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Doutor Fausto 2008

Pablo Capistrano

Escritor, professor de filosofia

Crônicas filosóficas

Olhando as gravuras que o pintor francês Eugène Delacroix fez para ilustrar a peça Fausto, de Goethe, eu penso comigo mesmo: “bem que as pessoas que trabalham com a política partidária no Brasil podiam prestar mais atenção na literatura”.

Na verdade, o Fausto de Goethe é baseado em um personagem real que virou lenda e alimentou a literatura popular de fins do Renascimento. O mundo do doutor Johannes Georg Faust, nascido por volta de 1497 na cidade de Knittinglen, era uma zona de fronteira entre as antigas artes esotéricas medievais e o universo da ciência moderna. Nas universidades, estudavam-se lado a lado, em um contínuo desconcertante, Astronomia e Astrologia, Química e Alquimia, Biologia e Magia natural.

Talvez por isso, naquela época, pairava sobre os médicos e os sábios uma estranha aura sobrenatural. O fato é que, depois da morte do Fausto histórico, toda uma mitologia sobre sua figura caiu no gosto popular e serviu para fomentar diversas croniquetas fabulosas sobre um suposto pacto que o dito médico teria feito com o diabo.

Durante todos os séculos XVI e XVII correram lendas sobre Fausto. Dizia o povo que ele teria virado teólogo na universidade de Heidelberg, que teria abusado de crianças em uma cidade chamada Kreuznach, que teria sido banido de Ingolstadt como charlatão após ter lido o horóscopo para um bispo. Mil e uma histórias que misturam faustos reais e mitológicos em uma grande salada de prosa germânica e que acabaram por influenciar um livreiro de Frankfurt, chamado Johann Spiess, que compôs em 1587 a primeira obra literária de uma série de autores, que inclui nomes como Christofer Marlowe (1563-1593), um jovem escritor inglês que, segundo Harold Bloom, teria sido tão bom quanto Shakespeare, se não tivesse morrido com trinta anos, assassinado em meio a uma briga de bar (viu? Cachaça é uma m&#*@, mesmo...).

Desses, Lessing e Goethe são os mais famosos a tratar do pacto do Doutor Fausto com Mefistófeles, um diabo curiosíssimo, bem diferente do Satã heroico composto pelo poeta inglês John Milton no seu O Paraíso Perdido. O esperto Mefistófeles oferece a seu contratante mais vida, mais poder e rejuvenescimento, em troca da sua alma.

Em 1947, seguindo a tradição dos Faustos alemães, Thomas Mann publica Doutor Fausto, uma novela de 709 páginas (na edição brasileira) que eu ando lendo por estes dias. Ela me parece definitiva no campo da tradição fáustica alemã. Mann, que é filho de uma brasileira, conta a história de Adrian Leverkühn, um músico talentoso, da mesma geração de Adolf Hitler, Heidegger e Wittgenstein, que, após um diálogo com o diabo em um sonho, troca sua alma pelo poder de realizar uma grande obra artística. Na verdade, essa parece ser uma imagem literária para o grande pacto que a nação alemã fez com Hitler e que a levou, fausticamente, à grande devastação da Segunda Guerra e à quase total destruição da alma e da cultura de seu povo.

Quer seja o poder, a juventude devolvida, o prazer ou o orgulho de produzir uma obra artística definitiva, a figura do diabo, com sua mitologia ligada profundamente ao inconsciente coletivo da humanidade, sempre aparece propondo um pacto, um acordo, uma composição, um contrato que parece ser vantajoso em um primeiro momento, mas que sempre tem no seu contraponto a dureza do preço a ser pago pela prestação do serviço. Coletivamente, Mefistófeles é identificado com a força descomunal do capital que arrasa a terra e trucida o mundo natural para oferecer poder ao homem, mas pode aparecer na mente de qualquer um (inclusive daqueles que, por falta de tempo, interesse ou capacidade nunca leram um livro) como um propositor de pactos sedutores de poder. Entendeu por que seria interessante que políticos conhecessem literatura? Talvez eles prestassem mais atenção a seus acordos.

Mas nem sempre a leitura de um livro de 709 páginas é suficiente porque, como diz Thomas Mann pela boca do narrador do seu romance, “quem crê no diabo já lhe pertence”. Isso também vale para o universo da política, principalmente em época de eleição.

Publicado em 1º/07/08

Publicado em 01 de julho de 2008

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