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A arte de cultivar jardins
Pablo Capistrano
Uma madrugada dessas acordei sobressaltado: “Meu celular! Meu celular!”.
Não sei se você já passou por isso, mas acredito que um dos distúrbios mais significativos de nossa era, junto com o diabetes, a pressão alta e a síndrome do pânico seja o medo de perder o próprio celular. Ultimamente eu tenho percebido que as pessoas andam se apalpando, colocando a mão nos bolsos, girando o olhar em volta ou por cima das mesas, prestando atenção nos assentos do cinema quando se levantam no fim da sessão. Tudo isso é um sintoma da grande doença contemporânea: a ansiedade de perder o próprio celular. Mas o que há de tão importante em um celular?
Comprei meu primeiro Motorola em 1997, um tijolão preto com uma anteninha ridícula. Isso significa que vivi 23 dos meus 33 anos sem um aparelho celular. 23 anos. Quase um quarto de século sem um celular; e sabe o que é mais interessante? Eu era feliz. Sim, era feliz sem um celular. Aliás, durante 23 anos eu nunca tive a mínima necessidade de um celular. Podia sair de casa e ligar para a minha namorada, marcando um encontro com hora e local certo e me deliciar com a incerteza da espera. Vivia feliz sem rádio digital, sem acesso à Internet, sem poder enviar mensagens, mandar fotos ou registrar algo com uma câmera portátil. Minha vida era tão boa e serena sem nenhum apetrecho que pode ser encontrado em um celular quanto a vida de qualquer humano médio em uma grande cidade.
Mas tudo mudou depois que eu comprei meu primeiro aparelho Motorola. Hoje eu sou um dependente digital. Um viciado eletrônico. Um maníaco refém das operadoras de telefonia móvel. Hoje, eu acordo de madrugada com medo de ter deixado meu celular em cima da mesa, da sala de aula. Hoje, só Epicuro pode me salvar.
Nascido em Atenas no ano de 341 antes da era comum, Epicuro partiu para Samos, na costa da Turquia, ainda criança, retornando à sua terra natal em 321. Muito provavelmente foi Epicuro o filósofo mais difamado da história ocidental. Objeto de distorção por parte da Igreja cristã romana, seu pensamento se transformou em uma espécie de febre hedonista, uma busca desenfreada pelos prazeres da carne e do corpo, a ponto de ter seu nome vinculado a uma famosa revista de futilidades da Inglaterra, Epicurean Life (especializada em publicar artigos sobre hotéis, iates e restaurantes). Mas Epicuro não é nada daquilo que dizem que ele é.
Vivendo em um período de decadência de Atenas, a geração de Epicuro amargou os dissabores da desagregação política e econômica da Grécia clássica. Sem expectativas reais de atuação política, Epicuro preferiu se retirar da vida pública e fundou sua própria escola filosófica, longe dos muros da cidade e do burburinho da praça do mercado. O Jardim era uma espécie de comunidade alternativa; talvez a primeira comunidade hippie da história. Lá se buscava a liberdade econômica através do cultivo da terra, da amizade dos vínculos de afeto e do diálogo e da reflexão genuína sobre o que o homem deve cultivar para encontrar um estado de felicidade em sua vida. A busca pela tranquilidade da alma e pela saúde do corpo era o grande objetivo da escola de Epicuro. Mas para se chegar a essa serenidade seria necessário enfrentar o desejo.
Filho da ausência, o desejo é um tipo de prazer diante daquilo que não se tem. Desejar é sofrer diante da ausência. Quando eu quero aquela Toyota, ou aquele apartamento com vista para Ponta Negra, ou aquela bolsa Prada, ou aquela modelo gostosa da propaganda de cerveja, eu quero o que eu não tenho e isso me leva a um estado de ansiedade e intranquilidade que me tira do eixo. Por isso é tão importante para o consumo em um grande shopping que o desejo das pessoas seja ativado mediante um conjunto de mecanismos artificiais de produção de necessidades. Diante da ansiedade do desejo, seu comportamento se transforma, e você usa mais, fala mais, olha mais, bebe mais, corre mais, come mais, gasta mais e pensa menos. Sua vida se torna um ciclo sem-fim de desejo, ansiedade e consumo, em busca da blusa perfeita, do computador mais moderno e do namorado ou namorada mais fashion. Diante desse estado de coisas, você se prende a um mundo de necessidades forjadas e perde o sono à noite pensando que perdeu seu celular e que, por isso, sua vida não faz sentido.
Diante desse quadro patológico coletivo, Epicuro propõe um novo tipo de prazer oposto ao desejo. O prazer na saciedade é o prazer na presença daquilo que se necessita e não naquilo que se deseja. Para Epicuro, feliz é o homem que busca os prazeres naturais e necessários à vida. Aquele que, ao invés de estar escravo das próprias compulsões e do consumo idiota, busca a satisfação naquilo que tem, e não a ansiedade por aquilo que não pode possuir. O jardineiro Epicuro nos ensinou que a felicidade genuína só pode ser atingida quando a alma está serena, e sua serenidade só pode ser atingida quando aprendermos a não trocar nossas noites de sono por causa do medo de perder aquilo que temos ou pelo desejo de possuir aquilo que ainda não chegamos a ter. Afinal, “a quem não basta pouco, nada basta”.
Publicado em 29 de julho de 2008
Publicado em 29 de julho de 2008
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