Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

Critérios para o uso de jogos pedagógicos

Domício Proença Júnior

(COPPE/UFRJ)

Resumo

Este artigo discute a oportunidade e explicita os critérios de seleção de jogos para fins pedagógicos na Engenharia de Produção. Identifica a utilidade do uso de jogos pedagógicos como ferramenta de apoio ao aprendizado em situações complexas. Discute os principais problemas enfrentados diante da adoção de jogos pedagógicos, clarificando a natureza e a utilidade de jogos vivenciais e experimentais. Propõe como critérios necessários e suficientes para a escolha de um jogo pedagógico os seguintes quesitos:

  1. o uso pretendido do jogo em termos do projeto e metas pedagógicas de sua aplicação;
  2. o rigor de seu conteúdo, seja em termos informacionais ou conceituais;
  3. o contexto pedagógico em que se pretende utilizar o jogo, à luz dos relacionamentos entre as atividades do jogo e as demais atividades pedagógicas; e
  4. a dinâmica lúdica do jogo, apreciando tanto a repetibilidade de seu uso quanto seu potencial de modificação dos modelos nele contidos.

Palavras-chave: jogos e simulações; complexidade; interdisciplinaridade.

Introdução

A gerência moderna lida com problemas complexos, que exigem abordagens multidisciplinares e até interdisciplinares. O adequado enquadramento e a solução demandam o uso articulado de uma variedade de ferramentas. Uma grande parte da prática profissional de gestores e executivos envolve a correta seleção dos elementos críticos de um problema complexo num ambiente de recursos escassos. A solução desses problemas exige a capacidade de integrar as contribuições de diversos tipos de saber e a aplicação de uma variedade de técnicas. O ensino da capacidade da gestão complexa é um dos maiores desafios no processo educacional. Trata-se de ensinar a capacidade de triagem de informações para além das especialidades, construindo um enquadramento multidisciplinar. Trata-se de ensinar e exercitar a capacidade da síntese.

O desafio do ensino da síntese nasce de dois elementos: em primeiro lugar, resulta da necessidade analítica que orienta a grade curricular. Isso se deve ao recorte do saber em especialidades, sem o qual a aquisição e o aprofundamento do conhecimento seriam impossíveis. Mas, como resultado, acaba-se pensando ao longo dos recortes analíticos de cada especialidade. Isso dificulta a compreensão de que estes recortes são apenas isto: partições úteis de uma realidade una. Em segundo lugar, o ensino da síntese enfrenta o problema de seu exercício em condições controladas. Isso é difícil tanto em função da estrutura analítica da grade curricular - que raramente prevê disciplinas explicitamente integrativas - quanto pela própria natureza do problema. Uma e outra dificuldade podem acabar adiando o processo de integração multidisciplinar para disciplinas mais abertas, de projetos ou de gestão, subestimando-se o conteúdo específico que elas têm que transmitir. De fato, é comum que o exercício da síntese acabe postergado indefinidamente. Nesse caso, o profissional só entra em contato com o problema no exercício profissional.

Uso de jogos pedagógicos

Jogos são um instrumento pedagógico de grande potencial integrador; oferecem a oportunidade de aquisição da capacidade de síntese. O uso de jogos é amplamente reconhecido por esse potencial numa variedade de contextos, como os jogos de guerra das escolas militares ou os jogos de empresa das escolas de negócios. Com toda essa experiência, e apesar de sua comprovada utilidade, o uso de jogos ainda é menos frequente do que seria de se esperar.

Questões recorrentes no uso de jogos

Existe uma ambição compreensível de que o jogo a ser utilizado seja, como é frequente no caso de escolas militares e de negócios, desenvolvido in house pelo curso que pretenda utilizá-lo. Mesmo quando se tem experiência prévia, o desenho de um jogo é sempre uma tarefa difícil. Muitas vezes uma tentativa frustrada acaba traumática. Um insucesso inicial pode dificultar o uso de jogos num departamento ou curso por muitos anos. Pior ainda, a dificuldade de reconhecer um insucesso parcial pode levar à prática exclusiva do jogo desenvolvido in house, impedindo o uso de outros jogos ou até o seu próprio aperfeiçoamento. Há casos em que um jogo parcialmente bem-sucedido acaba levando a um ciclo vicioso de orgulho até corporativo, que evita o contraste entre a "prata da casa" e outros jogos, "ouro dos outros". A adoção de um jogo pedagógico exige dos docentes o mesmo cuidado com que selecionam qualquer outro dispositivo ou instrumento pedagógico.

É preciso reconhecer que o caráter lúdico, de entretenimento, que qualquer jogo precisa ter para ser um jogo, pode ser tomado preconceituosamente como inadequado para o espaço da escola. Esse preconceito se prende - às vezes de forma difusa e até inconsciente - ao juízo de que o processo educacional deva ser difícil. Perceba-se que a questão é realmente de preconceito. Superar as dificuldades do aprendizado é parte de qualquer trajetória pedagógica. O problema é quando se quer acrescentar às dificuldades naturais do aprendizado dificuldades artificiais, seja diretamente - proibindo o uso de computadores em disciplinas que usam cálculos, por exemplo -, seja indiretamente - recusando-se a considerar alternativas que facilitem o processo de aprendizado, como jogos.

Uma sensibilidade particular com relação a jogos diz respeito à confiança (ou desconfiança) quanto a seu conteúdo. Ao contrário de livros-texto, jogos raramente têm sumário ou índice analítico que permita conhecer seu conteúdo em um relance, identificando pontos potencialmente promissores ou problemáticos. Embora a maioria dos jogos apresente um conjunto de referências, é reconhecidamente difícil derivar a forma de seu emprego no desenho do jogo a partir de sua simples listagem. Conhecer a modelagem dos jogos considerados exige um "desmonte" do jogo, através de análise própria, da consulta a especialistas ou da literatura.

Jogos pedagógicos são baseados em modelos de situações reais. Como qualquer modelo, simplificam a realidade, recortando-a ao longo de determinadas perspectivas e para determinados fins. Jogos oferecem um contato simulado com realidade modelada, permitindo tanto um espaço de vivência e apreciação quanto de experimento e reflexão. O que distingue a forma de apreensão desses modelos através do jogo ou da leitura e do estudo é a dinâmica lúdica do próprio jogo. Tanto os modelos utilizados no jogo quanto sua dinâmica lúdica devem ser considerados para que se possa identificar e usar o jogo adequado para os fins pedagógicos que se busca atingir.

É oportuno detalhar os diferentes tipos de usos de jogos para, em seguida, explicitar os critérios de sua escolha.

O uso de jogos para permitir vivências

O primeiro tipo de uso de jogos é o que enfatiza a capacidade que os jogos têm de oferecer a sensação de uma experiência vivida, servindo para um contato com a complexidade do conjunto de uma dada realidade.

Em qualquer situação complexa, um dos principais problemas a ser tratado é a correta percepção do conjunto da situação e a forma como suas diferentes partes se relacionam. A percepção é limitada pelo que se pode observar diretamente, pela necessidade de depender de relatos de outros e até pela perspectiva do conhecimento com que o observador está mais experimentado ou familiarizado. Pode-se observar situações profissionais com a perspectiva, por exemplo, do departamento em que se trabalha ou da persuasão dos que apresentam as informações ou até das inclinações e capacidades pessoais da equipe, dados que podem enviesar a percepção da situação e levar a decisões equivocadas.

Um jogo pode permitir aos participantes um entendimento abrangente de um evento complexo, revelando fatores e relacionamentos, orientando uma percepção amadurecida do todo. Nesse sentido, pode permitir uma vivência da situação.

Durante alguns anos, a disciplina Introdução à Engenharia de Produção foi ministrada no Departamento de Engenharia Industrial da UFRJ com a dupla responsabilidade de permitir aos primeiranistas um contato com a realidade tácita da profissão em que se inseriam e uma sensibilização para com a unidade dos diversos conhecimentos que iram adquirir numa situação real.

A primeira responsabilidade era atendida por um trabalho que envolvia, entre outras atividades, a ida dos alunos a locais de trabalho para entrevistar engenheiros formados em diversos níveis de senioridade. Essas atividades respondiam por 50% da nota na disciplina. A segunda responsabilidade era atendida pelo uso de um jogo sobre ferrovias, em que os alunos eram confrontados com a responsabilidade pela gestão de uma estrada de ferro, e que correspondia aos outros 50% da nota.

O jogo era o foco de diversas atividades, que iam além do próprio ato de jogar. Além de servir de foco para uma introdução sobre engenharia de produção, o estudo do "negócio da ferrovia" era usado como oportunidade de um contato orientado com a bibliografia e com a rede. Embasava uma compreensão crítica das qualidades e dos limites dos modelos do jogo. Este servia para dar direção tanto a um primeiro contato com uma indústria (no caso, de transportes) quanto à experiência com a complexidade de um problema multidisciplinar. Para muitos, esta era a primeira ocasião em que um problema necessitava de tratamento por mais de uma disciplina ou envolvia a necessidade de selecionar informação relevante dentre muitas outras. O propósito final era mostrar como um problema complexo "real" demandava uma mistura particular e consciente das diversas ferramentas que contribuem para sua solução e identificar os ensinamentos tirados daí. Era, portanto, um jogo integrador e motivacional, orientado para ajudar os primeiranistas a se inserir na estrutura curricular de maneira consciente e a adquirir o primeiro orgulho de serem "engenheiros de produção".

A maioria desses resultados era função de modelos de efeito, isto é, orientados para a produção de resultados realistas a partir das decisões dos participantes. O jogo não modelava todos os processos pelos quais esses resultados eram obtidos. Assim, por exemplo, o preço das ações da firma dos participantes era avaliado não por uma apreciação substantiva do potencial de lucro da empresa, mas tão somente por seu patrimônio líquido. O valor das ações caía se o participante vendia ações (indicando falta de confiança) e subia se ele as comprava de volta no mercado (indicando confiança na sua valorização). Os concorrentes aproveitavam-se de uma e outra ação na busca pelo controle acionário da firma dos jogadores. Muitos dos participantes se apercebiam disso e podiam se aproveitar da tibieza desse modelo de diversas formas. Por outro lado, a modelagem das composições ferroviárias era feita através de simulação de processos. Considerava a potência da locomotiva, os gradientes e o volume de tráfego no trecho de passagem, o peso e natureza da carga transportada etc. Nesse caso, a abordagem de gestão da ferrovia se aproximava da realidade o suficiente para que a leitura da bibliografia sobre gestão de estradas de ferro pudesse servir para orientar a tomada de decisão dos alunos. Assim, por exemplo, as alternativas entre segmentação de trechos, desvios de passagem e duplicação de trilhos tinham no modelo efeitos fidedignos em relação ao uso real desses instrumentos de gerenciamento ferroviário.

O jogo não era orientado para a aplicação das ferramentas profissionais da engenharia de produção: tratava-se de um jogo construído para que os participantes pudessem experimentar as ferramentas reais, mas não para se qualificarem profissionalmente em seu manejo. Era usado para permitir a vivência desejada, cujo propósito era interessar e motivar um primeiro contato com uma realidade complexa e induzir uma apreciação do currículo do curso, mas o potencial de comunicação entre a literatura de gestão ferroviária e sua simulação no jogo, permitindo um melhor desempenho, permite tratar do segundo tipo de uso de jogos.

Uso de jogos para realizar experimentos

O segundo tipo de uso de jogos é o que enfatiza a capacidade que os jogos têm de simular uma dada realidade, oferecendo um laboratório para o ensaio de práticas reais. Neste uso, jogos orientam a aquisição de uma apreciação crítica da validade das ferramentas e conceitos aprendidos. Isto exige jogos em que a simulação da realidade é rigorosa e criticamente construída e onde a dinâmica do modelo é a dinâmica da realidade. Isto se traduz em modelos dos processos, onde os resultados nascem da dinâmica destes processos em função das decisões dos participantes.

O propósito deste tipo de uso não é tanto vivenciar (embora a vivência esteja sempre presente), mas sustentar a reflexão e conduzir a realização de experimentos. Um dos objetivos mais corriqueiros deste tipo de jogo é propiciar a identificação de novas abordagens para a solução de problemas, embora eles sirvam igualmente para testar entendimentos e aferir procedimentos. Num jogo deste tipo, é possível testar alternativas de ação, sejam as existentes, sejam as que se deseje adotar. O jogo permite, assim, que se lide com situações que só podem ser obtidas com grande custo, risco ou dificuldade.

Na prática do Grupo de Estudos Estratégicos, parte do Programa de Engenharia de Produção da COPPE/UFRJ, o uso de jogos tem um papel central na trajetória educacional dos alunos. O Grupo trabalha na temática do uso da força, seja na busca da paz e segurança internacionais, seja na produção da segurança e ordem públicas. Para a maioria de seus estudantes, que não tem qualquer experiência militar prévia, é difícil compreender a dinâmica diferenciada da definição de políticas de segurança e defesa, da formulação de estratégias e das expectativas táticas. A leitura sobre combate em terra, mar e ar ou a singularidade de operações de alta complexidade como o policiamento ostensivo ou o resgate de reféns é uma via limitada. De fato, até os que têm tal experiência - seja nas Forças Singulares seja nas polícias - apreciam a oportunidade de uma visão que atravessa perspectivas corporativas ou institucionais e que se relaciona com o tema a partir das dimensões políticas, estratégicas e táticas, através de um enquadramento científico e teoricamente consistente.

Entre os diversos jogos utilizados, um deles se destaca pela sua utilidade no apoio à integração entre as dimensões táticas e estratégicas do uso da força: o jogo de Gestão de Defesa, em que o participante enfrenta uma inteligência artificial num embate que só termina com a derrota completa de um dos lados. No jogo, cada participante atua em dois planos: o da gestão geral das forças de defesa e no controle dos destacamentos engajados em combate. É exatamente essa ligação entre uma e outra instância que faz com que o jogo seja de particular utilidade.

No plano da gestão da organização, o participante tem orçamento limitado, com o qual tem que definir as linhas prioritárias de investimento, instalação, organização, equipamento, pesquisa e desenvolvimento. Tem que considerar, ainda, as prioridades de ação diferenciadas em cada um dos territórios do jogo. Essas decisões conformam suas escolhas em termos da construção das possibilidades de sensoriamento e deslocamento. São as decisões no plano de gestão da organização que determinam os recursos humanos e de equipamento dos destacamentos para cada uma dessas possíveis contingências.

No plano da condução dos destacamentos, o participante assume o controle do destacamento e trava o combate contra um destacamento inimigo. Cada destacamento é configurado de acordo com as alternativas de pessoal e equipamento que as decisões anteriores permitem. O participante assume o controle tático de cada combatente do destacamento, gerindo o combate na forma que julgue adequada para a situação que enfrenta. Nesse contexto, deve considerar a missão que o destacamento tem a cumprir, o tipo de oponente com que se confronta, o terreno onde o engajamento tem lugar, o tempo de que dispõe, as tropas de que dispõe para esta ação e as consequências de suas decisões em termos de baixas civis e danos colaterais. A modelagem do combate é suficientemente realista para que as leituras que o participante fez dos textos de estudos estratégicos e dos manuais de campo e de tática de forças armadas e das polícias possam ser aplicados na situação de combate simulada pelo jogo.

O orçamento disponível para o participante é condicionado a seu desempenho na luta contra o invasor. Cada um dos diferentes territórios onde a ação se passa contribui de forma diferenciada para o orçamento da organização de defesa e prioriza os resultados alcançados em seu próprio terreno. Assim, para além das considerações anteriores, o participante tem que levar em conta a sensibilidade política de suas alternativas e ponderar politicamente o uso de seus recursos e meios em termos dos efeitos sobre seu orçamento.

O jogo serve para o exercício de uma larga parte das considerações relacionadas à discussão de estudos estratégicos, mas principalmente para o experimento com alternativas táticas e para o projeto de força pelo qual se propõe dar conta do desafio da gestão da defesa. Realiza, assim, a ponte concreta entre a temática dos estudos estratégicos e a Engenharia de Produção.

Critérios para escolha de jogos pedagógicos

O que tem que ser considerado é a forma pela qual o uso do jogo apoia o objetivo pedagógico pretendido. A questão passa a ser, portanto, o estabelecimento dos critérios pelos quais são selecionados jogos para os fins pedagógicos específicos de um curso.

Uso pretendido

O primeiro critério na seleção de um jogo para fins pedagógicos é definir qual a ênfase de uso que se pretende: se orientada para a vivência, se orientada para o experimento. Esse critério é o que permite determinar o grau de aceitação de modelagens por efeito, em oposição aos requisitos de modelagem por simulação dos processos.

Quando a meta pedagógica desejada com o uso do jogo é principalmente de informação, percepção ou apreciação da complexidade de um dado assunto, é possível aceitar um jogo que modele muitas dinâmicas por efeito, reduzindo a realidade ao resultado unilateral de uma decisão (isto é, o modelo é do tipo causa e efeito). Diz-se, com alguma imprecisão, que se trata de um jogo didático. Assim, nesse tipo de objetivo pedagógico, o critério é que a dinâmica geral dos relacionamentos contidos no jogo tenha resultados realistas, abrindo mão da fidedignidade dos processos em suas partes.

Quando a principal meta pedagógica desejada com o uso do jogo é instruir, testar ou aperfeiçoar conhecimentos e formulações de um dado assunto, torna-se necessário selecionar um jogo que modele as dinâmicas por simulação, expressando modelos válidos (isto é, que correspondem a um entendimento fidedigno) e criticamente construídos (isto é, que se explicitem e a seus limites). Diz-se, com algum paradoxo, que se trata de um jogo analítico.

É evidente que um jogo analítico serve também como jogo didático. A questão é de custo e de oportunidade. É mais fácil encontrar um jogo que atenda aos requisitos de um jogo didático do que de um jogo analítico. Jogos analíticos tendem a ser mais elaborados e a exigir maior dispêndio de tempo e de preparo para que se obtenha um desempenho satisfatório.

Rigor de conteúdo

O segundo critério na seleção de um jogo para fins pedagógicos é que o jogo não pode ensinar algo que esteja factual ou conceitualmente errado. Este é um critério poderoso, que se refere tanto ao conteúdo informacional contido no jogo quanto à fidedignidade de seus modelos. Um exemplo típico de jogos com conteúdos informacionais equivocados são os jogos em que os dados atribuídos a um país, por exemplo, não correspondem a qualquer dado de realidade; ou quando são inventados arbitrariamente dados ou informações. Como o exercício do jogo irá familiarizar os participantes com os dados contidos, é crucial que o jogo some ao conhecimento e experiência dos participantes. Jogos que lidam com dados inventados ou arbitrários devem ser sumariamente descartados.

Isso não impede que sejam aceitos jogos em que as informações são traduzidas em termos do jogo, conquanto essa conversão seja feita de forma que preserve as dinâmicas ou as proporções relativas da realidade representada. Idealmente, o jogo deve apresentar os dados considerados na mesma forma que a realidade.

Em termos conceituais, é preciso atentar para a base teórica que sustenta as alternativas de informação e os modelos de um jogo. É pouco usual (embora cada vez mais frequente) que os materiais de um jogo explicitem os elementos teóricos que orientam sua confecção e que determinam escolhas quanto à representação da informação e da formulação de modelos. É perfeitamente possível extrair dos jogos quais são seus pressupostos teóricos e modelos. Isso serve para que se possa determinar as características desejáveis ou estabelecer os critérios de recusa de um determinado jogo.

Contexto pedagógico

O terceiro critério diz respeito ao contexto pedagógico do uso do jogo. O uso de jogos pedagógicos envolve mais do que apenas o acréscimo de um jogo às atividades previstas de um curso. Trata-se de considerar o contexto pedagógico, determinando que características do jogo permitem utilizá-lo como uma ferramenta pedagógica propriamente dita. Isso significa que as características do jogo devem ser examinadas à luz da estrutura curricular e do projeto pedagógico do curso (ou da disciplina) para o qual venha a ser considerado. Isso permite considerar três aspectos principais:

  • " O primeiro aspecto a ser considerado é o motivacional: a temática ou dinâmica do jogo deve permitir um elo e, idealmente, deve se ajustar à temática do curso ou disciplina. Por exemplo, a escolha do jogo de ferrovias tinha diversos elementos atrativos, desde a questão da opção rodoviária brasileira e consequente curiosidade sobre ferrovias até a importância da ferrovia na construção das nações industriais, passando pelo escopo relativamente limitado e de alta densidade técnica do mundo das locomotivas, cargas etc. Era um tema de jogo interessante, em que se podia contar com um volume expressivo de referências culturais, técnicas e históricas, e cuja natureza como um setor industrial próprio e específico o fazia objeto legítimo do trabalho de primeiranistas de Engenharia de Produção.
  • " O segundo aspecto diz respeito à aplicabilidade do conteúdo do curso para o jogo: o que o jogo demanda para sua solução deve ser - ou ter sido - objeto de tratamento pelo curso e suas disciplinas. Note-se que o uso do jogo antes ou depois do aprendizado do conhecimento necessário para sua melhor solução é uma decisão prévia, que diz respeito à ênfase de uso do jogo. A diversidade de opções contidas no jogo de ferrovias foi um fator importante. Era essa diversidade que permitia ligar o que se fazia no jogo com um grande número das disciplinas da estrutura curricular.
  • " Finalmente, o terceiro aspecto diz respeito à abertura que o jogo propicia para atividades correlatas ao curso. É necessário que as informações e modelos contidos no jogo dialoguem com outras atividades do curso, seja em termos metodológicos, seja em termos informacionais.

Dinâmica lúdica

O quarto e último critério diz respeito à dinâmica lúdica do jogo, isto é, sobre seus atributos experienciais enquanto jogo. A dinâmica lúdica do jogo expressa uma variedade de considerações que se referem à repetibilidade da experiência ou vivência que o jogo permite. Qualquer jogo apresenta-se ao participante como uma rede de dilemas mais ou menos conexos, oferecendo escolhas e alternativas.

Num extremo, tem-se um jogo que é um quebra-cabeça, isto é, que apresenta um problema que, independente do processo de obtenção de sua solução, não admite mais do que uma única solução. Embute, portanto, um caminho único e ótimo para a obtenção do resultado do jogo. Jogos que têm dinâmicas lúdicas desse tipo raramente fazem com que os participantes joguem mais do que uma (até a descoberta da solução) ou duas vezes (um jogo perfeito).

Noutro extremo, há jogos que admitem um amplo leque de variação em suas condições iniciais, restrições de alternativa ou valoração relativa das regras e componentes do jogo. No limite, são jogos que são tanto kits que admitem uma variedade de configurações quanto jogos em si mesmos (e o jogo original, neste caso, é apenas uma especificação particular dentre as muitas possíveis). Jogos deste segundo tipo permitem modificações até substantivas, tanto dos modelos quanto das condições de contorno e dos valores das variáveis envolvidas. Essa variedade admite, portanto, extrair do mesmo jogo uma quantidade de experiências lúdicas diferentes, motivando que seja jogado várias vezes de diversas formas. Muitos jogos populares acabam desenvolvendo um grupo de aficcionados que desenvolvem ferramentas e cenários que acabam dando um sem-número de variantes de diversos tipos a jogos que não tinham potencial.

Jogos pedagógicos raramente correspondem a qualquer um desses extremos, mas é útil considerar o quanto os jogos considerados se aproximam deles em função das tendências que esses dois extremos trazem para o uso de jogos pedagógicos. A tendência de jogos de uma única solução ("quebra-cabeças") é limitar o uso pedagógico do jogo. Tipicamente, há truques e segredos nesse tipo de jogo, cuja busca pode desviar o foco de atenção da realidade apresentada para o enfrentamento da perversidade, ou superação dos desvios, do próprio jogo. Além disso, são jogos frágeis, vulneráveis à passagem do "truque" entre grupos sucessivos de participantes.

A tendência de jogos kit é de complexificar o uso pedagógico do jogo. Um jogo configurável tem a grande vantagem de poder incluir os participantes na discussão das dinâmicas, equações, estado e variabilidade dos modelos. Assim, por exemplo, pode-se discutir - e pesquisar - a propriedade da modelagem ou dos valores atribuídos aos elementos representados no jogo. O processo de explicitação dos modelos é sempre útil; a questão é o uso que se quer dar ao estudo dos modelos em oposição ao exercício do jogo.

Considerações finais

Jogos são ferramentas pedagógicas poderosas e de grande versatilidade. A seleção de jogos para uso pedagógico pode ser incorporada ao desenvolvimento de cursos e disciplinas com pouco esforço. Jogos oferecem oportunidades de exercício de qualidade no processo educacional; podem ser utilizados tanto para o exercício de vivências quanto como laboratórios virtuais, sustentando a realização de experimentos.

A aplicação de jogos corretamente selecionados produz resultados de qualidade e de grande alcance. É possível extrapolar as experiências da UFRJ e afirmar que a utilidade dos jogos é proporcional à diversidade e à multidisciplinaridade da dinâmica do objeto de estudo. Mas mesmo aplicações pontuais de jogos - seja na forma de jogos-de-informação, seja na forma de simuladores simples - têm um papel importante a desempenhar no processo pedagógico da Engenharia de Produção na graduação e pós-graduação. A complexidade do mundo moderno afirma a utilidade dos jogos como partes do processo educacional diante da tomada de decisão em situações complexas. Foi com a intenção de facilitar esse uso que o presente artigo propôs critérios para escolha e uso de jogos pedagógicos.

Referências comentadas

Como o texto sintetiza alguns anos de experiência no uso e desenho de jogos, pareceu-me mais adequado, apresentar uma breve lista comentada das referências essenciais para o tratamento do assunto, em lugar de notas desnecessariamente complexas.

HUIZINGA, J.Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1971.
CALLOIS, R. Man, Play and Games. Chicago: University of Illinois Press, 2001.
Tanto Huizinga quanto Callois são pontos de contato fundamentais para uma correta apreciação do lugar do jogo na trajetória do aprendizado. Huizinga argumenta que o jogo é a fonte da cultura, e que podem ser identificados desdobramentos do ato de brincar e jogar como chave para um entendimento dos contornos da cultura. Callois, a seu turno, segue adiante de Huizinga para o estabelecimento das bases de uma teoria do jogo (distinta da teoria dos jogos), pela qual se tipifica o caráter essencial dos diversos tipos de jogos.

ABT, Clark C. Simulation and Games for Education. London: Methuen Educational, 1969.
ABT, Clark C. Serious Games. New York: Viking Press, 1970.
Os textos clássicos de Abt permanecem sendo a melhor introdução para o uso de jogos na sala de aula ou em situações de treinamento. Em mais de um sentido, o texto de Abt de 1969 é o que melhor clarifica a questão da falsa seriedade que argumenta contra o desfrute do aprendizado e o que mais incisivamente descreve as oportunidades e benefícios do uso de jogos. O outro texto coleciona instâncias pioneiras de implementação do uso de jogos em ambientes escolares - incluindo a graduação e a pós-graduação - e organizacionais - grandes firmas e forças armadas. O fato de relatar experiências primeiras o faz oportuno para a realidade brasileira atual.

GREDLER, M. Designing and Evaluating Games and Simulations: a proccess approach. Houston: Gulf Publishing, 1992.
Nesta obra, podem ser encontradas análises do uso do computador (e da opção por jogos sem computador) em termos da aplicação pedagógica orientada para a questão da vivência ou da experiência. Servindo como uma introdução ao estado-da-técnica, oferece um sólido panorama como benefício de décadas de experiência no uso de jogos nos mais diversos ambientes pedagógicos, da infância à educação adulta. Apresenta um amplo acervo de erros e acertos nesse uso que podem muito bem pautar a agenda do processo de decisão de adoção de jogos num projeto pedagógico.

Sugestões de sites

  • O site do periódico Simulation & Gaming permanece sendo o site de referência de partida para os que desejem informar-se sobre o uso de jogos para fins educacionais em todos os níveis.
  • O site da International Computer Designer's Association (IGDA) reúne os links mais úteis para os que desejem se aprofundar no assunto.
  • O site Gamasutra é um ponto de referência para os diversos produtos e serviços na área de jogos, cobrindo tanto as áreas de educação e treinamento quanto de entretenimento.

Publicado em 17 de junho de 2008

Publicado em 17 de junho de 2008

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.