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O que mudou em 120 anos de abolição

Ivanir dos Santos

Pedagogo, secretário-executivo do CEAP – Centro de Articulação de Populações Marginalizadas

As mudanças que ocorreram depois do 13 de maio de 1888 são de vários matizes. Significam, em primeiro lugar, a mudança do sistema de produção do País, que era baseado em mão-de-obra escrava africana e já demonstrava sua falência no início do século XIX. As pressões internas (de proprietários de terras) e externas (dos países em fase de industrialização) cobram a substituição de mão-de-obra escrava pela imigrante; as consequências desse processo apontam para a libertação dos escravos e o início da República.

As motivações que levaram os negros a lutar pela abolição são muito diferentes dos interesses dos setores liberais. Os africanos chegaram aqui na condição de escravos, sem direito algum; foram trabalhar na lavoura e iniciaram a organização dos quilombos como forma de se libertar. Já os imigrantes europeus que chegaram para substituir a mão-de-obra escrava trabalham como parceiros nas lavouras, com direitos garantidos, passam a reivindicar a posse da terra, e esse processo irá contribuir para o início da industrialização.

As mudanças que só excluem

O movimento abolicionista recebeu apoio do setor liberal e, em particular, de estudantes que foram estudar na Europa e voltaram com o propósito de pôr fim ao regime escravocrata. Os liberais precisavam criar bases políticas e filosóficas que pudessem ajudar no avanço da industrialização. Então, nesse sentido, o Brasil mudou muito; mas para quem? Temos dois brasis: um formado por populações brancas, de origem europeia e asiática; outro formado por populações originárias do continente africano e do que restou das populações indígenas.

Na passagem do tempo entre os séculos XIX e XXI, a população negra brasileira teve outra representação: saiu da condição de escravidão e entrou direto na condição de marginalizada, de exclusão. Não teve acesso ao mercado de trabalho, não teve acesso à educação, não teve acesso à saúde. Tanto que, 120 anos depois, o Brasil ainda tem que se encontrar com seu passado. Atualmente se debate na sociedade brasileira como é que pode ser reparado o período de escravidão de uma população.

São 120 anos de abolição contra mais de 350 anos de escravidão, numa existência de 508 anos... Mais da metade da história deste País foi baseada na escravidão. Fala-se como se a escravidão fosse só de 20 anos – e não foi isso. Foi espoliação, tortura, perversidade, perseguição pós-libertação à comunidade dos afro-descendentes que existia aqui.

Este país foi construído por essa força de trabalho – no início escravizada, depois livre, mas marginalizada e excluída, sem direitos. Os imigrantes europeus e asiáticos e seus descendentes sempre tiveram tratamento diferente do que receberam os afro-descendentes.

Não é uma situação muito fácil; é preciso pensar a nação de vários ângulos. Ao pensar o Brasil como um outro projeto de nação, é necessário ver que, para a comunidade negra, a escravidão apenas mudou de face: a exclusão impera.

A sociedade brasileira enfrenta alguns desafios. Primeiro é preciso compreender como foi o processo de escravidão e que influência isso tem nos dias atuais. É preciso avaliar o que acontece com as comunidades negras e indígenas e com a comunidade branca no país. O grande debate são as políticas de ações afirmativas e as resistências que se manifestam vindo do segmento conservador da sociedade. Existem mesmo pessoas progressistas que são contra os direitos da maioria da população negra.

Por que as cotas enfrentam tanta rejeição

A rejeição às cotas pode ser analisada por várias nuances. Logo surgiram reações à adoção de políticas de democratização do acesso às vagas nas universidades – com a criação de programas como pré-vestibulares comunitários, o ProUni (Programa Universidade para Todos) e implantação de cotas – promovidas pelo Ministério da Educação. Os dados do MEC registram 224 instituições públicas de ensino superior, sendo 87 federais, 75 estaduais e 62 municipais. Nesse cenário, qualquer instituição de ensino que implemente ações que privilegiem a adoção de cotas para os excluídos sociais, raciais e étnicos, por exemplo, está sujeita a ações impetradas junto à Justiça.

Esse mesmo segmento que reage à cota é originário de parte de um segmento da sociedade brasileira que entrou no país, no século XIX, com a imigração e o apoio do Banco do Brasil, através do crédito rural, para que fossem trabalhar com salário nas fazendas de café. Vieram trabalhar apoiados e ganharam terras; hoje eles acham que foi por mérito.

Outro exemplo que tem contribuído para a formação de uma sociedade menos desigual são as políticas de inclusão no mercado de trabalho e qualificação de mão-de-obra; o maior desafio é fazer compreender a necessidade da aplicação da Lei 10.639/03 para incluir no currículo oficial das escolas públicas e privadas a obrigatoriedade do estudo da História da África e da Cultura Afro-brasileira. Essa lei resgata uma das principais bandeiras do movimento negro brasileiro. O Centro de Articulação das Populações Marginalizadas – www.portalceap.org.br – tem focado seus objetivos na implementação dessa lei nas escolas, com o Concurso de Redação Camélia da Liberdade, e junto às empresas, promovendo o Prêmio Camélia da Liberdade, para premiar empresas que desenvolvem junto a seus funcionários ações de igualdade racial, salarial e gênero.

Conclusão

É importante ressaltar que a Lei 10.639/03 não foi revogada. Foi alterada para acrescentar o estudo da contribuição das populações indígenas, o que é muito bem-vindo. Nós vamos continuar a defender a contribuição africana e a trabalhar pela implementação desse estudo nas escolas e em todos os setores da sociedade. Não só por que nos atinge em particular mas porque atinge o conjunto da sociedade brasileira. Se não for assim, parece que nós não contribuímos para a construção deste país ou então que só fomos escravos. Não somos só samba, capoeira e culinária. Fomos muito além disso.

Estes são os maiores desafios: ensinar nas escolas do Ensino Médio e Fundamental significa construir para os alunos uma sociedade baseada em novos valores de respeito às diversidades étnicas, raciais e culturais. Isso ajuda na autoestima da população negra e agrega valores da contribuição indígena na formação da população brasileira.

Do contrário, fica parecendo que o Brasil foi formado só por europeus.

Publicado em 10 de junho de 2008

Publicado em 10 de junho de 2008

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