversos sons, faces e relações faziam com que todos pudessem construir, des-construir e reconstruir suas histórias e as histórias do mundo das mais diversas maneiras, bastava para isso um simples gesto a que eles deram o nome de clicar. As histórias não eram mais somente imaginadas, eram também criadas com uma coisa chamada interatividade, de que todo mundo falava.

O universo inteiro estava ali diante dos olhos! E os seres humanos, hipnotizados pelas histórias de fácil acesso, passaram a adquirir novas habilidades mentais. Aprendiam as coisas de forma integrada, diferente do modo como sempre aprenderam na escola (fragmentada).

Para que precisamos da escola, então?, perguntavam alguns. O conhecimento escolar talvez não seja tão sagrado assim, tampouco o único! Podemos tê-lo na hora que quisermos!

Os questionamentos eram inflamados. As escolas viram-se em uma encruzilhada. Houve alvoroço. Reuniões foram feitas. Discussões. Debates. Umas corriam feito loucas e enchiam suas salas de aulas com os tais recursos, sem ao menos saber como manuseá-los; outras torciam o nariz para eles. Algumas preferiram continuar acreditando que nada se aprende fora delas e que o pensamento linear-sequencial é suficiente para desenvolver o ser humano. Outras passaram a olhar as tecnologias da comunicação com cuidado e curiosidade e perceberam que podiam manuseá-las para contar suas histórias de modo diferente, aproximando-se da forma sedutora que elas usavam para atingir a emoção e o pensamento de alunos e professores. Outras ainda resolveram que os recursos tecnológicos seriam a base sobre a qual sua estrutura deveria se assentar, numa transformação radical do modo como sempre pensaram sobre si mesmas.

Mas não é assim que quase sempre as coisas acontecem? Quando algo novo chega para desestabilizar alguma ordem estabelecida, sempre há os que se agarram ao conhecido, os que entram de cabeça na nova ordem e outros que, no seu tempo próprio, vão incorporando alguns elementos do novo na estrutura antiga, experimentando, refletindo, transformando. Então, o mundo vai mudando a sua cara, vai modificando sua forma de agir. E o caminhar da humanidade muda de ritmo, tropeçando aqui, correndo ali, voltando ao passo inicial. E vai tecendo uma coisa nova, na esperança de que outros tempos mais felizes cheguem. Para sempre. Ou  até que outras coisas sejam inventadas e outras histórias imaginadas.

Publicado em 10 de junho de 2008

Publicado em 10 de junho de 2008

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