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Léxico e Semântica

Juliana Duarte dos Santos

Análise do poema Formas do Nu de João Cabral de Melo Neto

“As coisas têm exatamente o nome que eu dou a elas.”
(Lewis Carroll. Alice no país das maravilhas)

Todos os falantes de uma língua conhecem milhares, ou mesmo dezenas de milhares de palavras. Conhecer uma palavra implica conhecer o som (forma) e o significado (conceito) dessa palavra. À unidade som-significado dá-se o nome de signo linguístico. Nesta monografia, serão analisados apenas os tópicos referentes à significação da palavra, ou seja, suas propriedades semânticas.

O homem olha o mundo e nomeia os seres. Uma das funções do léxico é dar nome ao que antes era desconhecido. À medida que o mundo se modifica, a língua – como um organismo vivo – precisa acompanhar essa mudança. Surgem, então, palavras novas, ao passo que outras entram em desuso.

Os substantivos, verbos, adjetivos e advérbios constituem a maior parte do vocabulário, já que essas classes estão abertas a novas palavras, que são criadas constantemente. As palavras pertencentes a estas classes são consideradas palavras lexicais, pois descrevem o mundo que está fora da linguagem.

As outras classes gramaticais constituem, em geral, conjuntos “fechados”. Não se criam com facilidade novas conjunções ou preposições, por exemplo. As palavras pertencentes às classes “fechadas” não representam os seres do mundo, ou seja, não se referem a uma realidade extralinguística. São palavras puramente gramaticais, pois só existem no universo linguístico (para relacionar palavras etc.).

Ao dizer que o adjetivo acompanha o substantivo, tem-se como foco o seu papel gramatical, e não o seu papel lexical. Toda palavra pertence a uma das dez classes gramaticais, e, quando se diz que uma palavra pertence a determinada classe, estão sendo ditas uma série de características gramaticais desta palavra.

Da mesma forma que a palavra pertence a determinada classe (análise morfológica) e exerce determinada função (análise sintática), ela está intrincada em uma rede de significações, que são os campos lexicais (análise semântica). Estes significados se relacionam de diversas formas: antonímia, sinonímia, polissemia etc.

Não existem duas palavras exatamente com o mesmo significado. É através das propriedades semânticas que se pode precisar as mais sutis diferenças de significado, cabendo ao falante optar pela palavra que melhor atenda ao efeito desejado.

Nesta monografia será feita uma análise do poema Formas do Nu, de João Cabral de Melo Neto, tendo como foco sua laboriosa escolha, no que diz respeito ao léxico, de forma a criar um efeito estilístico a partir da exploração das relações de sentido.

Breve histórico dos estudos de semântica

A semântica é um domínio da linguagem cuja investigação científica tem apresentado dificuldades, devido, principalmente, à amplitude e à complexidade dos fenômenos relativos à significação. Os estudos sobre o léxico não seguem os mesmos princípios e critérios, além de serem muito mais numerosos e variados do que os demais paradigmas da língua.

A rápida evolução linguística ocorrida nos últimos anos propiciou uma ampliação dos conhecimentos acerca da gramática, porém não deu conta da semântica com o mesmo rigor. Em plena década de 1960, os especialistas assinalavam a inexistência de trabalhos abrangentes de semântica:

Ao contrário de áreas linguísticas relativamente mais amadurecidas, como a fonologia e a sintaxe, a semântica não existe ainda como um conjunto de propostas para a sua criação. (...) Assim, a única maneira que se tem de descrever de modo preciso a atual situação da semântica é mostrar parte de sua heterogeneidade. (Fodor e Katz, 1964, citado por Marques, 1996 – p.8

Durante este período, o estudo do significado se restringiu a tentativas de integração do semântico ao gramatical. Dez anos mais tarde, a complexidade e heterogeneidade deste quadro ainda eram objetos das seguintes considerações:

É tal a diversidade de enfoques, que é possível ler dois livros de semântica e praticamente nada encontrar em comum entre eles. Nenhum autor tem condições de fazer um levantamento global do campo de conhecimento da semântica – ou, pelo menos, se o fizer, vai terminar com um levantamento superficial sobre ‘o que os outros pensaram’ acerca de significado. (Leech, 1975, citado por Marques, 1996 – p.8-9)

A partir daí, aos poucos, foi acontecendo uma decadência progressiva da análise gramatical, cedendo lugar para a revalorização da leitura e da produção textual.

Porém, a complexidade e a diversidade dos estudos acerca do significado resultam numa dificuldade de se realizarem trabalhos com fins didáticos, tendo em vista que não há uma definição de que conteúdos devem ser abordados e de que forma.

A pouca atenção dada ao estudo da significação é uma das maiores deficiências do atual ensino de língua materna. Isto se tornou um grande problema, tendo em vista a importância destas questões para a vida das pessoas, além do peso que lhes é atribuído como instrumentos de avaliação importantes, tais como o ENEM e os vestibulares.

Encontrar um ponto comum na análise dos significados é tarefa difícil, e talvez esta seja a grande causa do fracasso escolar em relação ao ensino da interpretação de textos, que é hoje uma das maiores dificuldades dos estudantes de ensino fundamental e médio.

Definição de semântica

A semântica, a princípio, fora chamada “semasiologia”, por volta de 1825, quando foi incluída como subdivisão de um curso, ao lado de outras disciplinas (como a etimologia e a gramática). Esta seria uma disciplina nova, histórica, que estudaria os “princípios que presidem à evolução do significado das palavras”.

O vocábulo “semântica” é utilizado pela primeira vez em 1883, em um artigo publicado numa revista de estudos clássicos, onde se propõe a nova “ciência da significação”:

O estudo que propomos ao leitor é de natureza tão nova que nem chegou ainda a receber um nome. A preocupação da maioria dos linguistas tem-se voltado sobretudo para a análise do corpo e da forma das palavras: as leis que presidem à alteração de sentidos, à escolha de novas expressões, ao nascimento e à morte das locuções foram deixadas à margem ou apenas acidentalmente assinaladas. Como este estudo, do mesmo modo que a fonética e a morfologia, merece ter seu nome, nós o chamaremos semântica (do verbo semaínein), isto é, a ciência das significações. (Bréal, 1925, p. 9-97, citado por Marques, 1996 – p. 33)

A partir daí, o termo semântica se generalizou na linguística ocidental, sobrepondo-se a outros que derivavam do mesmo radical grego sema – que designa signo.

Manoel P. Ribeiro define sema como “unidade mínima de significação, ou seja, cada um dos traços significativos de um conjunto (semema) de um vocábulo”; e semema como “conjunto (feixe) de traços semânticos chamados semas (unidades mínimas não suscetíveis de realização independente)”.

Rodolfo Ilari e Wanderley Geraldi optam por não apresentar uma definição para semântica. Logo no primeiro capítulo de Semântica, eles fazem a seguinte colocação:

Espera-se de um livro de iniciação sobre qualquer disciplina que comece por uma ou mais definições da disciplina em questão, que delimite claramente o conjunto de fatos a que a disciplina se aplica, e que enumere e ilustre seus conceitos centrais. Uma introdução à semântica construída segundo esse modelo começaria provavelmente por afirmações genéricas [...] duvidamos que esse enfoque fosse realmente esclarecedor para o leitor. (Ilari; Geraldi, 1998 – p.5)

Mattoso Câmara Jr. define a semântica como sendo o estudo da significação das formas linguísticas que, em regra, se focaliza apenas na significação externa das palavras, concentrada no radical. Esta pode ser histórica (diacrônica) ou descritiva (sincrônica).

A perspectiva histórica tem como foco as mudanças de significação que as palavras sofrem com o passar do tempo, procurando-se depreender princípios gerais que orientem intuitivamente estas mudanças. Assim, defende-se que existem causas de naturezas diversas que justificam as mudanças de significação ou evolução semântica.

A perspectiva sincrônica, ou estática, descritiva, tem como objeto de estudo o conjunto dos fatos contemporâneos de uma língua, em qualquer época.

Sincronia designa um estado da língua, em oposição a diacronia, que designa fases de uma língua na sua evolução. Uma abordagem sincrônica da semântica tem como foco a intrincada rede de identidades e diferenças que constitui o significado.

Nesta monografia dar-se-á prioridade à abordagem da perspectiva descritiva, sincrônica, que estuda a significação atual das palavras, levando em conta a polissemia de cada uma, seus campos semânticos e as relações de sentido.

Porém, estas duas perspectivas nem sempre andam separadas. Como veremos mais adiante, vários estudos semânticos recorrem à etimologia, por exemplo, para diferenciar polissemia de homonímia, que são categorias pertencentes à perspectiva sincrônica.

Léxico e Gramática

A semântica e a gramática não devem ser tratadas como disciplinas que se opõem. Ao contrário, deve-se entendê-las como disciplinas complementares, que se auxiliam. Mesmo para se realizar uma análise do ponto de vista da sua significação, refere-se inúmeras vezes à forma.

Rodolfo Ilari e Wanderley Geraldi têm o seguinte posicionamento a esse respeito: “toda análise semântica pressupõe que sejam dadas de antemão informações sintáticas sobre as expressões”.

O linguista francês André Martinet estabeleceu uma oposição entre unidades lexicais e unidades gramaticais. Ele chama de dupla articulação a propriedade que a linguagem humana tem de estruturar-se em dois planos: o plano do conteúdo e o da expressão. O primeiro, diz respeito às unidades significativas e o segundo às unidades não significativas.

O plano do conteúdo – léxico-gramatical –, que inclui proposições, palavras, raízes e afixos, foi chamado primeira articulação, e o plano da expressão, cujas unidades são desprovidas de significado, foi chamado segunda articulação.

José Carlos de Azeredo apresenta visão contrária a essa maneira de opor léxico e gramática. Para ele esse tipo de oposição tem como inconveniente o não reconhecimento do caráter lexical dos artigos, preposições, pronomes e conjunções. Segundo a tradição, essas formas seriam desprovidas de morfema lexical.

Este autor defende a ideia de que tais unidades pertencem ao léxico tanto quanto os verbos, substantivos e adjetivos, uma vez que todas elas vêm listadas no dicionário, têm um significado que compete ao dicionário informar e cada uma precisa ser aprendida como uma unidade lexical independente.

E acrescenta a esses argumentos que:

Não há regra para a aprendizagem do significado de esse, assim, o, quando, desde, até, como não há regra para a aprendizagem do que significam fosfeno, adrede, hialino, prelibar. No entanto, sabido que ‘desde’ é uma preposição, pode-se prever sua posição na frase; sabido que ‘o’ é um artigo, pode-se prever sua variação para concordar em gênero e número com o substantivo; sabido que ‘prelibar’ é verbo, pode-se garantir que, dado o contexto apropriado, teremos prelibamos, prelibem, prelibasse etc. (Azeredo, 2007 – p. 13)

Um dos problemas resultantes da separação das noções de significação e de gramática se nota nas próprias definições das nomenclaturas gramaticais, que ora se utilizam do critério semântico, ora do critério formal e ora do critério funcional. De fato, há noções gramaticais que são bastante difíceis de serem definidas, e, em alguns casos, um só critério não é suficiente para dar conta do fenômeno.

As noções gramaticais devem ser ensinadas segundo os três critérios, já que toda unidade linguística traz uma forma, desempenha uma função (num dado contexto) e é provida de um significado.

Relações de sentido

As relações de sentido entre as palavras podem surgir por sinonímia, antonímia, homonímia e polissemia. Para refletirmos sobre essas relações, será feita uma descrição destes aspectos semânticos, onde serão confrontadas as visões de diferentes estudiosos do assunto.

Na obra de Rodolfo Ilari e Wanderley Geraldi não foram encontradas as definições para as palavras sinônimas, antônimas, homônimas e polissêmicas, mas sim estas palavras exemplificadas em enunciados. Quanto à questão da polissemia, nota-se que neste texto ela está relacionada com a ambiguidade.

Sinonímia

A sinonímia lexical é uma relação entre dois itens onde ocorre uma identidade de significação.

Ex.: Levar / conduzir; subir / elevar; limpar / purificar; lento / lerdo; liso / plano; rápido / ligeiro / ágil / lépido; medroso / temeroso; áspero / rude / tosco / grosseiro.

Antônio Houaiss a define como sendo uma “relação de sentido entre dois vocábulos que têm significação muito próxima, permitindo que um seja escolhido pelo outro em alguns contextos, sem alterar o sentido literal da sentença como um todo”.

Mattoso Câmara acrescenta que tal relação pode-se estabelecer entre “dois ou mais termos” e que este “é um fato essencialmente sincrônico, pois diz respeito à significação dos termos num estado linguístico dado”.

Segundo ele, a significação da palavra é o conjunto dos contextos linguísticos em que esta pode ocorrer, logo é impossível encontrar dois sinônimos perfeitos. Palavras consideradas sinônimas sempre passam por algum tipo de especificação, seja de sentido ou de uso, que irá determinar a escolha do locutor. A escolha é uma procura pela “palavra exata”, uma vez que duas expressões não são igualmente adequadas a um determinado fim.

São antigos os argumentos contra a existência de sinônimos perfeitos, que fariam com que existissem duas línguas em uma mesma língua. Na maioria dos sinônimos há uma ideia geral, que é comum a todos, e ideias especiais que os especificam. Porém, há palavras que são realmente equivalentes, que apenas se diferenciam pela forma, por questões sociais ou geográficas, conforme “tangerina / mexerica”. Logo, existem sinônimos perfeitos.

Nos caso de sinônimos “imperfeitos” – aqueles que contêm algum traço de diferenciador - a escolha vocabular pode se dar a partir da exigência de um campo semântico, especificado pelo contexto; ou da preocupação do locutor em respeitar determinado nível de fala; ou, ainda, para acrescentar juízo à informação. Por exemplo, percebe-se nos vocábulos “lento” e “lerdo” que foi acrescido a este último um juízo pejorativo.

Antonímia

Antônio Houaiss define antonímia como sendo uma “relação de sentido que opõe dois termos”. Segundo ele, esta oposição pode se dar sob a forma de uma gradação (grande / pequeno; jovem / velho), ou numa reciprocidade (comprar / vender, perguntar / responder), ou, ainda, numa complementaridade (ele não é casado / ele é solteiro).

Mattoso Câmara, recorrendo à morfologia, opta por fazer uma abordagem da antonímia sob três aspectos diferentes:

  1. palavras de radicais diferentes; ex.: bom / mau;
  2. palavras de uma mesma raiz, numa das quais um prefixo negativo cria oposição com a raiz da outra, negando-lhe o semantema; ex.: feliz / infeliz;
  3. palavras de mesma raiz que se opõem pelos prefixos de significação contrária; ex.: excluir / incluir.

Diz-se que um café está “amargo”, em oposição a doce. Às laranjas que não estão doces, diz-se que estão “azedas”. A água dos rios é – a princípio – insípida, porém, em oposição à água salgada do mar, se diz que os rios têm água “doce”. Logo, a aplicabilidade de alguns adjetivos se dá a partir da relação com o seu antônimo. No caso da palavra “doce”, tem-se como antônimo “amargo” ou “azedo” ou “salgado”, de acordo com o contexto em que esta ocorre.

Homonímia

 Antônio Houaiss define a homonímia como sendo uma “relação entre formas linguísticas que, com significados diferentes, têm a mesma forma gráfica e fônica ou apenas fônica”.

Na definição dada por Manoel P. Ribeiro, consta que a forma gráfica das palavras homônimas não é necessariamente a mesma: “vocábulos que, geralmente, se pronunciam da mesma forma, mas cujo sentido e, às vezes, a ortografia são diferentes”.

O mesmo autor apresenta duas distinções para os homônimos quanto às grafias: Os que possuem pronúncia e grafia iguais, classificam-se como homônimos perfeitos: lima (ferramenta) / lima (fruta). Os que são iguais na pronúncia, mas diferentes na grafia, chamam-se homônimos homófonos: seção / cessão / sessão; apreçar (fazer o preço) / apressar (acelerar).

Porém, Mattoso Câmara nega a existência de homônimos homófonos, como em colher (verbo) e colher (substantivo), apoiando-se no argumento de que há uma diferença fonológica nesses casos. No exemplo dado, o primeiro vocábulo apresenta vogal fechada e, o segundo, vogal aberta.

A definição dada por Mattoso Câmara acrescenta às dos demais autores estudados que a homonímia é a “propriedade de duas ou mais formas inteiramente distintas, pela significação ou função, terem a mesma estrutura fonológica”.

Para ele, a homonímia se diferencia da polissemia pela maneira como os morfemas aparecem nos vocábulos e os vocábulos nas sentenças. Quando a distribuição for diferente, tem-se a homonímia. Quando for igual, tem-se a polissemia. Por exemplo, canto (substantivo) / canto (verbo) são homônimos, uma vez que nos padrões das sentenças se distribuem de maneira diferente: Um canto alegre / Canto alegremente.

Polissemia

A polissemia é a propriedade que a palavra tem de assumir vários significados que se definem e precisam dentro de um contexto.

Ex.: o trem parou / a chuva parou / o relógio parou / a música parou

Pode-se pensar a polissemia como sendo o contrário da sinonímia, já que se trata do relacionamento de um só significante com vários significados, ao passo que a segunda trata de diferentes significantes com um só significado.

Existem estudos comparativos entre a polissemia e a homonímia que levantam questões do tipo: perante uma forma escrita que tem dois significados, devemos dizer que se trata de uma palavra com diferentes significados (polissemia) ou de duas palavras com a mesma forma (homonímia)? Em vários estudos semânticos recorreu-se à etimologia para diferenciar polissemia de homonímia, sendo difícil estabelecer tal diferença.

Vários desses estudos utilizam a sincronia e a diacronia para estabelecer a diferença. Quando as palavras coincidem foneticamente em sua evolução histórica (coincidência de sua estrutura fonológica), tem-se a homonímia, que é um fenômeno diacrônico. Sincronicamente, a homonímia é uma polissemia, numa palavra com duas significações.

Ex.:      vandunt > vão (verbo)

            vanum > vão (adjetivo)

De acordo com Antônio Houaiss, um dos principais casos de polissemia é o uso figurado, por metáfora ou metonímia, por extensão de sentido, analogia etc.

Assim, a polissemia pode ser considerada um mecanismo que compensa o caráter redutor que a linguagem possui. Como a língua não está provida de recursos para nomear todos os objetos da nossa percepção, a linguagem poética se apresenta como uma possibilidade de se fraturar a superfície da realidade.

Campo Lexical

As palavras são sinais que se formam e se estruturam na mente humana a partir de uma complexa e imprevisível rede de associações. Os significados se devem ao modo como o conhecimento do mundo é organizado, em categorias socialmente estáveis e culturalmente relevantes.

As experiências de mundo são organizadas em campos lexicais, por meio de categorizações. Partindo-se das propriedades semânticas contidas numa palavra, pode-se definir, pelo menos parcialmente, seu significado. Uma mesma propriedade semântica pode fazer parte do significado de várias palavras diferentes, constituindo, assim, um campo lexical.

O significado de uma palavra pode ser especificado, através da anteposição de um sinal de “mais” ou de “menos” para indicar a presença ou ausência das propriedades semânticas que a definem, conforme o quadro abaixo:

Quadro 1 – Especificação de traços semânticos.
ATRIZ BEBÊ ÉGUA CORAGEM
+ humano + humano - humano ...............
+ feminino ............... + feminino ...............
  + jovem - jovem ...............
      + abstrato

Fonte: Introdução à linguagem, de Fromkin, V.; Rodman, R. (2003, p.179)

Pode-se perceber que as palavras têm muito mais propriedades semânticas do que as que foram apontadas. Por exemplo, parte do significado de égua corresponde a “equídeo”. Tais propriedades semânticas podem ser utilizadas na classificação de palavras em campos lexicais, por exemplo: aqueles que são todos “+ humano” ou “+ abstrato” e assim por diante. Além disso, a presença de determinadas propriedades semânticas exclui automaticamente a presença de outras, por isso não é necessário indicar que coragem é “- humano”, “- feminino”, etc., uma vez que “+ abstrato” já implica isso.

O campo lexical é uma estrutura paradigmática da linguagem, pois ele atua no plano das associações. Mais que isso, ele é a estrutura paradigmática por excelência. Este é constituído por lexemas, que são as unidades lexicais.

No eixo paradigmático, os lexemas convivem numa zona contínua em que as significações se entrecruzam, ao passo que o eixo sintagmático é descontínuo.

Segundo Coseriu, “um campo pode estar incluído em outro campo: pode constituir uma subdivisão de um campo de ordem superior”. Ele propõe, ainda, uma apresentação da estrutura interna dos campos, a partir da forma como os elementos internos deste domínio se relacionam.

Os campos não estão todos estruturados segundo os mesmos princípios e critérios. A criação de uma tipologia consiste em determinar sistematicamente a diversidade de estruturação, estabelecendo seus tipos ou classes.

As relações internas de um campo lexical são determinadas pelas identidades e diferenças que constituem o campo, ou seja, pelas oposições semânticas. A função de uma tipologia dos campos lexicais seria realizar uma classificação fundamentada nas oposições lexemáticas.

O procedimento metódico de decompor as unidades em seus traços distintivos, que é um princípio aplicado ao plano da expressão (significantes), aplica-se também ao plano do conteúdo (significado) para desvendar a composição das unidades de um campo lexical.

A este respeito [mostramos] que também no léxico há, como nos sistemas fonológicos, oposições “graduais”, “equipolentes” e “privativas”. Assim, por exemplo, fr. tiède/chaud, “morno”/”quente”, frais/froid, “fresco”/”frio”, são oposições de tipo “gradual”. (Coseriu, 1976 – p. 215)

Ao invés de utilizar os traços distintivos próprios da fonologia, utilizar-se-ão na semântica os traços distintivos próprios do conteúdo, ou seja, os semas.

Quadro 2 – Descrição de campo lexical relativo a chapéus.
  para cobrir a cabeça com copa com copa alta com abas com abas largas com pala sobre os olhos de matéria flexível ajustável à cabeça masculino
boné + + - - - + + + +/-
gorro + + - - - - + + +/-
sombreiro + + - + + - + - +
panamá + + - + - - + - +
cartola + + + + - - + - +
coco + + - + - - - - +
boina + + - - - - + - +/-
quepe + + - - - + - - +
chapelina + + - + +/- - + - -

Fonte: Introdução à linguística, de Fiorin (Org.) (2003, p. 119)

O quadro acima apresenta um tipo de descrição, denominada análise sêmica, que ordena os conteúdos focalizados dentro de um campo lexical, evidenciando o que cada item lexical tem em comum e o que os distingue. Este método, obviamente, tem suas limitações. Porém tais discussões ultrapassam os limites desta breve exposição, que tem como objetivo servir como embasamento teórico para a aplicação prática que se dará no capítulo seguinte.

Análise do poema Formas do Nu, de João Cabral de Melo Neto

O poema Formas do Nu trabalha o tempo todo com o contraste entre vestir e despir, coberto e descoberto, transparente e opaco, que se subentende por meio de metáforas. Nota-se, para isso, uma laboriosa escolha dos vocábulos – no que diz respeito ao léxico – de forma a criar essa minuciosa correspondência entre as significações das palavras utilizadas.

Na primeira estrofe, tem-se o verbo “tecer” e o verbo “fiar”, que são comumente empregados para designar a confecção de vestuários de uma maneira geral, realizando um contraste indireto com o vocábulo “nu”, que aparece no título do poema, e que significa estar desprovido de vestuário, descoberto.

Estes mesmos verbos, “tecer” e “fiar” também podem ser considerados uma metáfora, que nos remete à ideia de confecção de textos e, por que não, da própria poesia. Assim, a “aranha” poderia ser entendida como uma alusão ao poeta, e seu “cuspe privado” seria o seu imaginário, único, particular.

A segunda estrofe nos informa que a aranha, ao tecer, não pretende ocultar-se, cobrir-se, tapar-se “Jamais para velar-se:”. Nesse momento, ocorre a correspondência ideal, entre o léxico do verbo “velar” e o da palavra “nu”. “Velar”, que significa encobrir, tem como antônimo “desvelar”, que significa pôr-se à vista, ou seja, a própria nudez. Assim, o verso seguinte “e por isso são ralos” (se referindo aos fios) está reforçando a importância de se manter o “nu”, uma vez que os fios “ralos”, ou seja, espaçados, garantem a transparência da teia.

Ainda na segunda estrofe, há um jogo entre os significados de “enredo” e “enredar”.

Para enredar os outros
É que usa os enredados

Tem-se nesses dois versos uma polifonia, onde o verbo “enredar” pode ser lido tanto no sentido de a aranha capturar insetos para se alimentar, como no sentido de o poeta envolver, cativar o leitor com a sua habilidade artística. Este jogo se torna mais evidente quando, na terceira estrofe, as palavras “trama” e “autobiográfico” são colocadas lado a lado. O vocábulo “trama”, que pode significar tanto a teia da aranha quanto o enredo de uma obra de ficção, aparece sendo modificado por “autobiográfico”, que é uma palavra que pertence a um campo lexical muito específico – designa obras literárias – eliminando, assim, o primeiro sentido apresentado para a palavra “trama”.

Na quarta estrofe, o léxico de “velar” (cobrir com véu) também está sendo usado estilisticamente, causando um efeito paradoxal

o véu que não velou

E, retornando à leitura metafórica do poema, pode-se pensar na questão do tempo que o poeta leva na elaboração da poesia, na tentativa de vestir (ou revestir) a palavra com as suas emoções, e quando finalmente termina seu trabalho, ele o abandona.

aí deixa, abandonado

A nudez também pode estar relacionada à palavra que, na poesia, não encobre o imaginário particular do poeta – “de seu cuspe privado” –, deixa transparecer as emoções, como os “fios ralos”, como “o véu que não velou”.

Seguindo pelo caminho das correlações lexicais, podemos destacar, na quinta estrofe, as palavras “couraçado” – sentido figurado: que não permite emoção, impenetrável, insensível – , “cimento” – elemento marcadamente sólido, petrificante – , seguido de “laje” e de “telhado”. Há uma correlação perfeita entre os léxicos dessas palavras e, ainda, elas aparecem dispostas numa espécie de “ordem gradativa”.

O vocábulo “couraçado” poderia indicar vários outros significados. O que permite afirmar que seu sentido no poema é o apresentado acima é, justamente, a sua contextualização. Esta significação se constrói pela sua interação com os vocábulos que aparecem em seguida: cimento, laje e telhado. Analisemos estas três palavras:

  • Cimento – é usado para construir a laje;
  • Laje – placa de pedra usada para cobrir, revestir (a casa ou qualquer outra construção) – se opondo à ideia de nudez, anteriormente focalizada.
  • Telhado – reveste a casa, mais ainda, porque reveste a laje.

A partir destes elementos, podemos concluir que João Cabral de Melo Neto, para marcar a oposição entre o “vestido” e o “despido”, vai construindo esses significados de forma gradativa, através de camadas. As ideias vão se opondo, sutilmente, até chegarem à totalidade dessa oposição. As ideias de transparência, de nudez, contidas nas primeiras estrofes são contrapostas à ideia de solidez do cimento, mais ainda com a cobertura da laje e, por fim, do telhado.

E, depois que chega ao extremo do “vestido”, ele retorna à nudez:

Porque apesar do teto
que o veste pelo alto,
o aruá existe nu,
nu de pele, esfolado.

É interessante notar como a escolha dos vocábulos vem organizada em campos lexicais, a princípio incompatíveis, porém ligados por esse fio de significação, que é a nudez versus sua negação.

Na sexta estrofe (acima citada), a palavra “pele” representa o limite primeiro entre o animal e o mundo, é o limite de seu próprio corpo, sua vestimenta biológica. E, logo em seguida, tem-se a palavra “esfolado”, que significa aquele que teve a pele arrancada, ou seja, o extremo da nudez.

Após explorar os campos lexicais que se aplicam à cobertura superior da casa “que a veste pelo alto”, e à cobertura do próprio corpo, nas estrofes seguintes passamos ao solo que, como o corpo, se apresenta nu:

Sua casa tem teto
mas não tem assoalho:
cai descalça no mangue,
chão também escoriado.

Nestes versos, a ideia de nudez permanece: a casa não tem assoalho, ou seja, não existe nada isolando a casa do mundo no plano vertical inferior. A palavra “descalça” dá continuidade à ideia de nudez, neste caso, dos pés. Por fim, “escoriado” – sinônimo de esfolado – reafirma esta ideia.

E o morador da casa
Se mistura por baixo

Nesta estrofe e nas seguintes, são usadas palavras que remetem a esta ideia:

  • Solo despido: “chão”, “lama”, “terra”, “pasto”
  • Solo vestido: “tapetes”, “soalhos”, “passadeiras”, “asfalto”

Desta forma, João Cabral vai tecendo, em diversas camadas, um significado totalizante para seu poema, que ora se mostra transparente como uma teia, ora opaco como o cimento.

O poema Formas do nu também pode ser lido por camadas. Numa de suas camadas se apresenta o significado literal, que trata de uma comparação entre o homem e os outros animais, em relação à sua necessidade de estar protegido, vestido. Em outras camadas, estão os sentidos metafóricos, que são infinitos.

Conclusão

A palavra dá corpo ao pensamento, aos sentimentos, às sensações, embora estes não tenham a precisão que a materialização da linguagem verbal cria. A relação do homem com o mundo é mediada por símbolos, que são a linguagem. É graças a essa mediação da linguagem que o homem é capaz de mentir, uma vez que ele pode elaborar uma fala diferente daquilo que ele pensa.

A “vestimenta” de que o poema trata, pode ser interpretada como um limite nos seres (o telhado, na casa e a pele, no corpo). Mas este limite (ou limitação) também pode ser aplicado à linguagem.

Quando alguém pensa em alguma coisa e transforma isso em palavras – conceptualização –, dá limites a isso. Ex.: adolescência – fase da vida do homem com início e fim. A palavra cristalizada (em estado dicionário), petrificada é, então, limitada e limitadora.

Assim, o conhecimento vai se deixando envolver por uma inércia, em virtude da indisponibilidade de palavras que nomeiem novas formas. A frase feita, o lugar comum e o clichê são manifestações dessa forma enrijecida.

A poesia apresenta-se como uma possibilidade de se subverter esta cristalização que a palavra cria. Uma vez que a língua não está provida de recursos para nomear todos os objetos da percepção humana, faz-se uso dos mecanismos que ela oferece para sua proliferação – criação de novas palavras – através da elasticidade semântica.

A polissemia é um dos recursos que compensam este caráter redutor da linguagem, sendo muito explorada em poesias. A possibilidade de diferentes leituras, de se atribuir múltiplos significados a um mesmo significante enriquece a linguagem, que se expande, tornando-se ilimitada.

Referências

Azeredo, José Carlos de. Iniciação à sintaxe do português.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
Barthes, Roland. Éléments de sémiologie. Communications, n.4, 1964, p.91-136
Câmara Jr., J. Mattoso. Dicionário de filologia e gramática referente à língua portuguesa. Rio de Janeiro: J. Ozon, 1964.
Clare, Nícia de Andrade Verdini. A linguagem da política: inovações linguísticas no português contemporâneo. Rio de Janeiro: Edição do Autor, 2004.
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Publicado em 29 de julho de 2008

Publicado em 29 de julho de 2008

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