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Censura às avessas: um manifesto contra a censura aos militares

Ricardo Corrêa Peixoto

Historiador, pesquisador sobre história da exclusão social

Quebrar tabus exige ousadia para dizer o não dito, da mesma forma como requer prudência e coragem para mostrar a verdade a olho desarmado. E tudo que é ousado, por si só, está fora de lugar, pois implica desacato e atrevimento. Atrevimento para expor aquilo que, por uma questão moral, jurídica ou política, não deveria ser dito. Daí a quebra de tabus revelar silêncios propositais da História que, por si só, também são história.
(Marc Ferro, em Os tabus da história, p. 7)

São de estarrecer os recentes episódios a que assistimos neste país, em que uma elite política e intelectual inequivocamente ressentida se vinga inexoravelmente contra seus adversários do passado; essa mesma elite que, sob o manto da autopiedade, conclama o choro, a raiva e, por conseguinte, toda sorte de sentimentos medíocres a fim de chancelar suas práticas e preservar seus interesses egoísticos.

Não se trata de advogar as práticas venais perpetradas pelos militares no período da ditadura: nada justifica a violação da humanidade e dos substratos morais e éticos de nossa frágil civilização; entretanto, não podemos nos furtar a buscar na História a contextualização para esses episódios, enfim, dos aspectos que via de regra consubstanciam a tomada de poder, seja qual for a modalidade ou rótulo que ostente.

A ditadura militar brasileira não representa uma exceção; se ela foi possível é porque existia naquele período histórico uma atmosfera que favorecia aquele tipo de prática truculenta e antidemocrática, haja vista que o período em questão era permeado por uma ebulição política que, por sua vez, ameaçava os interesses de gente importante, que viu também no uso das armas a salvaguarda de seus projetos políticos e/ou econômicos; os militares não agiram sozinhos, tiveram apoio de grandes empresários, de multinacionais e do capital estrangeiro como um todo.

Trocando em miúdos, seria como no livro de George Orwell, A revolução dos bichos, em que os animais de uma fazenda se rebelam contra seus donos (os seres humanos) e então os expulsam da fazenda tomando para si o controle, acreditando assegurar sua tão sonhada liberdade; só que, após essa expulsão, um grupo de animais mais espertos toma para si a liderança e inicia o estabelecimento de leis que doravante seriam sagradas e, portanto, invioláveis, o que pouco mais a tarde se mostraria uma patente falácia, uma vez que tudo que norteou aquela insurreição foi esquecido. O livro trata de uma paródia que serve para todas as formas de poder, mesmo aquelas que se revestem de um manto de ternura; também esses podem se mostrar extremamente cruéis e desumanas.

Seria como o filósofo Friedrich Nietzsche disse certa vez: “os governantes se utilizam de nossas fraquezas/anseios para nos governar” (paráfrase). Isso aconteceu no Brasil, dito país de incultos, mas também aconteceu na Alemanha, reduto de grandes intelectuais do mundo; lá também o rancor, o revanchismo, os sentimentos mais vis, remanescentes da Primeira Guerra Mundial, forneceram o cimento para a construção do nazismo e possibilitaram a consecução das barbáries que a história testemunhou. Um filósofo disse, parafraseando: “o mal não somos nós e nem os outros; o mal é construído pelo tecido que fiamos entre nós”.

Os militares contemporâneos estão pagando por erros de seus predecessores; lamentavelmente eles são estigmatizados e culpabilizados por esses erros, seus equipamentos vilipendiados, em estado de franca obsolescência, espelham bem o grau de relevância reservado a eles; recebem soldos ínfimos, em comparação com as demais carreiras atreladas à esfera federal, como comprovou o deputado federal Jair Bolsonaro, que trata a questão como um ato de violência contra os militares, que, por não possuírem o direito de manifestar-se, emudecem diante da crueldade e do sadismo, assistindo com um nó na garganta a seu empobrecimento e alijamento.

A pergunta é: até quando nossos governantes irão tratar os militares com tamanho desdenho, desprestigiando essa gente brava que desafia a exiguidade de recursos, que contraria a lógica ao desbravar as matas, o céu e os mares através de meios obsoletos que põem em risco suas vidas, tudo para defender os interesses do Brasil? Os militares não são “eles”, somos “nós”; não são corsários, mercenários, estrangeiros; são brasileiros, pais de família, gente que trabalha, qualifica-se para bem cumprir sua missão, pessoas simples que acreditam no Brasil.

Gostemos ou não, os militares são os maiores exemplos de civismo e patriotismo, tão rarefeitos nestes tempos em que a globalização transforma o mundo numa aldeia de autistas e esquizofrênicos sociais. Não podemos vê-los eternamente como antagonistas; são só brasileiros e não estão acima da sociedade civil, mas trabalham para conservá-la, preservando suas conquistas seculares.

Recentemente recebemos a notícia de que um oficial do Exército, general Heleno, que responde pelo comando na região amazônica, fez um discurso em que, dentre outras coisas, falou sobre a política indigenista brasileira, questão em que teria propriedade para tratar, uma vez que vivencia na prática o malogro dessa política que ele diz ser comprometedora para a soberania brasileira. Ora, não estamos dizendo que o general está totalmente certo nem totalmente errado, mas é preciso estabelecer um diálogo, trazer a questão para debate; não podemos demarcar um pedaço de terra do tamanho do Estado de Sergipe e entregar a seis mil pessoas e pronto; se temos um oficial competente, experiente, que tem conhecimento de causa, vamos ouvi-lo; afinal, estamos em uma democracia, ou não estamos? Onde estão os entusiastas da velha e boa democracia? Então um militar tem que ser um ser inanimado, simbiônico, que só tem permissão para dizer “sim, senhor!, não senhor!”, só serve para marchar no sete de setembro e fazer figuração em palanques?

Logo, mandar simplesmente repreender o general só porque expressou uma objeção que pressupõe uma contribuição dialética para o trato dessa complexa questão seria motivo justificável para uma punição pública? Castigá-lo com constrangimento nacional – por que não falar? –, com censura, a tão ardilosa e repugnante censura, a censura às avessas, a censura dos democratas, dos filantropos, de gente que abraçou a liberdade como causa e hoje amordaça aqueles que a defendem, gente suficientemente enérgica, que jurou suas vidas à defesa do Grão-Pátrio?

Os militares merecem mais respeito por tudo aquilo que fizeram e fazem pelo país; não podem continuar a ser negligenciados, esquecidos e marginalizados do processo político.

Fica aqui o protesto contra o silêncio que há mais de duas décadas está sendo impetrado contra esses resignados cidadãos fardados.

Referência

FERRO, Marc. Os tabus da história (trad. Maria Ângela Villela). Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.

Publicado em 1º de julho de 2008

Publicado em 01 de julho de 2008

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