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O OVO DA SERPENTE
Prof. Dr. Eduardo Marques da Silva
Desafio da influência, sob a gênese do novo mundo, na composição da urbe carioca de uma geografia social na sociedade paralela. Permanência e ostentação da ilusão
Brasil de 1500 a 1888, acumulação primitiva, reflexos e contradições
Sabemos que, por ocasião da chegada dos portugueses ao Brasil, não existia sistema de produção nem mercado consumidor estabelecido e organizado nos moldes dos existentes na Europa, razão pela qual toda atividade econômica colonial se orientou segundo os interesses da burguesia comercial europeia (Novais, 1981). No entanto, também é sabido que o perfil de nosso colonizador era feudal; possuía, porém, algumas características que divergiam daquelas de Estados europeus como Portugal, um Estado unificado e com poder centralizado, que ousou no método de ocupação da terra, como afirmou Fernando Novais:
a colonização por meio da agricultura tropical, como a inauguraram pioneiramente os portugueses, aparece como a solução através da qual se tornou possível valorizar economicamente as terras descobertas, e, dessa forma, garantir-lhe a posse ( pelo povoamento) (1981, p. 48).
É importante ressaltar que, num primeiro momento, em função da política econômica mercantilista da época, o modelo de colonização adotado foi bastante eficaz na busca por novos mercados e na proteção e posse de suas colônias. Não obstante, o processo de transição para os Estados nacionais absolutistas modernos, unificados e centralizados, exigiu maior participação dos investidores lusitanos no sistema de produção da colônia, à semelhança do modelo de colonização adotado pelos demais países da Europa. A própria dinâmica do desenvolvimento capitalista exigia um processo de desenvolvimento urbano que possibilitasse o afloramento de uma burguesia forte, voltada especialmente para os setores comercial e industrial.
Não queremos afirmar, com isso, que o modelo de colonização adotado pelos demais Estados europeus fosse liberal, até porque o monopólio exercido pelas metrópoles sobre as colônias funcionava como marco de sustentação da política mercantilista. O regime de monopólio era consubstancial à colonização europeia. Como afirma Novais,
o monopólio do comércio das colônias pela metrópole define o sistema colonial porque é através dele que as colônias preenchem sua função histórica (1981, p. 48-49).
No entanto, em se tratando de Brasil, somente em 1532, com a fundação da Vila de São Vicente, inicia-se de fato a colonização brasileira e a intervenção direta dos empresários europeus no âmbito da produção (Linhares, 1990). Mesmo assim muito timidamente, em função da condição que desfrutava Portugal no cenário internacional das grandes potências coloniais.
Como escreveu Maria Yedda Linhares, até então Portugal, em especial Lisboa, desfrutava de excelente posição no cenário dos impérios mercantis, haja vista os lucros obtidos com o Oriente e com a exploração do litoral africano. Somente com a " crise no Oriente e a pressão francesa na América é que Portugal começa, realmente, a se interessar pelas terras chamadas de Vera Cruz " (1990, p. 55).
Por outro lado, a colonização e a implantação de um sistema de produção especialmente agrário, voltado para exportação, requeria certo domínio da técnica de cultivo e um número considerável de mão-de-obra. Portugal já conhecia a técnica do plantio da cana (sacharum oficinale) e do fabrico do açúcar desde o século XIII. Quanto à mão-de-obra, a escravidão veio ao encontro dos interesses da burguesia mercantil.
Com a divisão do Brasil em capitanias e a utilização de mão-de-obra, em quase sua totalidade, servil, nosso trabalhador não teve sequer o direito de ser expropriado de seus meios de produção, pois, na condição de escravo, não dispunha nem da sua força de trabalho, considerada mercadoria. Apesar da aparente semelhança com a sociedade feudal europeia, o Brasil-colônia foi estruturado com algumas particularidades diferentes :
na verdade, a expansão ultramarina portuguesa deu-se sob a égide da centralização monárquica, a mercantilização da vida econômica do país e a vinculação do Império aos grandes centros comerciais europeus, como Flandres e a Itália do século XVI (Linhares, 1990, p. 59).
Não obstante, o monarca também dispunha de estrutura administrativa na colônia que lhe permitia tomar medidas de ordem econômica, política ou administrativa. Para tanto, contava com um feitor ou almoxarife, um provedor, vários tabeliães, um ouvidor e um meirinho. Todo processo de colonização teve como base uma estrutura monopolista centralizadora, que permitia ao Estado, dentre outras coisas, a exclusividade da exploração, por exemplo, do pau-brasil e do sal, deixando o grande comércio açucareiro como monopólio da classe mercantil portuguesa. Como bem escreveu Fernando Novais, " apesar da pressão crescente das demais potências e da intensificação do contrabando, o regime permanece no século XVIII" (1981, p. 53).
O monopólio exercido por Portugal sobre o Brasil-colônia e a concentração dos meios de produção ( especialmente as terras ) nas mãos de uma minoria de abastados cidadãos lusitanos só vieram colaborar para efetivar a acumulação primitiva de capital nas mãos de uma burguesia comercial, fortalecendo a metrópole através da arrecadação tributária.
Com o advento de nossa independência em 1822, sobressaíram os interesses mais escusos da nossa incipiente burguesia : a manutenção da estrutura de produção vigente, com mão-de-obra escrava e a consolidação do modelo de propriedade latifundiária. Donde podemos concluir que, até 1822, a acumulação de capital privilegiou a burguesia mercantil e o Estado português, em função, basicamente, do exclusivismo comercial que a metrópole exercia sobre a colônia. Esta lhes permitia estabelecerpreços favoráveis não só nas importações de matérias-primas mas também nas exportações de produtos manufaturados para o Brasil-colônia. De 1822 até 1888, houve inversão na ordem de prioridade na acumulação de capital : a burguesia lusitana sai de cena, dando lugar à burguesia mercantil brasileira, ainda bastante incipiente e dependente dos Estados europeus, em função da configuração da economia brasileira, eminentemente agrária e voltada para exportação.
Diferentemente do que ocorreu na Europa, a acumulação primitiva de capital no Brasil teve sua origem não na expropriação dos meios de produção dos trabalhadores mas sim na negação de acesso dos trabalhadores aos meios de produção, razão pela qual, podemos ainda concluir que o impedimento de os trabalhadores possuírem os meios de produção, aliado à sua condição de mercadoria, de certa forma também proporcionava ao mercador acumular capital. A longa duração dessa estrutura pré-capitalista, se é que podemos chamar assim, só começou a ser rompida com a libertação dos escravos em 1888 e a introdução em massa de trabalhadores assalariados no sistema de produção.
Tudo acabou por contribuir para o acanhado processo de desenvolvimento tecnológico e social do Brasil até 1964, bem como para a manutenção das mazelas sociais existentes até os dias atuais, guardando-se exageros, por exemplo, como má distribuição de renda, violência, analfabetismo, favelização etc.
Estamos conscientes de que ao historiador não basta apenas narrar os acontecimentos. É necessário mergulhar nas entranhas dos fatos e trazê-los à tona e tratá-los com cientificismo, pois só assim alcançaremos a realidade histórica, como afirma Jacques Le Goff:
Não há realidade histórica acabada, que se entregue por si própria ao historiador. Como todo homem de ciência, este, conforme a expressão de Marc Bloch, deve, ' diante da imensa e confusa realidade ', fazer sua opção, o que, evidentemente, não significa arbitrariedade nem simplesmente coleta, mas sim construção científica do documento cuja análise deve possibilitar a reconstituição do passado (1990).
A nosso ver, é, portanto, a partir do estudo do sistema colonial estabelecido no Brasil e da forma pela qual esse sistema proporcionou a acumulação primitiva de capital que devemos refletir em busca das origens de boa parte de nossos problemas sociais, em especial dos motivos do crescimento do que as correntes marxistas costumam denominar exército de reserva, e nós denominamos exércitos de excluídos e marginalizados socioculturalmente, que são a razão maior do processo de crescimento do número de miseráveis-pseudocidadãos que lutam contra as suas próprias sortes para sobreviver.
Favela - cidadania negada ou adormecida?
O processo de favelização tem início no século XIX, quando a população pobre do Rio de Janeiro buscou as áreas centrais da cidade, apesar da insalubridade e das precárias condições, pela proximidade com o mercado de subsistência, a fim de reduzir seu tempo de deslocamento. Movimento que esmaeceu na primeira metade do século XX, o século do não, como já tivemos oportunidade de apresentar aqui. Antes disso, porém, recebeu importantes correntes migratórias internas, isto é inconteste, principalmente das Minas Gerais e do Nordeste. Além disso, o Rio recebeu alguma transumância da própria Província Fluminense. A tudo isto se somou o lançamento do restante da mão-de-obra dos pretos, alterando de vez sua composição étnica e engrossando o contingente de desempregados e subempregados ( Carvalho, 1987).
Fica fácil compreender as razões pelas quais as metrópoles atraíam a pobreza : elas ofereciam convivência socializada e maiores expectativas de sucesso ; e, apesar de toda precariedade, tendiam a elevar o padrão de bem-estar e acessibilidade aos serviços sociais. A tendência à reprodução familiar da pobreza, através das gerações, faz altíssima a probabilidade de o filho do pobre permanecer pobre e herdar a brecha de subsistência paterna.
A distribuição socioespacial da população do Rio atravessou grande transformação no final do século XIX: os ricos deslocaram-se dos altos morros para a orla marítima. A fração de pobreza ligada à logística da cidade permanecera nos prédios degradados do Centro.
Ao longo do século XX, a pobreza do Rio distribuir-se-á pelos novos cortiços, pelos loteamentos improvisados nos eixos dos subúrbios e, pelas favelas nas encostas dos morros e zonas inundáveis. De início discreto, a favela impôs pouco a pouco sua presença efetiva no espaço social e urbano.
Toda essa miséria sem fim, que se resume na palavra favela, não era fruto do acaso ; tem uma história registrada que já vai para mais de um século de existência. Começou no ano de 1865, quando as tropas do exército brasileiro se enfiaram no chaco paraguaio para passar no fio da espada os seguidores de Solano López. Terminado o massacre que passaria para a história com o nome de Guerra do Paraguai, os soldados, que tinham ido tão longe na defesa dos interesses nacionais, ficaram na situação de não ter para onde voltar. A solução encontrada pelo Ministério da Guerra para se livrar daqueles que não mais convinham foi enviá-los para um morro carioca, batizado sintomaticamente de Providência. Nesse morro, junto com os soldados, chegava uma planta chamada favela, comum na região onde tinham ido guerrear. Em pouco tempo, de Morro da Providência, o local passou a se chamar Morro da Favela. Algumas décadas depois, a palavra se popularizaria em nível nacional, para se tornar o sinônimo maior, o símbolo do descaso de nosso poder público.
O Morro da Favela, apenas três anos após seu surgimento, já era motivo de preocupação para as autoridades cariocas, a ponto de, a quatro de novembro de 1900, o chefe da polícia, doutor Enéas Galvão, pedir a um de seus delegados que enviasse informações sobre o local. Em resposta, o delegado enviou um ofício em que descreve o lugar como sendo infestado de vagabundos e criminosos, os excluídos socioculturais e sociais. Nesse documento também se lê a proposta do delegado para uma solução final, que dizia:
ali não há ruas, os casebres são construídos de madeira e cobertos de zinco, e não existe em todo o morro um só bico de gás, de modo que, para uma completa extinção dos malfeitores apontados, se torna necessário um grande cerco, que para produzir resultado precisa pelo menos de um auxílio de oitenta praças completamente armadas (Motta, 1998).
Desde seu início, já se via estreita ligação entre favela e cerco policial, pois muito antes de o tráfico ser o enorme problema social que é hoje já se planejavam invasões dessas áreas carentes. Mas se as favelas têm cem anos de existência, pode-se dizer que a favelização do Brasil começou bem antes, a partir da Lei de Terras, de 1850 (Motta, 1998).
A promulgação dessa lei trouxe grandes consequências para o desenvolvimento das cidades brasileiras, pois a ocupação de um terreno e seu uso deixaram de ser o suficientes para a obtenção de direito de permanência nele. Desse momento em diante, a única forma legal de posse passou a ser a compra devidamente registrada, o que trouxe a especulação imobiliária e a consequente impossibilidade de os pobres terem seu espaço nas áreas mais valorizadas das cidades. Isso colaborou para o surgimento, anos mais tarde, dos embriões das favelas, os cortiços.
As primeiras referências legais aos cortiços aparecem já em 1886, em São Paulo, no chamado Padrão Municipal, um código de regulamentação de construções urbanas que trazia interessante capítulo intitulado Cortiços, casas de operários e cubículos. Na prática, essas regulamentações simplesmente proibiam a presença de cortiços nos centros da cidade (Rolnik, 1997). Com a proibição da instalação de cortiços, casas de operários e cubículos, proibiu-se genericamente a presença de pobres no centro da cidade. Esse tipo de intervenção complementava o projeto urbanístico municipal de construção de uma imagem pública para a cidade, com um cenário limpo e ordenado que correspondia à respeitabilidade burguesa, com a qual a elite do café se identificava.
No entanto, a luta contra os cortiços não foi vencida apenas com a promulgação de leis e regras de construção. Houve todo um aparato policial, político e ideológico para acabar com eles e incentivar o surgimento das favelas nos arredores dos centros urbanos, visto que os pobres, ao serem expulsos de seus cortiços e vilas populares, tinham de procurar outro lugar para morar. A primeira atitude política do governo brasileiro rumo à favelização do país, foi o incentivo à importação de mão-de-obra, justamente quando as cidades brasileiras estavam começando a receber milhares de ex-escravos. Mesmo antes da abolição, a imigração já estava sendo levada a cabo, e Rolnik resume bem esse esforço governamental ao falar do incentivo financeiro que os fazendeiros recebiam.
Em 1881, o governo começou a pagar metade dos custos do transporte da Europa até as fazendas ; em 1884, reembolsou integralmente os fazendeiros pelo pagamento das passagens e, em 1885, três anos antes da abolição, passou a subsidiar diretamente o custo de transporte dos imigrantes.
Naturalmente, o governo não se preocupou em educar de alguma maneira a massa escrava que estava prestes a ganhar a liberdade ; na verdade, parece que os bestializaram absolutamente para a nova vida que teriam; quando a abolição ocorreu, a cidade recebeu um contingente de ex-escravos que, além de sofrer preconceito de cor e origem, não tinha condição de competir com os imigrantes recém-chegados. Nesse contexto de exclusão social, o destino dos ex-escravos acabou sendo os morros, as periferias, os cortiços, as ( hoje ) favelas. Essa política segregacionista continua e explica a quantidade de pretos e seus derivados, conhecidos inadequadamente como negros, que residem nesses lugares.
Junto com a Lei de Terras, o descaso governamental da época para com os ex-escravos e seu furor higienista, contribuíram de maneira significativa para o surgimento das favelas como as conhecemos atualmente. Em 1892, houve uma epidemia de febre amarela que atingiu violentamente vários pontos dos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro.
Nessa época havia uma curiosa teoria, chamada teoria dos fluidos, que dominava o pensamento médico. Segundo essa teoria, a água e o ar eram veículos transmissores de doenças, pois deles saíam emanações, miasmas, que faziam as pessoas adoecerem. A partir dessa crença, a medicina formulou a teoria do contágio, que associava a ideia de contaminação e proliferação da febre amarela aos espaços apertados em que os pobres viviam. Desse raciocínio para uma espécie de caça às bruxas em cortiços e bairros operários foi um passo. No Rio de Janeiro, a tarefa de levar a cabo o esvaziamento dos cortiços ficou por conta do famoso médico sanitarista Oswaldo Cruz. Vitoriosas apenas em parte, essas medidas de expulsão geraram protestos populares e conflitos ( Carvalho, 1987). Creditamos o motivo dessa ignorância governamental a razões ideológicas: os pobres mereciam e deviam ser afastados dos espaços mais sadios das cidades.
Em 1886, o Dr. Francisco Figueira de Mello apresentou parecer ao Conselho de Saúde Pública do Rio de Janeiro a respeito da linha a ser adotada para o combate da febre amarela :
a vida em comum facilitada por esta solidariedade espontânea das classes pobres que, para se defender na luta pela vida, se congregam e mesmo se amontoam em casas em ruínas, em porões, em cortiços, carecidos dos mais elementares requisitos higiênicos, é fonte de muitas moléstias, como é causa de múltiplos delitos. Em geral, essa população é constituída por gente de inferior cultura. E entre esses de espírito simples, tolerantes, desprezam os mais necessários preceitos de decoro e respeito mútuo, e na intimidade vão ligando numa trama apertada as mais diversas mentalidades, bem como aproximando às vezes as mesmas tendências, resultando dessa massa heterogênea a criminalidade, a prostituição, a doença, e mantendo o baixo nível moral dessa gente (Rolnik, 1997).
O Dr. José Maria Teixeira complementa o parecer do colega com a seguinte sugestão :
diminuir o número de moradores nas casas destinadas aos pobres é providência útil e higiênica, e é por isso que certas medidas policiais e municipais deveriam ser adotadas. Como é sabido, é nas estalagens e cortiços que vivem aglomeradas as centenas de vagabundos, capoeiras etc. que empesteiam moralmente esta cidade (Rolnik, 1997).
Os pareceres desses doutores, nos quais se associa pobreza a tudo que não presta em termos sociais e culturais, podem ser entendidos ainda hoje como a síntese do pensamento atual de nossos governos, tanto os chamados neoliberais quanto os posteriores. Um exemplo mais recente dessa mentalidade que desvaloriza a vida do pobre, optando pela ação violenta no lugar de ações sociais, foi a declaração do comandante-geral da Polícia Militar do Rio, coronel Sérgio Cruz, dada ao Jornal do Brasil em 23 de abril de 2000, na qual justifica a morte de uma menina de quatorze anos, chamada Anne Mary, abatida por um tiro de fuzil disparado por um policial militar durante confronto com supostos traficantes em Inhaúma, no Rio de Janeiro.
Nas áreas carentes, ainda que sejam adotadas todas as técnicas, ainda que tudo seja observado, pode haver resultado negativo. No confronto entre um cidadão da lei e um marginal poderá haver morte de crianças inocentes ( Jornal do Brasil, 2000).
O curioso é que não há, na sociedade da ordem, ampla indignação com esse tipo de afirmação, salvo exageros. A ideia de que favela é local de pessoas porcas, vagabundas e violentas e que não merecem respeito como cidadãos ainda habita os corações de milhares de brasileiros. Supomos que se possa afirmar, a partir daí, que existe forte tendência 'à obra da escravidão ', como dizia José do Patrocínio, ainda não erradicada de nosso meio.
O darwinismo e o positivismo do século do não e o crioulo branqueado
Assim, a partir do século XVIII-XIX, as possessões portuguesas na América conheceram um vertiginoso processo de desenvolvimento, tanto tecnológico quanto científico. O ouro, descoberto no interior da América portuguesa no final do século XVII, proporcionou e fomentou inicialmente as frenéticas e abrangentes transformações ocorridas. Já nas primeiras décadas do século XVIII, a região mineradora (o sertão habitado apenas pelos índios) determinava mudanças nas outras partes da extensa colônia lusitana do Novo Mundo. O Brasil tornava-se um dos maiores produtores de ouro do mundo, o controle deveria ser rigoroso, impedindo o contrabando e garantindo a tributação real. O mundo, da Revolução Industrial de 1760 até o início do século XX, passava por mudança radical. Os séculos XVIII-XIX ficaram marcados pelo cartesianismo e, no alvorecer do século XX, tudo passaria por um conflito puramente científico-filosófico, pois mudariam também as maneiras de enfrentamento dos desafios humanos; o darwinismo e o positivismo do 'século do não' davam lugar ao crioulo branqueado. Com a complexificação social tornando-se cada vez mais premente, a ascensão social do preto passa a ser inexorável. Porém, é bom lembrar que apenas poucos conseguiam ser aceitos na e pela sociedade da ordem. O processo de mudança foi acelerado, mas não para retirar coisas como favelas, palafitas e a pobreza que grassava nosso urbano citadino. Enquanto na Europa era grande a efervescência de pensamentos e pensadores em todas as áreas, aqui amargávamos coisas como escravismo, latifundismo etc. Como podemos ver a seguir, o século XX acabou construindo - e efetivamente foi responsável por ele - o contraponto entre o cartesianismo e o holismo. Não foi à toa que o denominamos de século do não.
Idade Moderna (séculos XV a XVIII) | Idade Contemporânea (séculos XVIII até hoje) |
Construção e início do pensamento cartesiano, previsibilista e calculista, durante a passagem dos séculos XVII/XVIII. | Construção e início da visão holística e crise da previsibilidade científica na academia herdada da modernidade (após 1945). |
Revolução Industrial Fim da acumulação primitiva de capitais (uso da mão-de-obra escrava e servil). Revolução Científica, com o início do pensamento cartesiano (as partes = todo). 1ª e 2ª Revoluções Industriais: passagem da maquinofatura para manomecanicismo; fim da mão-de-obra; já se exigia a criação do cérebro-de-obra. 3ª Revolução Industrial: robótica + informática + nanotecnologia + biomimetização do mundo envolvido no dilema da globalização. 2003 - Era da Luz, em que a tecnologia mimetiza a natureza natural. | O pensamento que viciou a ciência e marcou todas as abordagens sobre o crime e as várias modulações de violência dele derivada: Marat (Plan de Législation Criminelle), que foi de certa maneira o modelo para a legislação criminal da Revolução Francesa. Introduziu a ideia de oficinas públicas para garantir trabalho e educação para vadios e mendigos. Estas iriam pôr fim ao desemprego e iam desmontar a justificativa moral para os furtos, liberando o legislador para a tarefa de prever penas distintas para ricos e pobres, que poderiam violar o princípio almejando de proporcionalidade. |
1748 - MONTESQUIEU (Espírito das Leis): o legislador deveria mais prevenir o delito que punir. 1694/1778 - indicava que furto, roubo, e outros eram delitos de indivíduos pobres em seus Prix de la justice et de l'Humanité (1777). 1762 - ROUSSEAU proclamava a miséria como mãe dos grandes delitos (Le Contrat Social), a instituição da propriedade privada é a causa deles. 1764 - BECCARIA (fundador do Direito Penal moderno) autor da obra Del Delitti e delle pene: o desemprego e a miséria são as causas maiores do delito de furto. Hobbes: todo crime é pecado, mas nem todo pecado é crime. Considerava o julgamento moral sobre a ação humana, mas sua esfera de aplicação, por causa de Beccaria, era agora claramente diferenciada dos atos puníveis pela lei. A separação fora facilitada pelo princípio pelo qual "nenhuma lei feita depois do fato praticado pode torná-lo um crime; porque se o fato for contra a lei da natureza a lei era anterior ao fato, e uma lei positiva não pode ser conhecida antes de ser feita, e portanto não pode ser obrigatória". Nesse ponto, aplicou o princípio de não-retroatividade para a lei penal. 1754/1793 - BRISSOT DE VODEVILLE: sua obra Teoria das leis criminais teoriza sobre o fato de não ser o homem originalmente inimigo da sociedade (quanto maior a eficiência da administração pública menor a delinquência). 1749/1832 - BENTHAM: Análises profundas sobre os fatores sociais da criminalidade (melhor prevenir o crime do que reprimir) é a permanência do cartesianismo e a insistente manutenção da crença na calcularidade cientificista. 1745/1826 - PINEL: médico francês, fundador da Psiquiatria. 1832 - BROCA: fundador do primeiro instituto de antropologia criminal, equiparando o criminoso ao louco. 1868 - DESPINE: Psicologia natural: degeneração, loucura moral e crime. | 1809/1873 - MOREL: continuou na linha anterior e preparou em 1857 a obra Degenerações físicas, intelectuais e morais da espécie humana. 1769/1874 - QUESTELET: Escola cartográfica e geográfica em geral ou Física social (1869). É o primeiro sociólogo criminologista com a lei térmica da delinquência: os delitos de sangue predominam no verão e os contra o patrimônio no inverno; surge a Teoria dos Fatores Telúricos, físicos ou cósmicos, na origem da criminalidade; sustentava que a sociedade preparava o delito e o criminoso seria apenas o seu poder executivo. TARDE: o fator social na criminogênese e a lei de imitação social. DURKHEIM analisa suicídios, verifica a predominância dos fatores culturais no delito que entende ser um fenômeno social normal. LACASSAGNE (determinismo social): a sociedade tem o crime que merece, o meio social é o caldo de cultura da criminalidade, pois o criminoso é o seu micróbio, que encontra na sociedade o caldo para fermentar. MARX e ENGELS, principalmente após 1850, com o materialismo dialético: sustentam que o delito é produto das condições econômicas. 1835-1909 - LOMBROSO: médico, fundador da escola positivista na criminologia; e 1856-1929 GAROFALO apresentavam teses unilaterais, parciais, extremadas, fanáticas, dando origem à Biologia Criminal, à Sociologia Criminal, à Psiquiatria Criminal. 2ª metade do século XX em diante: M. MAFFESOLI - Dinâmica da Violência: faz uma releitura da violência urbana e afirma, dentre outras coisas, que o "mal é fecundo e merece atenção especial", principalmente na pós-modernidade. J. C. SchImith diz existir na sociedade uma história dos marginais a ser contada. M. Certeau: chama a atenção para os Ruídos da História, alertando-nos para a observação dos miseráveis e vagabundos urbanos do mundo moderno. Carlo Ginsburg: em sua obra fala da atenção que se deve dar à existência de uma certa História Social Noturna. Eduardo Marques da Silva alerta para a existência de uma polemica Sociedade Paralela: a Ordem do Diferente, em que se abrigam o crime e sua cultura em convivência cotidiana, conspirando contra a sociedade oficial no urbano. |
Em 1748, Montesquieu, na obra O Espírito das Leis, afirmava que o legislador deveria mais prevenir o delito do que punir. Era um homem de grande visão, que, no período 1694/1778 indicou que coisas como o furto, roubo etc. eram delitos de indivíduos pobres (Prix de la justice et de l'Humanité, de 1777). Em 1762 J. J. Rousseau proclamava a miséria como a mãe dos grandes delitos em Le Contrat Social, de 1762. Nele, considerava a instituição da propriedade privada a grande causa de tudo. Em 1764 surgiu Beccaria, fundador do Direito Penal Moderno. Em sua obra Del Delitti e delle Pene dizia que o desemprego e a miséria eram as causas maiores dos delitos de furto. T. Hobbes afirmava que todo crime é antes um pecado, mas nem todo pecado é crime! Considerava também o julgamento moral sobre a ação humana, o que era um grande avanço para a época. Sua esfera de aplicação, por causa de Beccaria, foi agora claramente diferenciada dos atos puníveis pela lei. A separação fora facilitada pelo princípio no qual "nenhuma lei feita depois do fato praticado pode torná-lo um crime, porque se o fato for contra a lei da natureza e a lei era anterior ao fato, uma lei positiva não pode ser conhecida antes de ser feita, e, portanto, não pode ser obrigatória". Era brilhante! Nesse ponto, aplicou o princípio de não-retroatividade para a lei penal. No período de 1754 a 1793, surgiu Brissot de Vodeville com a teoria das leis criminais, em que teoriza sobre o fato de o homem não ser originalmente inimigo da sociedade, ou seja, quanto maior a eficiência da administração pública menor será a delinquência. No mesmo período surgiu Bentham, com análises profundas sobre os fatores sociais da criminalidade, dizendo que seria melhor prevenir o crime do que reprimir, lembrando o grande Montesquieu e, de certa forma, concordando com ele.
Era a permanência do cartesianismo ainda como visão paradigmática e a insistente manutenção da crença na calcularidade cientificista da época. Também de 1745 a 1826 surgiu o pensador Pinel, médico francês, fundador da Psiquiatria, que iniciou um tipo de tratamento especial com os criminosos. Em 1832 surgiu P. Broca, que fundou o primeiro instituto de antropologia criminal. Ele equiparava o criminoso à ideia de este ser um louco. Em 1868 surgiu Despine, que trata de Psicologia natural, em que argumentava sobre degeneração, loucura moral e crime. Em 1857, publicou Degenerações físicas, intelectuais e morais da espécie humana. Com Questelet, surgiu a Escola Cartográfica e Geográfica em Geral, ou Física Social, fundada em 1869. Foi o primeiro sociólogo criminologista com a Lei térmica da delinquência, que defendia que os delitos de sangue predominam no verão e aqueles contra o patrimônio, no inverno. Daí surgiu a teoria dos fatores telúricos, físicos ou cósmicos na origem da criminalidade, que sustentava que a sociedade preparava o delito e o criminoso seria apenas o seu poder executivo, ou seja, seria atribuir ao criminoso um sentido mais naturalista de suas ações. Em Tarde temos, segundo o autor, que o fator social na criminogênese e a lei de imitação social seriam decisivos.
Depois tivemos Durkheim, que analisa o suicídio verificando a predominância dos fatores culturais no delito, que entende ser um fenômeno social normal. Em Lacassagne, o determinismo social dizia que a sociedade tem o crime que merece, o meio social é o caldo de cultura da criminalidade, pois o criminoso é o seu micróbio, que encontra na sociedade o caldo para fermentar e se fermentar. Seus atos são reverberativos, devido ao poder de impacto social que causam. Em Marx e Engels, principalmente após 1850, o cartesianismo adquire dimensões maiores; talvez fosse sua queda como maneira de abordar coisas do homem, pois se aproximavam sinais de um quadro mais complexo, tanto no social quanto no político; prender-se ao concreto do tudo era o que restaria ao final dos quarenta primeiros anos do século XX à humanidade. Com o materialismo dialético, que sustenta o delito como sendo produto das condições econômicas, não há a menor dúvida, apesar de deixar ainda muito a desejar. Ele traz grande contribuição, mas não se pode negar outras razões, inclusive as emocionais, sobre os atos do homem. Surgiu também Lombroso (1835-1909), médico fundador da escola positivista na criminologia, que existiu entre 1856 a 1929, ano de grande crise do capitalismo como do surgimento do nazi-fascismo, que enfrentou os estertores do pensamento cartesiano.
Garofalo (1851-1936) apresentava teses unilaterais, ou seja, parciais, extremadas, fanáticas, iniciando assim a Biologia Criminal, a Sociologia Criminal, a Psiquiatria Criminal, início da preocupada, complexa e indiscutível catarse da intelectualidade da época. Podemos concluir que, da segunda metade do século XX em diante, com a nova crise do capitalismo se agravando, a sabedoria sobre o homem e sua humanidade de relacionamentos urbanos teve um grande in push de visão no coletivo. Surgiram cientistas, como o sociólogo Maffesoli, que, com sua obra Dinâmica da Violência, acabaram por fazer uma releitura da violência urbana afirmando que "o mal é fecundo e merece atenção especial" (Maffesoli, 1990). J. C. Schimith disse existir na sociedade uma história dos marginais a ser contada, coisa por que poucos se interessaram, talvez por não ser muito interessante tratar dos vencidos da e pela História. Também o professor Michel Certeau chama atenção para ruídos da História e alerta para a observação dos miseráveis e vagabundos urbanos do mundo moderno. Carlo Ginsburg fala da atenção que se deve dar à existência de uma certa história social noturna, o que também é deveras incisivo e profundo como alerta. Seguindo-os, tivemos os professores eslovenos Helena Katz e Evgen Bavkar, dentre outros, ajudando-me a refletir sobre esse tema que considero de grande relevância (Katz e Bavkar, 2003).
Temos, portanto, material para uma releitura incisiva e mais vertical do que se abordou sobre o tema até então. Ao construirmos este texto queremos dizer que há muito concordamos com os autores citados; inclusive já produzimos vários artigos que buscaram consubstanciar nossa tese. J. C. Schimith chega a alertar para a existência de uma polêmica sociedade paralela (Schimith, 1990), que chamamos de ordem do diferente (Silva, 1992), onde se abrigam o crime e a sua cultura, em convivência cotidiana em um corpo marcado pelo hibridismo social e sociocultural, conspirando contra a sociedade oficial, ou seja, a ordem no urbano recente. O pensamento e os pensadores que viciaram a ciência e marcaram todas as abordagens sobre o crime e as várias modulações de violência dele derivadas foram muito incisivos na história.
O primeiro desse tempo mais recente foi Marat, com seu Plan De Législation Criminelle, o qual foi, de certa maneira, o modelo para a legislação criminal da Revolução Francesa. Introduziu a ideia de oficinas públicas para garantir o trabalho e a educação para vadios e mendigos, enfim, os tão falados esquecidos da história humana. Essas medidas iriam pôr fim ao desemprego e iriam desmontar a justificativa moral para os furtos, liberando o legislador para a tarefa de prever penas distintas para ricos e pobres, que poderiam violar o princípio almejado de proporcionalidade. Ainda é o grande estandarte pelo qual nos alicerçamos, mas o problema agora, no tempo presente, encontra-se por demais volumoso e grave. Os tempos são outros, mas as urgências continuam as mesmas. Por que, então, não pôr mãos a obra? Até quando iremos deixar que se corporifiquem grupos socioculturais autônomos como os que vemos e combatemos diuturnamente? Assim, em um Brasil de características multiculturais como as nossas, fica bastante difícil conter tal realidade, sem ao menos olharmos para nossa composição social.
Era um Estado centralizado, onde imperava a escravidão como prática aceita por todos, forte militar e administrativamente, que se instalava rapidamente, contrário ao que caracterizara a sua atuação até o fim dos seiscentos. A produção açucareira das capitanias de Pernambuco e da Bahia enfrentou crise de produção e de exportação. O ouro fez com que o centro econômico do Brasil se transferisse para o sul: Minas Gerais. Rapidamente a economia se diversificava nessa região, deixando de depender exclusivamente da mineração e passando a contar com os recursos gerados pelo comércio, pelas atividades agrícolas e pela pecuária, além de pelos serviços, pela administração e pelas atividades artesanais. A vida nas Minas baseava-se não mais no campo, obviamente, mas em áreas urbanas, constituídas de arraiais. A população da América portuguesa aumentava rapidamente, a partir da imigração de muitos deles, por conta da entrada de muitas dezenas de milhares de escravos africanos e do nascimento de outras dezenas de milhares de escravos crioulos no Brasil.
O universo cultural da Colônia é incrementado e se torna muito complexo, acentuando conflitos e distinções, possibilitando a formação de uma sociedade biológica e culturalmente mestiça (Paiva, 2002). E estávamos bem próximos do grande boom do pensamento liberal que precedeu a Revolução Industrial europeia. Tudo isso inaugurando formas de viver e de se relacionar desconhecidas na América portuguesa antes do surgimento da mineração. O enorme número de mestiços e a grande população forra e seus descendentes foram dois aspectos muito importantes para que possamos compreender as peculiaridades desse período e para entendermos melhor como somos hoje.
As características emergidas, traços e práticas culturais, relações políticas e econômicas, religiosidade e comportamento cotidiano, ficaram registrados em imagens produzidas nesse período. O que segue agora é um exercício de leitura dessa dimensão do complexo processo histórico-social brasileiro a partir de algumas imagens selecionadas. Pequenos detalhes podem significar chaves para exames aprofundados; comparações entre imagens e entre elas e outros documentos podem revelar aspectos camuflados dessa história de possibilidades de composição. As representações iconográficas são lidas por meio de filtros e de chaves que pertencem ao presente, na maioria das vezes. Elas adquirem sempre novos significados a cada nova leitura, a cada nova época oferecem novas indagações. Há sempre a arbitrariedade, a parcialidade, as escolhas do observador e do historiador, o que garante olhares e versões diferentes sobre um mesmo objeto.
Até o século XIX, era muito comum que os artistas pretendessem transportar uma determinada realidade para os quadros, buscando reproduzir a vida cotidiana no Brasil. Evidentemente não conseguiram. No entanto, registraram seus próprios valores, os valores de suas épocas.
Carlos Julião, originário de Turim, militar que prestou serviços à coroa portuguesa no Brasil no fim dos setecentos, andou por várias regiões brasileiras. Seu interesse era retratar detalhadamente o cotidiano tanto dos escravos quanto dos libertos, tanto homens quanto mulheres. Seu critério era o estranhamento. Tinha como base o fato de ver nessa população o hábito de agir com bastante autonomia, desfrutando de grande mobilidade social, até com possibilidade de ascensão econômica e social, com poder de compra significativo, morando em sobrados e em casas confortáveis, térreas, nas áreas urbanas de Minas Gerais, do Rio de Janeiro e da Bahia. Chegou a reproduzir sua indumentária e ornamentos ostentados com todo seu glamour e colorido original. Joaquim Cândido Guilobel nos trouxe, em seus desenhos, tipos comuns das ruas do Rio de Janeiro e de São Luís do Maranhão entre 1812 e 1822. Dedicou significativa atenção às formas de trabalho exercidas por homens e mulheres pretos e mestiços, escravos, libertos e livres pobres que lá transitavam. Entretanto, Julião registrou personagens envolvidos em atividades além do trabalho formal. Ele tinha predileção por retratar as mulheres negras. Ele revelava o corpo sociocultural autônomo, que vivia pedindo doações para a Festa de Nossa Senhora do Rosário. Parece-nos que, entre essa gente, existiam também aquelas pessoas que se encontravam forras. Portavam adereços e indumentárias interessantes e ricas. Acreditamos que tudo se devesse salientar, pois estamos falando de mulheres que pareciam possuir roupas, sapatos, adornos e joias, vestidos, pulseiras, colares e brincos de ouro. Ora, tudo nos parecia ser não só usado por elas, mas pertencer a elas (não ao senhor ou à senhora).
Tal fato parecia ser comum entre as chamadas forras. Essa ostentação significaria mais que uma vaidade. As pretas retratadas por ele estavam representando e compondo um cenário de grande ostentação. Não era uma invenção do artista, apenas. Elas usavam essa indumentária assim mesmo. Seus sapatos e joias também eram propriedade delas. No conjunto e individualmente representavam seu grau de autonomia, autoridade cultural, religiosa e familiar, sua alforria e inserção distinguida na sociedade escravista colonial. Johann Mortiz Rugendas (Augsburgo, 1802 - Weilheim, 1859), ao fazer a litografia Venda em Recife - que foi apresentada como um exemplo do valor do comércio nas regiões urbanas coloniais e da circulação das pessoas nas ruas das vilas e cidades -, buscou expressar, no aspecto cultural, um olhar da historiografia recente. O que via, então, eram as dimensões menos claras, a partir da complexidade sociocultural que abrigava: em torno de uma venda ele registrava o cotidiano. Sua preocupação maior foi constatar mecanismos de mestiçagem cultural e biológica. E ela se dava, podemos notar, em grande profusão. A primeira foi uma espécie de convívio cotidiano intenso entre senhores brancos, índios, negros e mestiços, entre adultos e crianças, religiosos e prostitutas, guardas de milícias e os vadios ou plebe desordeira, que são de nosso particular interesse, dos quais derivaram (em parte e guardando-se as devidas proporções) aqueles que nos assustam nas favelas, que com suas Escolas de Favelasinsistem em permanecer dentro do e no urbano citadino fluminense.
Essas aparentes desordens hierárquicas, marcadas pelo desregramento e pela promiscuidade, tinham suas próprias formas de organização. O comércio tratava de impor suas normas, e tudo parecia funcionar perfeitamente dentro e fora da venda. Há nela uma nítida separação entre o que se vende e o que se negocia na rua, não havia mistura. Enquanto o frade leva à boca um copo com refresco, água ou até mesmo vinho, na rua, na esquina, uma mulher preta parece vender um colar à sinhazinha, a qual se encontrava na sacada da parte superior do sobrado. Notamos uma pausa para os prazeres mundanos lá dentro, circularidade de culturas cá fora e em franca profusão. O colar de contas, depositário de tradições culturais africanas e afro-brasileiras, parece-nos agradar à moça branca, que, ao usá-los, atribuirá a ele muitos novos significados, mas contribuirá para a manutenção de práticas culturais populares.
Todos esses dinamismos representados pela obra existiam com frequência; foram mencionados incontáveis vezes na documentação manuscrita da época. Sobre os universos culturais distintos, podemos afirmar que não se corria o risco, pela observação da obra, de tornar realidade histórica uma invenção sem pé nem cabeça, feita por um desenhista que queria brincar com uma realidade no seu presente e no futuro. Os escravos se apoiam e certamente se apresentavam ali porque era tudo um procedimento comum.
O índio desacordado na soleira da porta era cena corriqueira nesses tempos e nessas regiões onde a população indígena não foi exterminada por completo. O garoto no balcão é um importante agente de dinamização e também de trânsito social, quando levava e trazia mensagens e artigos; quando fazia circular informações, fazia também a mediação entre universos culturais distintos. Já a preta que conversa com o oficial militar, toda paramentada com seu pano da Costa jogado sobre o ombro, mostrava tradição e tecido africanos. Ela acabava por estabelecer, naquele momento, mais um espaço de notável sociabilidade: os pretos e o frade pedinte à esquerda, os frequentadores da venda lá dentro e as mulheres que discutem sobre o colar de contas.
Rugendas acabou por compor uma cena idealizada, tanto no Recife como no Rio de Janeiro e nas Minas Gerais, e com isso podemos ver uma certa unicidade de comportamentos. Sua pretensão realista é coroada pelos cães que, na primeira cena, rosnam e disputam terreno quase fazendo com que o observador escute os ruídos vindo da efervescente venda recifense e de seu entorno; é o grande mote que acaba exalando de tudo.
Venda no Recife me permitiu refletir sobre a historiografia brasileira. A litografia é o pretexto para que possamos demonstrar os tempos e os valores, como os historiadores liam as icônicas imagens ou as figurações de memórias do passado, sublinhando aspectos, desconhecendo alguns e outros sendo desconsiderados. A compreensão dos objetivos que o artista queria alcançar é uma das atividades desenvolvidas pelos historiadores; a recuperação de maneira absoluta e integral é sempre muito difícil. Esses registros iconográficos nos levam a aprofundar o estudo da mestiçagem no Brasil do século XIX.
Depois de demonstrar como a multiplicidade e a efervescente dinâmica cultural brasileira foi devedora do século XVIII, é importante ressaltar como os oitocentos - racional, cientificista, secular - desqualificam e desabonam todo o nosso processo de mestiçagem cultural. Certos conceitos são fundamentais para compreender melhor o quadro que se formou. Um deles é o de civilização; outro é o seu oposto, o conceito de barbárie. Seus grandes divulgadores no século XIX foram os antropólogos evolucionistas, chamados assim por terem aplicado a ideia de evolução das espécies à sociedade humana; partiam do pressuposto de que a origem humana era ligada a espécies essencialmente diferentes. Apropriavam-se da teoria desenvolvida por Charles Darwin.
Os evolucionistas diziam que a raça humana era a única e as diferenças seriam apenas culturais, com origem única ou diversa em graus diferentes de evolução (Schwarcz, 2001). Traduzindo os humanos em selvagens bárbaros e em civilizados, o que acabava sempre em classificações clássicas como a visão de atraso e a de progresso, contemporâneas e bastante caras aos historiadores positivistas da época. Posteriormente, adotaram a abordagem que partia da visão conhecida como centro e periferia, muito apreciada por historiadores, inclusive modernos (sociólogos, economistas e até juristas, sem falar dos demais intelectuais e de políticos marxistas).
O esquema de comparação cultural era bastante simplório entre os evolucionistas, darwinistas sociais, positivistas e seus seguidores. Foram muito comuns as análises que pressupunham uma Europa civilizada, Inglaterra e França, em oposição a outros, localizados em diferentes estágios da escala evolutiva ou do progresso. Comparavam-se, portanto, os costumes dos outros povos com os costumes dos europeus, pretensamente civilizados. Quanto mais se assemelhassem à história e às formas de viver dos europeus, mais as outras culturas estariam próximas da civilização. Era no mínimo um grande exagero. Afinal, não se relativizavam nem se contextualizavam as não-civilizadas. Os povos dos trópicos e os povos mestiços seriam civilizados apenas quando adquirissem padrões, comportamento e perfis europeus. Era então tudo marcado pelo efeito da mimese. Mas "é que narciso acha feio o que não é espelho", como canta Caetano Veloso, talvez.
Assim, parte substancial da elite brasileira e da América Latina concordava com esses posicionamentos e julgamentos, adotando-os. No caso brasileiro, era necessário embranquecer para civilizar! Esse foi um dos dilemas que acompanharam os partidários da imprescindível civilização/europeização do Brasil. Era um tipo de pensamento etnocêntrico, que desqualificava aquele que não era parte do centro de onde se observava, se falava e se julgava. Era imprescindível mudar os rumos da história do país, esquecer o passado escravista e então clarear. É claro que a nossa complexidade social se agravou mais ainda. Já podemos visualizar os resultados dessa avessa/anversa confusão causada por tudo.
Os brasileiros amantes da civilização europeizada, obviamente por pura mimese derivada de uma herança colonial, não aceitavam serem considerados menos civilizados por terem nascido e por viverem em um país mestiço e pobre, ainda que o Brasil fosse uma monarquia ligada às casas reais europeias até 1889 e depois fosse uma jovem república, partidária das ideias mais modernas da política e da administração.
O incentivo à entrada de grande quantidade de trabalhadores europeus brancos foi uma política adotada tendo como um de seus objetivos substituir o trabalhador preto e mestiço pelo europeu, o que significava, a médio e longo prazo, embranquecer a população, as camadas mais populares. Intentava-se prover esses populares brasileiros de certa cultura, de valores, de práticas religiosas à moda europeia por mimese contumaz.
Os imigrantes italianos, portugueses e espanhóis, de tradição católica, foram os preferidos, mas também chegou grande número de alemães. Mais tarde vieram os japoneses, o que acabou por deixar no quase esquecimento o oriundo da senzala. Esse acabou por seguir seu rumo quase que independentemente, sentindo dia a dia o peso de uma repugnância derivada de um mimetismo europeísta, extremamente preconceituoso, que tinha origem na herança cultural da nação, desqualificadora e considerada desprezível pela sociedade oficial. Era o perfil populacional e cultural que se queria para o Brasil do futuro século XX, o qual que acabou sendo, verdadeiramente, um século do não! Mas não podemos nos esquecer de que, ao largo de tudo, se fortalecia pelo menos a corporificação de suas formas de organização, geralmente clandestinas. Criava-se, fazendo alusão à película protagonizada por David Carradine, O ovo da serpente.
A mestiçagem, não cessou e, mantendo uma longa tradição, passou a incorporar dimensões lógicas, dinâmicas culturais, principalmente a partir da chegada dos imigrantes europeus. A realidade histórica se dava exatamente assim, não era o que se via nos discursos e nas representações sobre esse Brasil crioulo que se pretendia civilizar ao modelo europeu. Muito pelo contrário, várias representações iconográficas foram indicadores do futuro e tornava o crioulo um degenerado (numa conceituação social darwinista que se opunha à eugenia, isto é, à ideia da raça pura), um personagem exótico do passado de atraso do Brasil, refletido principalmente no interior caipira do país. Pasme, caro leitor, tornava o crioulo uma espécie de sub-raça, condenada à extinção no Brasil moderno.
O Brasil salvo pela civilização e pelos agentes civilizadores mais significativos, os brancos, era a mensagem que uma das pinturas mais representativas desse período e desse pensamento pretendia transmitir; parece que ainda transmite. Estamos fazendo referência à tela Redenção de Cam, pintada pelo espanhol Modesto Broco y Gomes em 1895, em que a mestiçagem comandada pelo agente branco transforma-se na solução para o grande problema nacional (Martius, 1845).
O significado do título dado à tela faz referência ao personagem bíblico Cam era um dos três filhos de Noé. E, por ter visto seu pai nu, provocou a sua ira. Noé, então, amaldiçoou Canaã, filho de Cam, a ser escravo de seus irmãos. Assim, os descendentes de Canaã passariam a ser escravos dos parentes. A história bíblica de Cam foi usada como justificativa para a escravização dos negros africanos, a partir do século XVI. A escravidão não só se justificaria como purificaria os pecados e permitiria a salvação da alma.
Modesto Broco y Gomes, ao transportar a história para a realidade brasileira, recém-saída da escravidão, faz uma composição carregada de referências e de valores europeus. Supomos que ele talvez quisesse pintar o Brasil, sua história de hibridismo e seu futuro civilizado. Evocava ícones cristãos, que dariam maior legitimidade e apelo às ideias transformadas em imagem. A redenção do personagem bíblico era a representação da redenção do Brasil; produzir-se-ia assim, no seio da Sagrada Família e no nascimento do Salvador. Uma Santana negra levantava as mãos em direção ao céu e agradecia o nascimento da criança branca. Isso significava que estaria pura, sem pecado original. No colo de sua mãe, uma virgem e mulata, e observado por seu pai, um São José entre o caboclo e o imigrante europeu, o menino ocupa o lugar principal da cena. Ele seria o Brasil jovem, pintado à moda renascentista, com os dedos da mão direita em forma de 'V', o da vitória e da bênção e, na mão esquerda, uma laranja, o que poderíamos dizer que representava uma brasileirice mimética. Ou, como prova do preconceito popular, uma crioulice, símbolo da fertilidade e da fartura, substituindo o cacho de uvas, a romã ou ainda o pássaro usados pelos antigos pintores do Renascimento. É interessante que a mãe apontava para a avó negra, como se apontasse para a origem degradada do menino, agora redimida, e ele sinaliza a sua vitória e direciona sua bênção para esse passado terminado, ou seja, remido.
No centro de toda a composição, o Brasil livre e salvo, sob a forma do Menino Jesus, branco. A mestiçagem é elevada à categoria de caminho civilizador, claro, porque passaria a ser dirigida pelo agente branco, cuja inexorável influência seria a única determinante. E tratava-se de agentes do gênero masculino que negavam certa promiscuidade crioula do passado. Esse agente civilizador dominaria a cena tanto com facilidade, biologicamente falando, quanto culturalmente, mas o elemento crioulo tinha que desaparecer; pelo menos era o que podíamos depreender do que vemos na obra. A mestiçagem deveria embranquecer-nos a todos.
Era necessário sanar o Brasil das doenças, dos vícios e da barbárie que o passado lhe impusera. Assim, não podia permanecer crioulo, mestiço e ainda indolente. O Brasil moderno estava, então, nos centros urbanos, nas cidades. O brasileiro do interior, crioulo, mestiço, o branco pobre, embora fosse inadequado tratar assim, precisaria se modernizar, se transformar, se educar. O modelo de educação seria realmente o problema a ser pensado - o que nos leva a desconfiar do que estamos realmente recebendo nas escolas atualmente -, mas, tratava-se de um discurso por demais cansado para os dias atuais. São dessa época algumas imagens, que ficariam famosas, que representam esse homem bronco e doente do interior brasileiro, que contrastava com a imagem de um brasileiro idealizado, civilizado e moderno.
Em 1893 (podemos ver como o discurso é cansado) José Ferraz de Almeida Júnior terminava uma de suas telas mais conhecidas: Caipira Picando Fumo. O homem do campo, das matas, do Brasil arcaico, chamava a atenção do célebre pintor brasileiro. Ele convivera intimamente com o mundo e os personagens que pintava; consta que os retratava a partir de certos valores, padrões e inquietações, se não adquiridos, aguçados, durante sua primeira estada em Paris entre 1876 e 1882. Isso ajuda a entender melhor essa série caipira.
O Derrubador mestiço, crioulo, tinha origem indígena, como também O Garoto Que Pesca e O Homem Que Amola o Machado, representados de maneira que sua origem fica pouco evidenciada. Os caipiras da série têm aparência de imigrantes italianos e portugueses.
É interessante notar a ausência de mulatos ou pardos, mas parece que todos são genuinamente crias, ou seja, crioulos, tão comuns entre a população interiorana da virada do século XIX para o XX. Podemos suspeitar que poucos fossem de origem genuinamente europeia, ou seja, que não tivessem nascido aqui. O ambiente de Almeida Junior é essencialmente híbrido. Pode-se notar nele técnicas indígenas, utensílios afro-brasileiros e europeus, costumes já brasileiros e religiosidade popularizada. Mas ele pinta justamente o que a ideia de modernização e de civilização buscava extinguir, uma vez que esses conjuntos de práticas cotidianas eram julgados próprios dos povos mais atrasados.
Almeida Junior, homem de seu tempo, interessado numa simplicidade do interior, acabou por pintar um dos temas que mais chamava a atenção e incomodava intelectuais, políticos e artistas brasileiros. Sua pintura tratava de transportar para as telas representações do povo brasileiro, do passado e do futuro do país, em sua concepção expressas por seus pares e conhecidos que ele teve oportunidade de observar, discutir, escutar, ver e, finalmente, transformar em registros icônicos.
As telas de Almeida Junior influenciariam a própria representação do caipira brasileiro. Monteiro Lobato disse: "brasileira é a sua arte, inconfundível o seu nacionalismo". Entretanto, não se tratava de um nacionalismo defensor das práticas e dos valores mestiços ou crioulos do Brasil, das bases do futuro de nossa nação. Monteiro Lobato criaria o Jeca Tatu exatamente para negar o homem doente do interior brasileiro. Publicado em 1918, no alvorecer do século do não, ele sofria de doenças provocadas pela pobreza, pela ignorância, pelo barbarismo (Lobato, 1918; Lima, 1999; Schwarcz, 2001). Era distante de um homem civilizado. Essa era sua pior doença. Seu comportamento comprometia o ideário do Brasil moderno. A preguiça o acometia fatalmente; seu destino era sucumbir à inevitável miséria. O Jeca Tatu era o Brasil atrasado e doente que necessitava urgentemente de remédios eficazes.
A indolência e a preguiça marcaram a representação do crioulo no início do século XX, associado e/ou confundido, no imaginário popular, com o caboclo, o caipira, o sertanejo. Os argumentos usados se diferenciavam dos apresentados pelas autoridades coloniais. Para o Conde de Galveas, governador da Capitania das Minas Gerais em 1732, os pretos e os mestiços, crioulos aqui considerados, quando crias, forros, eram insolentes, uma espécie de mal necessário, uma vez que pagavam parcela significativa dos tributos cobrados da população.
Um dos delatores da Inconfidência Mineira, o coronel Bazilio Malheiros do Lago deixou registrado, em testamento feito em 1809, sua impressão sobre as camadas populares do Brasil - escravos, libertos, livres pobres e mestiços - todos, a princípio, crioulos. A intolerância com relação a eles mudaria de forma e de discurso, mas o produto da hibridação biológica e cultural continuaria sendo discriminado, e o país mestiço permaneceria sendo combatido. Ao quadro geral da discriminação do final dos oitocentos juntava-se o aumento do preconceito com relação ao passado luso e monárquico escravista e colonial.
Assim, o desafio continuava por toda a saga de atropelos da identidade desse personagem novidadeiro no mundo que o português criou. A vida não lhe era nunca benevolente, nem o faria um incluído social, mas seus desafios eram vistos sempre como um incentivo para que continuasse vivendo. Sua saudade da terra natal acabava sendo muitas vezes interpretada como simplesmente banzo, característico de coisa meramente passageira. Não havia sequer uma efetiva atenção para o que se consubstanciava em seu ethos, a revolta, a qual, com o germinar da tomada de consciência, lhe solidificava mais ainda os espíritos atormentados no interior da novidadeira urbanidade citadina do Rio de Janeiro. E a cidade crescia, insensível, rumo ao progresso.
A cidade do Rio de Janeiro
A capital do Império e de até parte significativa da República tem sido, de maneira longeva, palco de grandes e grandiosas decisões políticas nacionais. Cabe a nós, em um esforço de revisão, buscar aprender um pouco mais. Nos dizeres de Luiz Fernando Veríssimo, no jornal O Globo:
O materialismo histórico rejeita a ideia de sujeitos regendo a História e a noção de que as ideias vêm de um discernimento moral inato, ou religioso. Os liberais nos dizem que o mercado não é moral nem imoral, é apenas inevitável. Assim, o relato de heróis providenciais contra bandidos doentes sobra para a literatura, ou para essa categoria de narrativa sentimental que é a História convencional. Porque gostamos de pensar que é a iniciativa humana que move a História e que seu objetivo é moral e justo. Ou que ela pelo menos tem uma cara e uma biografia.A história feita por indivíduos tem o atrativo adicional da conjectura criativa, de infindáveis variações sobre o se. O que teria acontecido se Napoleão tivesse se contentado em ser instrutor de tiro, se os pais de Stalin nunca tivessem se encontrado? E se Jânio Quadros tivesse ficado? (Veríssimo, 2007, p. 7).
Algo de novo no cenário nacional veio à superfície e encontramo-nos em uma verdadeira encruzilhada. Seria a força da razão sensível atuando sobre nossa crível e envelhecida razão concreta, gerando a construção de uma potência oposta assustadora?
Durante o Segundo Reinado, o Rio de Janeiro possuía a condição de centro político do país e, por direito, de herança histórica; os cariocas ainda somos ouvidos e bem ouvidos por todos nacionalmente. Daquela época para cá se apresentava à cidade, em sua parte urbana, qual um retângulo, com ruas que se entrecruzavam em uma geografia territorial bem menor e simples da que temos agora. Havia um grande número de habitantes, porém poucas casas, obviamente. A cidade desenhava-se por um contorno que começava na região do Arsenal do Exército, junto à Ponte do Calabouço, ao longo da costa marítima, passando a noroeste por São Bento e na praia para o Valongo. Ao norte seguia pelo Campo de Santana e ia em direção ao Caminho do Mata-Cavalos.
O centro da cidade não correspondia à boa impressão que seu panorama apresentava. O estilo de construção das casas não seguia um desenho uniforme, a pavimentação era ruim e a iluminação das ruas era muito fraca. Era uma cidade que vivia praticamente às escuras, com graves problemas. As igrejas, com suas torres vistas de longe, surpreendiam pela quantidade ou pela situação, mas de perto não satisfaziam. Não faltavam ao Rio de Janeiro grandes praças, e as situadas na praia eram aprazíveis, pois estavam sempre arejadas. Entre os edifícios, o palácio imperial se apresentava como o mais distinto. Havia sido residência dos vice-reis. Havia também o Convento das Carmelitas, com dois andares e a fachada principal voltada para o mar.
O Rio de Janeiro possuía um quadro de edificações bastante irregular. Nesse particular, tinha aparência extremamente desordenada. As construções "iam-se erguendo à vontade de cada dono, resultando da sua localização o arruamento, em vez de o arruamento preceder a edificação" (Rosa, 1924, p. 27). As casas dos subúrbios, como também as do centro da cidade, eram igualmente construídas de pedras e cobertas de telhas, porém somente tinham andar térreo, com uma ou duas janelas para a rua. Nessas pequenas residências moravam muitas vezes dez a doze inquilinos, apertados em suas pequenas dependências.
O perímetro urbano localizava-se num pequeno espaço entre quatro morros; fora disso, somente engenhos e fazendas compunham a paisagem. Em Botafogo e na Lagoa Rodrigo de Freitas havia centros açucareiros. Na segunda metade do século XIX, começou de fato o processo de ocupação urbana, com a implantação das linhas de bondes puxados a burro da Botanical Garden Railway Company (Heibrorn e Cavalcante, 1986, p. 38). Nas Laranjeiras havia um núcleo de transações de cerâmicas e olarias. O acesso aos lugares era muito difícil, em função da falta de estradas e da dificuldade de transportes. O cavalo era o principal meio de locomoção. As distâncias eram muito grandes. O calçamento das ruas apresentava-se irregular e constantemente estavam enlameadas pelas chuvas de enxurrada, o que dificultava sobremaneira a passagem das carruagens da corte de então.
Devido às distâncias e às dificuldades de transporte, as moradas do Alto da Tijuca, das freguesias de fora, quase sempre se apresentavam apenas como sítio do recreio, refúgios para descansos e férias, e nunca como domicílios habituais. O centro é que era área residencial.
O caminho do Morro do Castelo também constituía uma área procurada e movimentada; lá estavam instalados o observatório astronômico, o telégrafo, o hospital militar e, depois, a Escola de Medicina. Todavia, houve tempo em que a área transformou-se num ponto em que as pessoas passeavam aos domingos.
Mesmo sendo convertida num grande centro político, a cidade do Rio de Janeiro assustava alguns viajantes, sobretudo aqueles provenientes de locais mais avançados, acostumados a uma urbanização acelerada e menos violenta. Muitos a viam com olhos não muito bons e achavam que era muito atrasada, desorganizada, escura, suja e fedorenta. Outros percebiam-na como o lugar de desgraça e ruína de europeus imigrantes. Oskar Constatt descreve uma passagem dessa ruína:
Um cavalheiro da Silésia, que lá possuíra solar, teve de ganhar a vida como coveiro, no Brasil, enquanto sua mulher, outrora o centro de brilhante sociedade, lavava roupa para fora. A maioria desses imigrantes chega a esse estado devido à bebida ou à invencível aversão ao trabalho. Podíamos continuar a enumerar infinitamente os destinos desses imigrantes alemães, intrusos para o Brasil, mas os poucos exemplos mencionados devem ser bastantes para justificar-se à conclusão de que só certas classes de imigrantes, isto é, os saídos das classes laboriosas e os camponeses, podem ter asseguradas suas esperanças de futuro propício no Brasil. Não é menos prometedora a perspectiva para comerciantes, quando têm alguns recursos e se habituam à ideia de que durante anos, para assegurarem o lucro pecuniário, terão que se privar das coisas agradáveis da vida europeia (1875, p. 144).
No que se refere aos divertimentos, havia muitas variedades, como Eldorado ou Alcazar, Renaissance, Hotel des Princes, na Praça da Constituição; Freres Provenceaux, na Rua do Ouvidor esquina de Latoeiros, atual Rua Gonçalves Dias. Todas essas casas destinavam-se ao entretenimento, tal qual o Cassino Fluminense, que se destacava pelos bailes que promovia:
Nos bailes dados pelo Cassino Fluminense, seus vastos salões ficam povoados de trajes fascinantes, saídos das tesouras do grande Worth. No país dos diamantes, é muito fácil ver cintilar muitos nestas reuniões do mundo elegante; mas, a este respeito, o peito dos maridos faz uma terrível concorrência às espáduas graciosas, pois muitos homens se fazem notar pela riqueza das condecorações, crachás de ordens, abotoaduras e botões de colete ofuscantes de pedras preciosas (D'Ursel, 1880, p. 48-49).
Havia também os hotéis-restaurantes, como Hotel Du Louvre, na Praça da Constituição; Hotel D'Europe, na Rua do Carmo, canto de Ouvidor, e ainda o Hotel do Globo, à Rua Direita, que era muito bem frequentado no que tange ao volume de público. Contudo, não era de boa qualidade. O ambiente era intranquilo:
Não tardamos a ser envolvidos pelas maneiras discretas das criadas e os olhares das mulheres pintadas; de noite, ouvimos nomes gritados pela janela, barulho, portas e muito movimento na escada. No Rio, as janelas das ruas mais centrais ficam apinhadas de criaturas, que chamam os transeuntes em pleno dia. A edilidade não procura localizar o problema. Deixa que se espalhe pela cidade toda, quase transformada, na boca da noite, em casa de tolerância. Uma tal acumulação de prostitutas, sem controle algum, constitui um verdadeiro perigo a saúde pública (Verbugghe e Verbugghe, 1880, p. 107-108).
Para ficar em hotéis de padrão decente, os viajantes franceses Louis e Georges Verbugghe indicavam dois outros estabelecimentos: o Carson ou o dos Estrangeiros, que ficavam fora da cidade. No Peixe Frito, na vizinhança do Teatro São Pedro, e no Restaurante Labarthe reuniam-se pessoas bem mais modestas. O Rio de Janeiro possuía uma divisão administrativa marcada por aspectos eclesiásticos.
Diversas freguesias ou paróquias tinham limites de seus territórios definidos por jurisdição religiosa. Com o tempo isso mudou, como afirma Francisco Noronha Santos: "depois essas mesmas freguesias passaram a abranger os territórios de jurisdição administrativa" (Santos, s.d.).
Era uma cidade que produzia com base no trabalho negro, essencialmente escravo. Mesmo experimentando crescimento urbano, pela própria condição de capital do império, esse tipo de braço não seria abandonado. Nas palavras de Thomas Nelson:
O negro não só é o trabalhador dos campos, mas também o mecânico, não só racha a lenha e vai buscar a água, mas também com habilidade de suas mãos contribui para fabricar os luxos da vida civilizada. O brasileiro usa-o em todas as ocasiões e de todos os modos possíveis; desde cumprir a função de mordomo e cozinheiro até servir os propósitos de cavalo; desde fabricar vistosos berloques a fazer a roupa, até executar o mais vil dos deveres servis (Nelson, apud Conrad, 1978, p. 3).
Em 1849, a população das paróquias urbanas atingia o número de 205.906 pessoas, enquanto a dos subúrbios era de 60.560, totalizando 266.466 pessoas. Naquele mesmo ano, os negros livres e libertos das paróquias urbanas da cidade totalizavam 127.051 habitantes, afora um contingente de 78.855 escravos (Lobo, 1978, p. 469; Karash, 1972).
Com relação ao escravo, o período de 1850 a 1860 apresentou crescimento populacional muito lento. Seu número absoluto, que era de 48.282, foi para 50.092. Configurava-se uma baixa percentual em relação à população total em 1870.
Os recenseamentos de 1870/72 foram os primeiros censos feitos sistematicamente baseados em critérios mais seguros e apresentando aceitável compatibilidade de afirmações. O aumento de estrangeiros residentes no Rio de Janeiro entre essas datas foi de 2.601 por ano, em média. Havia um número significativo deles sem profissões conhecidas, relegadas à marginalidade, à desocupação e/ou à exclusão sociocultural, o que nos faz supor que também engordavam o ambiente marginal do qual nos ocuparemos no presente trabalho (Lobo, 1978).
A demografia da cidade do Rio de Janeiro foi testemunha de transformações importantes em sua estrutura populacional nas cinco últimas décadas do século XIX. Em 1872, moravam na capital 274.972 pessoas. Em 1890, esse número cresceu para 522.651, tendo quase dobrado em cerca de vinte anos. Tal crescimento representava uma situação inesperada em termos de área territorial. Os reflexos disso seriam claramente notados nas relações sociais que a cidade passaria a ter. O aumento contínuo do contingente de pessoas trazia consigo uma onda de problemas que podem ser detectados pela incipiência de seus serviços, a bem da verdade, cada vez mais precários.
Esse crescimento populacional tinha suas causas principalmente na migração de escravos libertos da zona rural para a urbana, na imigração de forma geral; era a imagem que a cidade refletia, de melhores condições de vida.
O Rio de Janeiro concentrava grandes contingentes de negros e mulatos, registrados no censo de 1890. Grande número deles era de origem estrangeira. Sabemos que grande quantidade desse contingente encontrava-se presa a atividades ligadas a pequenos ganhos.
Em 1890, do total populacional de 522.651, havia no Rio de Janeiro 163.137 habitantes entre os 15 e 30 anos de idade, o que constituía 31,21%. Desse total, 293.657 eram homens e 228.984 mulheres, representando respectivamente 56,18% e 43,81% da população. Daí inferirmos que, havendo mais homens que mulheres, tivéssemos maior disponibilidade de trabalho masculino na cidade do que feminino. Também, podemos deduzir que os 31,21% da população jovem (ou mais ativa para o trabalho) faziam da cidade uma área com grande potencial de mão-de-obra, que se renovava e se tornava produtiva.
Segundo o professor Sydney Chaloub, essas importantes mudanças na demografia da cidade precisam ser percebidas dentro de um quadro mais amplo da constituição do capitalismo no Brasil (Chaloub, 1986, p. 27). No do Rio de Janeiro, tanto no setor urbano, como na área suburbana, as profundas transformações socioeconômicas associadas à transição de relações sociais do tipo senhorial-escravista para relações sociais do tipo burguês capitalista na cidade durante a segunda metade do século XIX provocaram abalos.
A decadência do regime escravocrata e senhorial operou-se vagarosamente na Corte como em todo o país. Deixou várias sequelas, principalmente sociais, que marcaram profundamente a vida das pessoas. Por ser capital do Império, o reflexo desse processo teve na cidade mais força e significado no cenário nacional.
Entre 1850 e 1890, período que se estende do ano da paralisação do tráfico negreiro ao início da fase republicana, a vida produtiva daqueles que habitavam a cidade passou por profundas mudanças. No setor urbano, os escravos, os libertos e os livres defrontavam-se com a tarefa de adaptabilidade aos novos tempos, num quadro de transição. As mudanças eram notadas nos hábitos e costumes. Construiu-se no Rio de Janeiro, à margem da sociedade tradicional, uma outra marcada pela desordem no espaço do trabalho. Para Tavares Bastos, era
uma sociedade formada por indivíduos não só de ínfima classe, em grande parte condenados, como de ambiciosos de dinheiro sem o santificado suor do trabalho, uma sociedade tal considera (...) a capacidade, indústria; a moeda, riqueza; a ignorância, virtude; o fanatismo, religião; o servilismo, respeito; a liberdade de espírito, um pecado que se expia na fogueira; e a independência pessoal, um crime de lesa-majestade (1975, p. 31).
Pelo lado dos senhores, um novo perfil de organização do trabalho (assalariamento) se anunciava, marcando suas trajetórias. Vagarosa e gradualmente, eximiram-se da responsabilidade pela manutenção e segurança de seus libertos.
Por outro lado, o Estado imperial e a Igreja Católica não assumiam encargos especiais para com esse tipo de pessoa, ou seja, não se firmou qualquer compromisso que estivesse pautado pela preparação do indivíduo para o novo regime de organização da vida produtiva e do trabalho. Acrescentamos ainda o fato de ser o Rio de Janeiro uma cidade "onde o bem público era uma expressão sem sentido, porque não havia público" (Sarmiento, 1978, p. 68).
Vozes inquietas de pessoas ilustres insistiam em abrir nossas portas para o estrangeiro, exigindo mudanças de hábitos. Nas palavras de Tavares Bastos:
é preciso mudar de hábitos, é preciso pôr o trauma no corpo do brasileiro. E eu não conheço senão um meio eficaz para isso, a saber: abrir francamente as portas do Império ao estrangeiro, colocar o Brasil no mais estreito contato com as raças viris do norte do globo, facilitar as comunicações interiores e exteriores, promover a imigração germânica, inglesa e irlandesa e promulgar leis para a mais plena liberdade religiosa e industrial (1975, p. 50).
O liberto viu-se, inesperadamente, "proprietário de si mesmo" (Fernandes, 1978, p. 15). Passou de propriedade a proprietário numa ordem social diversa da originária, tendo que comandar seus destinos em busca de uma vida cidadã. O novo quadro no qual se inseria, ao tornar-se liberto, exigia-lhe responsabilidades diferentes e novas. Nessa condição, ele seria responsável por si e por seus dependentes. Contudo, sem recursos materiais e principalmente morais para lidar com quadros de uma sociedade que mudava vagarosamente sua trajetória para um perfil econômico de competição, o Rio de Janeiro refletia uma sintomática diminuição do espaço de trabalho principalmente para o liberto, que tem dificultadas suas oportunidades de integração social.
Neste sentido, o professor Florestan Fernandes afirma que "essas facetas da situação humana do antigo agente do trabalho escravo imprimiram à Abolição o caráter de uma espoliação extrema e cruel" (1978, p. 15).
Rui Barbosa chamou essa situação de "ironia atroz". Em liberdade, faltava-lhe muito, principalmente, o direito de errar e acertar. A vida lhe seria bastante ingrata. A liberdade não lhe conferia a felicidade, pois pairava sobre seus ombros a dura tarefa de se adaptar a novas regras sociais sem o menor preparo. Em trecho da obra de Luís Gama, temos um exemplo de sua angústia:
Que mal te fiz eu, rapaz? diz o senhor. Pois não tem boa cama e boa mesa, roupa e dinheiro? Queres então deixar o cativeiro de um senhor bom como eu, para ires ser infeliz em outra parte? Que te falta lá em casa? Anda! Fala! E o negro, ofegante, cabisbaixo, calava-se. Falta-lhe, responde gracejando Luís Gama, dando uma palmada de amigo no homem de sua cor, falta-lhe a liberdade de ser infeliz onde e como queira (grifo nosso) (1887).
Podemos inferir, portanto, que a escravidão tolhia as liberdades, controlava-lhe as ações, padronizava-lhe rigidamente os comportamentos oferecendo a ele uma condição de liberto, sem o preparo para a nova vida, empurrando-o para o limite do medo daquilo que se desconhecia.
As novas regras sociais eram desconhecidas. Não se tratava de escapar apenas, faltava-lhe na fuga o tempo e o preparo necessários à tarefa de adaptar-se ao novo. Senhor de si, na fuga ou na condição de liberto, era-lhe árdua a readaptação.
A condição de liberto faria dele um elemento social pendular, pois o tempo hábil para buscar a nova identidade tinha que ser curto mas nem sempre era possível. Apesar disso, quando cometia algum erro, era negada a compreensão, sendo então punido com severidade. Como liberto, acabava quase sempre engordando as fileiras da população desocupada na cidade. Vivia cotidianamente desocupações eventuais ou mesmo envolvido na dita vagabundagem, fruto da exclusão sociocultural.
Muitos se misturavam no caldo de cultura marginal da cidade. Na maioria das vezes abrigavam-se na proteção de maltas de capoeiras, onde encontravam algum destaque social dentro do grupo. Chegavam a exercer liderança pela habilidade que possuíam na prática desse jogo-dança-luta. Mas também apareciam embriagados, praticando desordem pela cidade, pequenos roubos.
Florestan Fernandes concluiria que "a preocupação pelo destino do escravo mantivera-se em foco enquanto estava ligado a ele o futuro da lavoura" (1978, p. 16). Os vários projetos que objetivavam regular a transição do trabalho escravo para o livre foram pontuais em tratar da questão. Contudo, os senhores mostravam-se sempre preocupados com seus próprios interesses.
No Rio de Janeiro, a preservação da escravidão refletia sempre uma resistência abolicionista. A lavoura de café passou a exercer tendência a reservar o braço escravo para as funções essenciais. Ele passou a ser empregado em tarefas supletivas ou perigosas. Por outro lado, muitas tentativas de introdução do braço europeu livre sinalizavam na direção de mudanças de comportamento dos fazendeiros.
Esses novos colonos europeus eram inseridos em fazendas organizadas em bases escravistas. A remuneração que recebiam pautava-se pela já mensurada rentabilidade do trabalho escravo existente. Isso causava frequentes choques entre os grandes proprietários e os colonos, que viam desvantagens nessa relação. Tal quadro ajudava a formar um corolário de contornos importantes, pelas mudanças que se delineavam.
O tráfico interprovincial colaborou para que não caísse muito a prática escravista na Corte, com suprimento de braços. Paula Beiguelman atribui a isso a "resistência do centro-sul em geral e especialmente do oeste paulista" (1982, p. 9). Tal comportamento fez-se notar quando da lei emancipadora, de 1871. O escravismo havia sido ferido em duas etapas: 1850, encerrando a especulação com escravos; e em 1871, levando o sentido do investimento escravista a ser condenado a um processo de longo prazo. Isso gerou forte desinteresse por essa prática em muitos senhores de escravos.
Se compararmos Rio de Janeiro e São Paulo, notaremos que os ritmos dessas transformações foram diferentes. No Rio, a lentidão foi a marca maior, pois havia senhores que adquiriram dívidas de hipotecas com a transformação de suas fazendas de açúcar em fazendas de café. Os empréstimos para o novo cultivo obrigavam a hipotecar seu patrimônio, inclusive o escravo, fato que dificultava o fim dessa prática de produção.
Contudo, ocorreram mudanças. Se, por um lado, era lento mas inexorável o uso do braço livre na lavoura, por outro os problemas decorrentes das relações de produção mencionados trouxeram consequências importantes para o quadro que abordamos.
Muitos braços livres insatisfeitos com isso rumavam para a cidade, ajudando a construir no espaço urbano uma camada de imigrantes estrangeiros prontos para a vida de competição no mercado. Tal fato poderia levar à escassez das oportunidades de trabalho, agravado com a forte opção pelo braço europeu, como afirma Kátia Queirós Matoso:
na cidade vive toda população que não era nem escrava, nem grande proprietária ou de altos funcionários ou comerciantes fortes. É na cidade que se forma e gradualmente se avoluma essa camada intermediária de representantes de algumas profissões liberais, do baixo clero, da administração civil e militar, de artesãos de todos os tipos, de pequenos e médios comerciantes, de marinheiros (...). A cidade, portanto, representaria a opção para negros libertos e fujões (1982, p. 110).
O liberto encontrava seu primeiro obstáculo para se colocar no novo mercado. Se somarmos a isso seu despreparo para a nova vida, podemos inferir que as dificuldades se agigantavam, causando empecilhos difíceis de serem transpostos.
Havia uma grande oferta de braços para o trabalho na cidade. Mas desqualificada, em sua maioria. O número de pessoas desocupadas e despreparadas, ou seja, sem profissão definida, na cidade do Rio de Janeiro era evidente no censo de 1872.
Essa população formava um caldo de cultura urbana grupal, possuidora de contornos assimétricos em sua formação e relacionamento. Tal quadro era provocado pela inevitável convivência de pessoas de diferentes origens e hábitos no mesmo espaço territorial, pessoas que demonstravam urgente necessidade de defender seus espaços urbanos.
Nesse panorama, a territorialidade passou a ser marca dos conflitos, ou seja, a defesa do espaço conquistado (Zuman, 1991). Excluídos do mundo do trabalho, constituíam-se em formações sociais marginais, pois passavam a ter uma vida errante. Constantemente se opunham à lei e à ordem, sobrevivendo como excluídos socioculturais e sociais (Perrot, 1991). O exemplo mais característico desses grupos eram os capoeiras. Híbridos, compunham-se, dentre outros, de pessoas oriundas de várias camadas sociais; uns eram excluídos do mundo do trabalho na cidade; outros, como os capoeiras, eram uma espécie de banidos sociais, por causa do tipo de comportamento que tinham na vida cotidiana, pautado pela violação das regras, praticantes comuns da violência física. Embora fossem, por um lado, eficientes instrumentos políticos de balbúrdia e arruaças em ocasiões de campanhas eleitorais, cooptados pelos partidos da época, como diz o professor Carlos Eugênio Soares (1993), podemos afirmar que apresentavam formação de verdadeiros bandos, e/ou corpos socioculturais autônomos. Na avaliação de Berque, "o grupismo difere do gregarismo no fato de que cada membro do grupo, conscientemente ou não, se esforça sobretudo para servir ao interesse do grupo ao invés de simplesmente, procurar refúgio nele" (1982, p. 167).
O escravismo em crise despejava na cidade um contingente populacional volumoso de libertos. Na medida em que se processava a transição do escravismo para o capitalismo, as contradições nas relações de produção no campo traziam o êxodo do braço europeu (Soares, 1993). Este, dentre outros, também contribuiu para o crescimento, na cidade, do volume de pessoas envolvidas cotidianamente em condições adversas, num jogo de sobrevivência entre os que não encontravam colocação imediata no mercado de trabalho. A preferência daqueles que ofereciam empregos na cidade convergia para o livre nacional e estrangeiro, principalmente na corrente dos atuantes na parte competitiva da economia. Contudo, a oferta de braços desqualificados era grande, fato que acarretava dificuldades. A competição no mercado era extremamente desigual, assim como as regras, como a Lei de locação de serviços. Nas palavras de Ciro Flamarion Cardoso,
escravismo colonial e capitalismo coexistiram; sendo o capitalismo o modo de produção dominante, elementos capitalistas penetraram nas formações econômicas e sociais escravistas, no interior das quais as concepções capitalistas 'importadas' começaram a predominar - o que é compreensível quando se trata de um sistema dominante e periférico (1975, p. 118).
Engraxar sapatos, vender jornais ou verduras, transportar peixe ou outras utilidades, explorar comércio de quinquilharias eram ocupações menores. Nelas, o negro escravo aparecia com destaque. Trabalhando, ele não era ameaça à segurança individual de ninguém. Sobretudo porque se tratava de trabalho compulsório, submetido a duros e rígidos controles. Acerca disso afirma a professora Marilena Rosa Nogueira da Silva, respaldada na autora Leila Mezan Algranti:
é incontestável que a escravidão se adaptou às condições urbanas. Algumas modificações ocorrem no sistema, como a questão do ganho, da flexibilidade de circulação e dos contatos com grupos diferenciados. Entretanto, esses fatores não desarticularam o sistema; pelo contrário, foram incorporados por ele. Como muito bem esclarece o trabalho de Algranti, o Estado se encarregaria de manter a ordem - na medida em que aumentava a população da cidade, o controle desenvolvido pelo Estado intensificava-se, como resposta à flexibilidade imposta pelos serviços desempenhados pelos escravos, ao empenho dos senhores em explorar o momento de crescimento não acompanhado pela disponibilidade de mão-de-obra livre, que discriminava determinados serviços consagrados pela ideologia escravista como coisa de escravo (1988, p. 37).
Com relação ao escravo, o Estado atraía para a sua responsabilidade a tarefa de controle e manutenção da ordem interna. Porém, ao observar e comparar a relação da polícia no combate aos turbulentos no Rio de Janeiro, notamos muita precariedade. Havia sempre um número diminuto de policiais para implementar tal tarefa, e as reclamações eram constantes, como veremos mais adiante. Isso denunciava uma face de insuficiência desses órgãos de repressão.
O branco era presença marcante nos serviços não braçais, exceto em atividades de ambulantes em que o escravo ao ganho era numeroso. Acreditamos ter sido a oferta destas atividades preferencialmente de negros escravos. É comum encontrar relatos que pontuam sua presença dentro da cidade. O censo de 1872 demonstra que havia contingente volumoso de pessoas sem profissão definida. Nele, o contingente de libertos era grande. A este, restava uma situação social bastante incômoda.
Excetuando o braço escravo, no geral podemos afirmar que a desordem social contava com forte participação do liberto, principalmente do mulato. O livre nacional também aparecia. As relações de trabalho sofreram alterações lentas, pelo confronto de forças oriundas da escravidão dividindo espaço urbano com práticas capitalistas. Pelo lado dos que se libertavam da escravidão, cabe para o Rio de Janeiro a observação do professor Florestan Fernandes, embora trate do caso paulista. Ele diz:
com os antigos libertos e ex-escravos ocorria que tinham de optar, na quase totalidade, entre a reabsorção no sistema de produção, em condições substancialmente análogas às anteriores, e a degradação de sua situação econômica, incorporando-se à massa de desocupados e de semiocupados da economia de subsistência do lugar ou de outra região (1978, p. 17).
O Rio de Janeiro criava paulatinamente um mercado de trabalho marcado por atividades comerciais e industriais, com área urbana em franca expansão. A cidade apresentou crescimento e prosperidade muito enérgicos, principalmente na segunda metade do século XIX. Tratava-se da capital do Império. O sucesso da cafeicultura no interior da Província como um todo alimentava e mantinha o crescimento acelerado da capital. Steven Topik diz que, no final do século, essa cidade assistiu a uma transformação três vezes maior que São Paulo, sua rival mais próxima. Ele acrescenta que, em 1872, o Rio já tinha superado inclusive a Cidade do México em população. Segundo o autor, um terço do Brasil habitava o Rio de Janeiro. Isso porque lideravam populações predominantemente rurais. A partir de dados de Merrick e Graham, ele afirma ainda que apenas 10% dos habitantes viviam em cidades de mais de 20 mil habitantes dentro do Brasil.
Em 1850, grande quantidade habitantes era de estrangeiros, a maior parte composta de escravos africanos. Após a Abolição, em 1888, o Rio continuou a manter a maior concentração de estrangeiros residentes no Brasil. De 1890 em diante, a cidade só perdia para São Paulo (Topik, 1991, p. 58). A cidade conseguiu atrair um número crescente de migrantes internos a partir de 1872. Eles representavam um quarto da população carioca em 1890. Em nenhum momento do período tratado aqui a superioridade numérica da população em relação a outras cidades foi causada por alta taxa de crescimento natural.
O Rio de Janeiro era uma cidade muito mal-afamada como meio de cultura de doenças. Uma viajante francesa, Madame Toussaint, chegou a reclamar, em 1883: "as praias da Baía de Guanabara não passam de uma privada infecta, de onde entulhos de todos os tipos podem expelir suas emanações nauseantes" (Mauro, 1980, p. 17).
Por outro lado, enquanto a população e a cidade se urbanizavam, na mesma medida aumentavam as contradições decorrentes da convivência de práticas capitalistas com as pré-capitalistas. O Rio de Janeiro era um grande centro de redistribuição da produção nacional. Porém quase metade da população da cidade estava fora da economia de mercado. O aumento dos salários, dos preços e do número de habitantes transformou a cidade em pólo de atração para a produção regional, abastecida de produtos alimentícios do Rio Grande do Sul, de São Paulo e de Minas Gerais (Lobo, 1978, p. 90). Durante os últimos quarenta anos do Império, a Corte respondeu por mais da metade de todo o comércio exterior (Lobo, 1978, p. 266).
O mercado interno se beneficiou do modelo econômico exportador, de uma população em expansão e do relativo declínio da população escrava. Mircea Boescu fez estimativas de que os produtos para consumo interno, que contribuíam em apenas 25% do PIB em 1600 e com 43% em 1700, alcançaram participação de 7% em 1850, chegando até 80% em 1900. Tratava-se do aumento do papel do Rio de Janeiro como mercado e, como centro de redistribuição, refletia o dinamismo interno da economia. Na década de 1870, o Distrito Federal passou a se responsabilizar por mais de um quarto de todo o comércio entre as províncias do Brasil (Boescu, 1979, p. 16).
Embora o surto do café tenha inspirado o crescimento da economia monetária no século XIX, a manufatura só se disseminou na segunda metade do século - período que observamos aqui. A Guerra do Paraguai estimulou a demanda por produtos nacionais, mas em 1872 o Rio de Janeiro empregava menos de 6% da força de trabalho manufatureira do país. A década de oitenta e o início da de 1890 acabaram por testemunhar um esforço adicional para ampliar as capacidades produtivas da capital, que chegaria a sediar acima de 300 variedades de estabelecimentos fabris (Bastos, 1953, p. 136).
Simbolicamente, o Rio havia sido uma cidade colonial, com ruas estreitas e sujas, de poucos lugares públicos, condições de vida insalubres e serviços públicos bastante obsoletos. Jeffrey Needell registrou que, até o final da década de 1890, o Rio apodrecia dentro da sua carapaça colonial. Por outro lado, como capital, a urbe carioca representava a soma do progresso e dos sonhos nacionais. Não era apenas uma cidade para inglês ver, mas um monumento para o deleite da elite nacional.
Contudo, sua economia mercantil retratava uma convivência contraditória, fato que se refletia nas formações sociais urgidas principalmente no contingente de pessoas desocupadas. A vida econômica de competição existente entre a mão-de-obra disponível (práticas capitalistas) era bastante desigual. Seus efeitos foram gradativamente desastrosos para a continuidade da prática escravista. Essas práticas carcomiam e comprometiam drasticamente a posição do liberto nas relações de trabalho como agente. Este, na medida em que perdia importância privilegiada com a libertação, via extinguir-se também o interesse sobre seu emprego na produção. Causava efeitos danosos à permanência do liberto numa sociedade que, aos poucos, se tornava mais dinâmica e móvel. Na proporção em que isso ocorria, ele era jogado num destino incerto, marginal e excluído.
O liberto restringia-se a modestas oportunidades de trabalho, muito menos compensadoras do que os livres e estrangeiros. Quando ocupado, aparecia em serviços de artesanato urbano ou outros trabalhos menores, como o doméstico, ou o transporte de peixe e verduras, por exemplo. Portanto, havia degradação do seu trabalho.
O negro liberto e o livre que vivia na marginalidade acabavam eventualmente se ocupando de tarefas residuais do grande sistema econômico da cidade. Embora enfocando São Paulo, podemos aplicar para o Rio de Janeiro a afirmação de Florestan Fernandes: "eliminados para setores residuais daquele sistema, o negro ficou à margem do processo, retirando proveitos personalizados, secundários e ocasionais" (1978, p. 29).
Além dessa forma de eliminação, havia a dificuldade imposta pela preferência do trabalho livre, branco, que bania o recém-egresso da escravidão das atividades melhores, mais qualificadas, até porque o número de libertos qualificados não era significativo.
A burguesia floresceu no setor comercial, vocação da cidade. O pensamento liberal era propaganda forte nos centros urbanos. Havia sinalização de progresso. Os escritos de Domingos José Jaguaribe Filho confirmavam essa tendência. Elas são claras pela preferência por um trabalho livre, fundado na iniciativa individual, na preferência pelo emprego de uma mão-de-obra assalariada. Era também a construção da nação civilizada, contraposta ao atraso do País. Os negros escravos eram exemplos de irresponsabilidade, porque, além de sofrerem uma forma de eliminação do trabalho, eram vistos como pessoas rebeldes. Acrescentamos ainda o fato de serem vistos como ociosos, vagabundos ou inseridos na criminalidade. Sobre isso, também se aplica a afirmação de Florestan Fernandes:
Vedado o caminho da classificação econômica e social pela proletarização, restava-lhes aceitar a incorporação gradual à escória, (...) procurando no ócio dissimulado, na vagabundagem sistemática ou na criminalidade fortuita meios para salvar as aparências e a dignidade de homem livre (1978, p. 29).
A visão escravista do branco seguidor da corrente liberalizante era de rancor às ocorrências que envolvessem os antigos agentes de trabalho. Mas a sociedade que lembrava castas representava ainda um elemento forte (ele define como sociedade aquela europeizada que se desagregava gradualmente com o declínio da escravidão), embora decadente, no cenário do Rio de Janeiro. Embarcada nessa transição que envolvia práticas pré-capitalistas e capitalistas de produção, a cidade sofria fortes alterações que marcavam cenas sociais cotidianamente tornando-a profundamente contraditória e complexa.
Os libertos acabavam constatando que a peregrinação feita do campo para a cidade não provocava a redenção da raça negra. Pelo contrário: relegava grande quantidade deles ao abandono, à busca da sobrevivência com suas próprias forças e recursos.
Florestan Fernandes aponta para o problema da irracionalidade do comportamento do negro e do mulato em particular. Diz que ele procedia de uma situação humana altamente complexa e, principalmente, que as circunstâncias exteriores converteram essa mesma irracionalidade em fator dinâmico de ajustamento. O autor assevera que, no fundo, toda essa questão era produto da relação com o trabalho livre. Ressaltamos que, para o contratante dos serviços puramente mercantis, o que realmente valia era o rendimento no trabalho, a observância das cláusulas dos contratos e o nível de remuneração desse fator da produção. E esses pontos eram atributos do trabalhador livre que vendia sua força de trabalho. Além do mais, o que adquiria caráter fundamental no centro das avaliações era a condição moral da pessoa e sua liberdade de decidir como, quando e onde trabalhar. Em verdade, o que valia e passaria a ser respeitado era o livre arbítrio.
Por outro lado, o estrangeiro não via assim. Ele enxergava o trabalho na terra como um veículo de construção de sua independência, ou uma nova vida na nova pátria. Buscava um futuro em que se libertasse e construísse seu próprio negócio. Com o negro e o mulato não ocorria tal coisa. Eles viam o trabalho como um fim em si mesmo. Viam-no como uma comprovação de sua dignidade e liberdade enquanto pessoa. Introduziam-se componentes éticos, morais no contrato de trabalho que eram desiguais, que desmontavam as relações capitalistas entre patrão e assalariado, que envolviam direitos e deveres que privilegiassem princípios do capitalismo, para criar espaços de relações patrão-assalariado com envolvimento de obrigações e deveres extraeconômicos. Avaliavam essas relações com a herança dos critérios pré-capitalistas.
Para o imigrante (estrangeiro), tornara-se praxe a repulsa às condições de vida que lhe fossem indecentes. Tais exigências chocavam-se com as deformações que delineavam o perfil dos patrões provocado pelo regime servil. Esse choque acabava expurgando parte dos estrangeiros que habitavam a cidade, forçando-os a cair na desocupação.
Na pretensão de chegar ao padrão de vida ostentado pelos que estavam empregados sob o regime dessa nova relação, os libertos chegavam ao repúdio de certas tarefas, e, às vezes, ao modo de uso de seu tempo e energias. Isso resultava em dificuldades no ajustamento do ex-escravo à nova ordem social associada ao trabalho livre. Aumentavam, assim as fileiras de pessoas desocupadas na cidade. Acrescentemos aí a existência de um grande número de pessoas sem profissão definida no Rio de Janeiro. Esse fator agravava mais ainda a vida daqueles que integravam esse contingente. Por último, o peso da herança cultural da escravidão era também um elemento adverso a esse processo de ajustamento.
Pelo lado do escravo, ocorria o fato de não se enquadrar no novo regime, pois estava marcado pela escravidão, agora vista como trabalho improdutivo, lento, e que não se enquadrava nas novas formas de relação de produção capitalistas.
O desabamento paulatino da sociedade senhorial e a elaboração lenta de uma ordem social competitiva liga-se de forma complexa ao avanço da empresa de café. Embora no Rio de Janeiro esse processo tenha sido lento, encontrando maior resistência inexoravelmente na grande fazenda deste produto, gerou um quadro de transformações socioeconômicas no perfil da cidade. Provocou o crescimento demográfico e econômico, tanto no campo quanto na cidade. Houve significativa reintegração da ordem social, não tão rápida quanto em São Paulo, mas significativa. Foi diferente da do açúcar. O café não era uma empresa que se fechava sobre si mesma, e surgiu num momento em que as relações de importação e exportação estavam mais avançadas. Gerou revitalização dos setores urbanos.
Com esse produto, as cidades - principalmente as portuárias no centro-sul, como o Rio de Janeiro - passaram a ser as fronteiras econômicas das fazendas. Elas se tornaram conversoras dos interesses mais declarados dessa prática. Suas bases econômicas não vinham da acanhada e vacilante burguesia (Mombeig, 1953, p. 27-31); originavam-se dos círculos dos homens de negócios da época, detentores da vida econômica e política, basicamente fazendeiros dos agentes da comercialização do processo exportador. Eram estes os possuidores das estruturas ocupacionais, econômicas e de poder da cidade. Eram os formadores de uma ordem social que, principalmente em São Paulo, não previa o trabalho do liberto. Embora o Rio de Janeiro estivesse fortemente ligado ao braço escravo, essas transformações se processavam em menor ritmo.
Apesar do lento processo abolicionista, os elementos oriundos da escravidão, ao chegar à cidade, chocavam-se com as condições adversas que encontravam. O ambiente era hostil às suas pretensões. Chocavam-se com a falta de tolerância, de simpatia e de solidariedade da cidade.
No meio urbano, o liberto passaria a ser não o fermento explosivo que poderia abalar a sociedade senhorial, agora com o perfil cafeicultor, mas o elemento de maior preocupação, pela condição marginal em que se encontrava. Vivendo fora da regra do conjunto da produção, o liberto sofria com o abandono, em virtude das reduzidas oportunidades de trabalho, levando-se em consideração as regras vigentes na época.
Da desocupação, passava a violar as regras e constituía-se na preocupação cotidiana da polícia na Corte. Na condição em que se encontrava, misturava-se a outras formas de excluídos, segundo o conceito de Michelle Perrot. O mais contraditório disso tudo é que sobrevivia nessa condição. A multiplicidade de comportamentos que cotidianamente praticava demonstrava não só o perfil de formações grupais sinagelásticas e possuidoras de uma ordem social com cultura própria.
A sociedade tradicional no Rio de Janeiro tinha muito da herança que marcou toda a sua formação, caracterizada pelo patriarcalismo sustentado na prática escravista. Apesar dos abalos sofridos durante o século XIX, o país mantinha muito desse legado, marcado por uma ética católica. Havia forte presença da Igreja e da religiosidade na vida social, principalmente da Corte. Permanecia toda a visão tradicional de mundo propalado pela Igreja, dentro de um conceito hierarquizado e estático de organização de classes. Enfatizava fortemente obrigações recíprocas entre as pessoas, bem mais do que direitos individuais. Esse tipo de sociedade primava pelo compromisso, pela obrigação, e dificultava a mobilidade social. Salientava no comportamento barreiras à liberdade pessoal e sacramentava a desigualdade social com severidade.
A visão providencial de que os senhores nasceram para serem senhores e os escravos para serem escravos estava fortalecida inclusive dentro da cidade do Rio de Janeiro. E era defendida por significativa camada da sociedade aristocrática da Corte. Na província, um número expressivo dessa camada se mantinha presa à escravidão, apresentando-se fortemente contrária ao abolicionismo.
Uma sociedade que nasceu à sombra da cruz do catolicismo ainda guardava muito de suas raízes culturais. A crença na fé justificando o trabalho era uma máxima que não encontrava muito eco na sociedade brasileira do século XIX. Entretanto, o quadro demonstrava que algumas mudanças estavam em curso. No centro urbano, o número de estrangeiros que controlavam o comércio menor, varejista, começava a despontar, trazendo nova imagem de relações sociais para a urbe carioca. Demonstrava que a tradicional imagem de que uma minoria controlava os meios de produção do capital e o poder político (consequentemente, o status institucionalizado) poderia ruir, na medida em que se multiplicavam as atividades das empresas de pequeno porte na vida da cidade.
A burguesia, considerada a camada social empreendedora em termos de ações e aristocrática nas convicções, dividida entre a etiqueta e o lucro, identificava-se mais com a ordem providencial católica do que com a ética protestante (Dias, 1972, p. 160). Diante da miscigenação, comportava-se de forma bastante tolerante. Aos seus olhos, o controle social da mobilidade passava pelo sistema de clientelismo e de patronagem. Não via com temor as populações negras, libertas e livres.
Nessa sociedade, os negros estavam segregados dentro de um sistema social de difícil mobilidade, pois as oportunidades econômicas acabavam sendo pequenas. Estavam excluídos sociais e economicamente de espaços como participação política. Sua ascensão social acontecia quando autorizada pela elite senhorial. Esse setor social, na cidade, vivia uma dupla vida. Primeiro, como escravo cumpridor de suas obrigações, como propriedade e, principalmente, coisa. Segundo, como elemento componente de uma população urbana envolvido no caldo de cultura construído na rua (escravo ao ganho), compunha maltas de capoeiras, grupos eventuais da marginalidade da cidade. Tinha oportunidade de contato com grupos sociais diversos, principalmente aqueles compostos de desocupados da cidade em sua parte vagabunda. Eles somente ofereciam perigo quando se envolviam com esses componentes da marginalidade, pois estavam presos a um sistema econômico que dificultava a liberdade.
Ao liberto, negro ou mulato, apresentavam-se dificuldades no campo econômico, além das barreiras existentes para posicionarem-se socialmente. Viviam geralmente na desocupação ou ocupação eventual, sendo objeto da preocupação dos órgãos de repressão.
O livre nacional e o estrangeiro, quando não ocupados no trabalho regular e aí vivendo na desocupação, engordavam essa parte maldita (marginal) da cidade, colaborando para construir uma forma cultural específica e especial que trataremos mais adiante.
Entretanto, a nova filosofia e a crítica sociais, responsáveis pela semente do abolicionismo e o avanço do uso do trabalho livre, principalmente especializado, preferencialmente imigrante, contribuíram para abalar as estruturas dessa sociedade. Contudo, as mudanças não se apresentaram rapidamente. No Rio de Janeiro, a vagareza da implantação desses avanços e a substituição do trabalho escravo foram marcantes. Conviveram por muito tempo, hibridamente, escravismo e capitalismo. O clientelismo e a patronagem vigoraram com relativa força até a década de 1870, quando o escravismo tomou o segundo golpe do abolicionismo, com o avanço das leis de libertação do braço cativo.
No comércio eram atenuadas as diferenças entre patrões e empregados, por ser uma atividade em que, majoritariamente, ainda não estavam separadas com nitidez as pessoas do capital e do trabalho, embora, correspondesse também a uma relação promotora de acumulação primitiva de capital. Contudo, a relação do patronato era também clara.
O trabalho na cidade era extenuante, a exploração da mão-de-obra relegava a população ocupada a uma vida de sofrimentos. A população ocupada vivia também uma relação de produção que a levava ao esgotamento físico. Como foi publicado em Echos popular:
é demasiado o sofrimento desta classe, (...) rodeada de diversas moléstias, (...) trabalhar ao pé de grandes maquinismos a vapor, em espaço acanhadíssimo, sem nenhuma entrada para o ar e mesmo sem luz do dia (1890, p. 11).
Explorava-se tanto que nas alfaiatarias não se pagava salário durante a fase de aprendizagem; havia casos em que os aprendizes pagavam aos mestres para conhecerem o ofício. Trabalhavam em péssimas condições: aninhados no chão, usavam seus joelhos como mesa; somente comiam quando os mestres anunciavam que podiam. Era comum muitos acabarem tuberculosos. As costureiras, cerzideiras e bordadeiras tinham jornada de trabalho que começava às oito horas e terminava às dezenove, quando a proprietária do ateliê não prorrogava para as vinte e duas, sempre pelo mesmo salário.
Havia desarticulação da pequena agricultura para o mercado interno, provocada pela expansão da agricultura de exportação. Sebastião Ferreira Soares apontou para esse fato num trabalho pioneiro sobre a produção agrícola e a carestia dos gêneros alimentícios no Império. Isso tornava a vida mais difícil, principalmente para aqueles que viviam na desocupação:
Os braços que até certa época se empregavam promiscuamente na cultura de gênero exportáveis e nos de mais comum alimentação têm sido nos últimos tempos ocupados exclusivamente na grande lavoura, desprezando a pequena agricultura por menos lucrativa, como seja a do feijão, milho, mandioca etc. (Rodrigues, s.d., p. 103-104).
Na capital do Império havia controle direto da produção pelo capital comercial, que fazia do grande fazendeiro o intermediário desse processo. Sendo ele o setor dominante, promotor do clientelismo e da patronagem, delineava-se um quadro social da cidade a seu feitio e interesse. O mais urbano acabava sendo uma extensão do campo. Um setor da grande estrutura agrária, realizador da produção em níveis comerciais, viabilizava seu escoamento. Atendia a seus interesses: "o sistema era uma caricatura do capitalismo manufatureiro, ao qual faltava o essencial - uma classe operária. Pois esta se reproduzia e, ao reproduzir, reproduzia também o sistema" (Soares, 1977, p. 19).
O modelo colonial traduzido no perfil urbano de uma cidade atrelada ao campo começaria a ruir. A burguesia existia como exterioridade da comercialização em relação à produção. Ela se mostraria estranha às cidades. Por sua vez, a cidade era a representação da hegemonia do campo produtor. As mudanças ocorridas no processo de urbanização respondem por isso. Tal fenômeno de transformação iniciara-se com a vinda da Corte para o Brasil, quando se revogou a proibição de manufaturas no país; foi acrescido dos acordos com a Inglaterra e da instalação da máquina burocrática do Estado português. Foi o momento da gênese das condições para apropriação do espaço urbano na corte pelo capital comercial.
Dessa época em diante transformaram-se as práticas de produção, num jogo de resistência e avanço de forças transformadoras que, embora gradual, abriu espaço para a construção do problema que ora apresentamos. O Brasil mudou radicalmente de lá para cá. Tivemos uma série de acontecimentos que significaram grande guinada em quase tudo, mas coisas como o espírito festeiro, a vagabundagem (principalmente a do Rio de Janeiro) ficaram como matiz forte de nosso coletivo. Enquanto o capitalismo avançava rapidamente, a cidade e sua população iam se adaptando a tudo que era novo ou inovador. Criavam e adquiriam sempre maiores habilidades no ludíbrio que caracterizou a vida livre na pós-escravidão. Favelas, favelizados, delinquentes, pequenos roubos e furtos marcaram sua trajetória de inexorável distinção diante do inevitável, o futuro: estavam realmente condenados ao progresso. A seguir vimos as grandes mudanças e seus reflexos no corpo social e sociocultural brasileiro urbano do século do não.
A cibernética e a robótica: desafios fronteiriços entre diferentes mundos da educação na vida urbana fluminense na era da Terceira Revolução Industrial
Para facilitar o estudo da economia informal existente na cidade do Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX e nos séculos XX e XXI, é necessário reportar-nos ao espaço físico e temporal daquelas épocas. Na segunda metade do século XIX, começou a reluzir a riqueza para alguns, advinda principalmente dos cafezais do planalto, concentrando o movimento comercial dessa atividade que se estendia pelas terras da Província. Estradas de ferro foram feitas para facilitar o escoamento da produção do interior da região, desenhando na cidade um perfil de liderança na canalização de toda (ou quase toda) a tarefa de escoar o café exportável.
A cidade não tinha concorrência significativa até 1890. Era também o centro redistribuidor de escravos, abastecendo grandes fazendas; ao mesmo tempo, era importador de manufaturados, além de ponto de convergência do comércio de cabotagem que fluía no litoral de nosso país.
A cidade, por ter sofrido crescimento forte e desordenado até então, acabou se multiplicando e se tornando uma cidade multifacetada. Por um lado, surgiram bairros predominantemente residenciais ao norte e ao sul. De outro lado, apareceu uma área central fortemente movimentada, com poucas diferenças internas e extremamente populosas, por causa da concentração comercial. Nessa área coabitavam armazéns, oficinas, fábricas, prédios públicos, sobrados, cortiços e outras modalidades de habitações coletivas. Era uma área bastante incomum na sua composição.
A concentração populacional localizava-se nas chamadas freguesias de dentro, próximas do porto, que representavam os centros de atividades econômicas da região. A partir de 1850 a população se interiorizou buscando povoar outras freguesias mais afastadas. Era o fenômeno da polarização, criando outras áreas de povoamento. Tais áreas ficaram conhecidas na historiografia nacional como nódulos do comércio, do trabalho e da moradia, caracterizadas por cortiços onde famílias de homens pobres e livres dividiam os espaços na maioria das vezes sublocados aos escravos libertos.
Nessa população encontramos muitos dos personagens que compõem a sociedade paralela, formadores de um mundo do diferente, que hoje nos habita, apesar de serem indesejáveis por sua conduta e sua cultura.
O precário estado das condições de abastecimento, de moradia, de saúde pública, enfim, da infraestrutura urbana, tendia a entrar em colapso devido ao fluxo constante da migração interna. Nessa época houve grande crescimento populacional da cidade do Rio de Janeiro, causado pelo declínio da cafeicultura do Vale do Paraíba. Tal fato foi responsável pela atração de populações desempregadas, principalmente de origem escrava, em busca do mercado de trabalho. A cidade, com seu centro urbano, oferecia o sonho de ganhos melhores. Tudo se dava mais intensamente durante a década de 1870.
Segundo o cronista Luís Edmundo, em meados do século XIX a Praça Tiradentes (então conhecida como Praça da Aclamação) era caracterizada por casarios desalinhados, que apresentavam uma imagem ruim da cidade; vagavam por suas ruas grande número de desajeitados tílburis e muitos bêbados.
Os pontos de armazenagem do Rio de Janeiro formavam a configuração central da vida latente da cidade, em termos de reservas econômicas. O peixe e outros gêneros eram comercializados na praça do mercado, junto à Baía de Guanabara, desde 1834. Toda mercadoria que vinha do interior do país aportava em Itaboraí e Niterói, que por muito tempo foram consideradas de pouco brilho comercial, por causa da forte presença da primeira atividade comercial da citada região, feita em lombo de gado muar; posteriormente iniciou-se o uso dos trilhos das locomotivas, conhecidas como trens, sendo então embarcados nas do tipo faluas chatas, que transportavam para os principais portos da orla.
Toda essa produção, principalmente de café, oriunda das fazendas basicamente localizadas em Petrópolis e Friburgo, caminhava em direção às terras mineiras, goianas e adjacências. Tais caminhos traziam, além do café, uma gama de gêneros produzidos no interior e serviam como criadores de centros redistribuidores de produtos vindos da capital, geralmente importados, como Belo Horizonte. Eram caminhos importantes que ligavam o sertão fluminense, escoando constantemente produção e grande contingente humano, que afluía para a capital do império.
Durante a segunda metade do século XIX, o Rio de Janeiro começou a fazer grandes transformações em sua orla marítima. A Marinha de Guerra e a Mercante se movimentaram nesse sentido, garantindo a construção de diques, notadamente o imperial, para servir às embarcações de grande e médio porte. Tudo isso se devia ao quadro de grandes movimentações comerciais que a cidade vivia com o café e ao atendimento de sua vocação fundamentalmente comercial. O dique imperial, feito pelo engenheiro Law, tinha 225 pés de comprimento sobre 25 de profundidade e 50 na entrada; foi-lhe dado o nome de Dique Santa Cruz. Gerou a multiplicação da remessa de produtos para a cidade, alimentando as atividades comerciais, assim como seu volume negociável. Com isso, a cidade do Rio de Janeiro ganhou em volume e qualidade comercial.
O Marquês de Monte Alegre, ministro do Império, estabeleceu por decreto, em 1849, com autorização do governo, o processo de desapropriação dos prédios e terrenos que fossem necessários para a construção das obras e mais serviços para a Estrada de Ferro Dom Pedro II e outras estradas. Esse decreto também baixava regras para as devidas indenizações dos proprietários desapropriados. Sua regulamentação definitiva foi feita por outro decreto no mesmo ano. Aí começou com mais força a penetração e estabelecimento dos trilhos que substituíam os velhos caminhos, que eram verdadeiras escoaduras da produção; muitas estradas de ferro foram feitas pela iniciativa privada.
As obras da estrada de ferro começaram em 17 de março de 1856, quando foi formado um fundo de reserva derivado da renda conseguida pelos investidores iniciais, acionistas particulares que depositaram confiança no empreendimento. Todavia, o gasto não poderia causar prejuízos a eles, que tinham direito a 7% de renda dos lucros. O referido contrato impossibilitou qualquer novo acordo de empresas que pagasse menos de 7% aos associados como regulamento de todo o negócio.
Como podemos verificar, a cidade mudava sua movimentação econômica e comercial. Contudo, talvez pelo fato de ser capital do Império, tinha suas atenções voltadas para os problemas nacionais muito mais do que para os problemas da cidade. Crescia desordenadamente. Vivia uma situação de descompasso rítmico: a velocidade em que cresciam o volume econômico, as atividades comerciais e o volume comerciável não era acompanhada de condições ideais para seu pleno desenvolvimento.
No tocante à higiene, parecia que a limpeza não fazia parte do conjunto de preocupações de seus integrantes, a maioria ex-escravos sem as mínimas noções dela. A ausência de valores mínimos de salubridade deixava a população desprotegida, fragilizada quanto ao ataque de doenças endêmicas, epidêmicas e até pandêmicas. A saúde do citadino no Rio de Janeiro corria constantemente riscos graves. Quando surgiam as epidemias, o comércio ficava bastante comprometido. Os indicadores de insalubridade apontavam doenças como tifo, febre amarela e, principalmente, cólera morbos, fazendo com que se redobrassem as preocupações com um projeto de saneamento. Tal quadro levou a concluir que a questão era de educação e de busca de mudança dos costumes. Todavia, ele se apresentava marcado por uma cultura hierárquico-escravista, marca forte do cotidiano cultural da cidade.
Em relatórios apresentados na época, a Comissão do Saneamento do Rio de Janeiro falava do quadro geral da cidade afirmando que para se chegar ao fim do que chamou feiura e imundice era necessário reeducar a população.
Primeiramente o governo teria que adotar uma conduta de modernização. Associou-se à mudança de uma cidade suja e atrasada para uma cidade limpa e moderna. Mas o Rio de Janeiro viveu na sujeira até 1896, quando se pensou seriamente em um plano de modernização e criação de hábitos novos considerados modernos em limpeza. Nesse perfil se multiplicou e se reproduziu o submundo dos excluídos socioculturais.
Havia um quadro que reunia condições bem propícias para a alimentação e fortalecimento da força marginal, que crescia com rapidez. A isso se associava a pequena oferta de empregos em relação à numerosa gama de mão-de-obra, o que produzia um grande número de desocupados e, em sua maioria, trabalhadores informais (como ainda hoje vemos pela cidade, fruto de uma pós-escravidão ainda mal resolvida entre nós). Os problemas com os turbulentos (como eram tratados na época) passaram a se avolumar; estavam ligados aos bebuns e arruaceiros que povoavam as ruas e ruelas, os botequins da cidade. Acabaram transformando-se em verdadeiros corpos socioculturais autônomos que até hoje atormentam a cidade, muitos sob o garrote do poder da droga e das milícias (ou seu composto), que habitam e comandam as favelas do Rio de Janeiro atual. Uma verdadeira sociedade paralela, um mundo novo surgia ao largo da sociedade oficial; ganhou tamanho e complexidade extrema hoje em dia.
O avanço tecnológico na cidade e os recursos para o enfrentamento de sua diversidade populacional e cultural
Considerando as várias atividades econômicas, as transformações da cidade foram realmente grandiosas, principalmente as do açúcar e café. As estradas de ferro que foram abertas para servir à região reforçavam sua liderança, canalizando com mais rapidez a produção de café, sem concorrência substancial até 1890. O caráter de centro redistribuidor e ao mesmo tempo abastecedor das fazendas, importador de produtos manufaturados e ponto de convergência do comércio de cabotagem fazia da cidade uma verdadeira área de confluência dos interesses econômicos do país.
As atividades cafeeiras surgiram em condições bem distintas daquelas dos séculos anteriores. Não pairam dívidas de que alguns elementos essenciais conservavam-se inalterados, dentre eles as relações de produção escravistas dominantes no campo; a propriedade da terra latifundista e monocultora, monopolizada por um pequeno número de grandes proprietários que se responsabilizavam pela acumulação de capital. No total das demais atividades de produção, o trabalho escravo acabava sendo de menor importância e eficiência para a valorização do produto. O capital imobilizado no momento da compra do escravo nem sempre se reproduzia de acordo com as expectativas nas atividades econômicas rurais decadentes, muito menos na instabilidade da produção urbana.
A presença do trabalho remunerado possibilitou a compra de força de trabalho no mercado, liberando capitais até então investidos em mão-de-obra, promovendo maior circulação monetária. São fortes as evidências de alterações provocadas na economia a partir desse momento.
A generalização do assalariamento permitiu que o fluxo de renda permanecesse, pelo menos em parte, no mercado interno. Foi a população livre e assalariada que contribuiu significativamente para que parte do capital investido no mercado de trabalho circulasse e se fixasse nas mãos do consumo familiar. Em 1840 acentuou-se a queda das exportações do algodão e do açúcar na medida em que crescia a do café. Despontava um novo tipo de cultura econômica, que nos aspectos social e político iria trazer grandes transformações para a vida da cidade.
O açúcar do Nordeste passava a suprir o mercado do estado, cada vez mais dependente do abastecimento externo. A decadência da economia açucareira estava ligada à concorrência do açúcar de beterraba produzido na Europa. A plantação de café representava um investimento menor do que a de cana-de-açúcar, devido ao alto custo dos animais de tração e de sua montagem industrial - o engenho e o alambique. A tendência dos preços do café no mercado internacional influiu significativamente para o deslocamento da economia na época. A produtividade da mão-de-obra empregada no café era bem maior do que aquela alcançada na cultura do açúcar e do algodão.
A crise bancária de 1857-1858 ocorreu num momento de instabilidade dos preços do café, do açúcar e do algodão (que foi de 1853 até 1860). Essa crise foi superada pela adoção de uma política de caráter deflacionário, alimentado e sustentado por empréstimos externos. Ela foi muito sentida pela sociedade, por aumentar o número de desempregados; e a área do submundo, a futura sociedade paralela da cidade, aumenta com o número de desocupados.
O comércio do Rio de Janeiro sofreu com a decadência da cafeicultura, e a economia urbana se modificou, ampliando os setores secundários e terciários, fruto da lixiviação e de outros problemas. A atividade comercial de cabotagem e longo curso era muito desfavorável para o Rio de Janeiro. Outras províncias conservavam-se em posição de destaque nesse tipo de atividade.
Assim, a economia fluminense vivia em grande dependência da plantação cafeeira especializada; os gêneros alimentícios chegavam sempre de outras províncias do Império. Durante o ano de 1871, o Rio de Janeiro tinha exportado 11.790.005 arrobas de café; o Império como um todo atingia 15.630.080 arrobas (Lobo, 1978, p. 162).
A província como um todo remetia para o exterior o quádruplo do que remetia São Paulo, Bahia, Ceará e Espírito Santo reunidos. Era inconteste a liderança econômica do Rio de Janeiro no país. Somente a partir de 1888 se manifestou a crise do comércio dela e do porto, em consequência do declínio da produção do café no Vale do Paraíba, substituída pela variação extensiva nas terras esgotadas por esse cultivo.
Nas atividades agrícolas, o Rio possuía um setor agrário importante no século XIX. Não havia nesse período ruptura entre o meio urbano e o rural. O desenvolvimento da agricultura seguia a mesma linha na província, assim como na cidade. Havia estagnação do cultivo de cana-de-açúcar; em contrapartida, expansão da cafeicultura.
Com base em um censo da Diretoria de Higiene e Assistência Pública do Rio de Janeiro, o professor Artur Ferreira Reis registrou 49 hortas e capinzais nas circunscrições urbanas e 246 hortas e capinzais e 122 lavouras nas áreas suburbanas (Reis, s.d., p. 41). Através de suas informações, podemos observar o gradual declínio da plantação em consequência do crescimento e da consolidação da manufatura, da expansão do comércio e do forte desenvolvimento de todo o sistema de transporte.
Em certas paróquias, havia ampla atividade de fruticultura nas chácaras e nas grandes propriedades, que abastecia a cidade de gêneros de boa qualidade. Havia também forte horticultura para consumo doméstico. Contudo, parece que no setor primário também havia grande desemprego. O número de habitantes era muito grande na cidade, porque ela polarizava, atraía.
O declínio da cafeicultura e a substituição dessa atividade pela pecuária extensiva, que ocupava pouca mão-de-obra, causaram migração interna, alimentando a que já havia (do campo para a cidade), trazendo lavradores que não tinham condições de ser absorvidos pelas atividades da urbe. Quando não eram absorvidos pelas atividades comerciais ou até mesmo pelo serviço doméstico, ficavam na desocupação da cidade e alimentavam os corpos socioculturais autônomos, como se consubstanciaram no futuro, compostos de uma multirracialidade e uma multiculturalidade surpreendentes de pessoas que passariam a viver no submundo, muitos se tornando profissionais do crime e outros somente habitando tal população temporariamente. Em proporções diferentes, a província toda compartilhava as consequências da crise do café.
A maior parte da produção vinha para o mercado por via marítima ou por carroças, mesmo depois da construção das estradas de ferro, apesar de estas serem responsáveis pela agilização e rapidez maior no translado da produção.
A criação de gado, que se centrava em Irajá, Campo Grande, Jacarepaguá e Santa Cruz, também era significativa. Durante a década de 1880, em Santa Cruz havia 17 pastagens localizadas entre o mar e os Rios Itaguaí e Guandu, formando um quadrado de 12km de lado. Essa atividade ganhou grande desenvolvimento, em que Campo Grande despontou como o maior criador. A produção era significativa, mas ainda havia dependência do produto: trazia-se carne de Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul. Começando no ano de 1873, o gado do sul adquiriu importância crescente no mercado.
Em São Cristóvão ficava o primeiro matadouro municipal; sua construção começou no ano de 1845 e foi terminado em 1852. Em 1873, o de Santa Cruz começou a ser erguido; a obra terminou em 1881 (Reis, s.d.). Por causa de um permanente conflito entre os criadores invernistas e os comerciantes intermediários, a Câmara, mediante concorrência, conseguiu organizar trinta açougues municipais onde os proprietários de gado venderiam a carne cortada no matadouro, com preço 20% menor que os açougues particulares (Silva, 1965, p. 101). Apesar do avanço da medida, colocando o produto do produtor quase diretamente ao consumidor, barateando o preço do produto e aumentando a oferta, o fornecimento continuou precário.
No setor secundário, a atividade tinha caráter marginal, em função do quadro de predomínio da atividade econômica de plantação. Sabemos que a Guerra do Paraguai propiciou um surto industrial decorrente da expansão de demanda de armas, pólvora, navios, tecidos, roupas, calçados para a tropa e da nova política de facilidade de crédito, de proteção alfandegária e de liberação dos escravos que se engajassem nas forças combatentes brasileiras (Soares, 1984, p. 78). Porém, após 1870 o abandono das medidas fiscais e de crédito, somada à Crise de 1875, seria responsável por uma retração da economia, agravada ainda pela evolução dos preços do café no mercado internacional.
Entretanto, muito antes, o processo de desagregação da economia escravista de plantação, oposto às práticas capitalistas plenas, acentuava-se e adquiria caráter irreversível. Contudo, essas práticas caminhavam pelas vias do hibridismo e da mistura, garantindo um quadro de análise complexa. Os anos de 1888 e 1889 assistiram a uma transformação radical do sistema de crédito, que deixava de servir quase exclusivamente aos objetivos da produção e comercialização cafeeira. Houve liberação de escravos, desorganizou-se mais ainda o sistema de mão-de-obra, o perfil político modificou-se, acompanhado da redistribuição do poder.
Em 1850, a cidade do Rio de Janeiro possuía 46 fábricas de pelúcia, de seda e de feltro. Mesmo com a grande concorrência europeia, essa indústria resistiu bravamente. Havia fábricas de calçados e de selins; estas últimas tiveram declínio nas década de 1860/70, por causa da expansão dos novos meios de transportes. Toda as atividades eram de manufatura. Nesse setor, a industrialização ainda não tinha experimentado a passagem da manufatura para a maquinofatura, que representaria fortes transformações no campo quantitativo da produção. Havia, também, bem desenvolvidas, as atividades de fundição, serralherias e estabelecimentos de trabalhos em metal, além das fábricas de papel na Tijuca e de papéis pintados, na Rua do Conde, hoje Rio Branco (Carone, 1978, p. 47).
Uma indústria tradicional no Rio de Janeiro era a de materiais de construção, compreendendo as alegrias que se usavam muito nas casas da época - era um tipo de proteção/adorno, hoje não são mais usadas - e caieiras, que fabricavam cal de marisco com cascalho extraído da Baia de Guanabara. Em 1852, a cidade apresentava 46 ramos, compreendendo 991 oficiais ou artesãos. As categorias eram: abridores, caldeireiros, costureiros, douradores, empalhadores, encadernadores, entalhadores, escultores, gaioleiros, lampistas, litografistas, maquinistas, modista, pasteleiros, pintores, seleiros e tanqueiros vestimenteiros. Durante esse período, os ramos de atividade da cidade eram divididos entre artigos de madeira, de metais, de roupas e de couro.
O século do não e sua saga de violência continuada
No fim dos anos 1970, ocorreu uma crise econômica no capitalismo que fez as empresas e os governos estabelecerem várias medidas políticas, levando a uma forma de capitalismo diferente, com o advento da globalização das principais atividades econômicas. A flexibilização organizacional e o maior poder para o patronato em novas relações com os trabalhadores passaram a ser o mote. Deu-se também uma grande revolução na tecnologia, com o desenvolvimento da informática, o que gerou o internacionalismo, a maior capacidade tecnológica das sociedades e dos indivíduos. Era a tecnologia da informação como elemento principal da geração de riqueza, exercida com o poder e a criação de um novo código cultural. Era o advento do capitalismo flexível rejuvenescido. Vivíamos o apogeu dos movimentos culturais, como o liberalismo europeu, o que aqui se poderia chamar libertarismo, direitos humanos, feminismo e ambientalismo.
Depreendendo então do novo mundo marcado pela inexorável trajetória da mudança, podemos afirmar que seus reflexos foram significativos para todos. Na gênese de um novo mundo, podemos pontuar muitas mudanças, como guerras, crises econômicas, projetos políticos infindáveis etc. E uma atitude mais consciente sobre a finitude dos recursos naturais.
Exemplo de economia na agricultura se configurava em evitar o desperdício, o que passou a ser regra geral. A agricultura teve recomendações fundamentais, como regar suas plantações somente quando necessário; foram ensinadas técnicas que economizassem água, a visita de um consultor passou a ser necessária e periódica, nas grandes fazendas aplicou-se a técnica de Israel, que emprega emissários calibrados e ligados a tubos de plásticos enterrados que forneciam água diretamente às raízes das plantas, irrigação superficial, gota a gota; criação de peixes comestíveis em gigantescas aqua-bubles (água bolhas, de plástico). Na paisagem, a beleza foi priorizada, mas ineficiente, pois a utilização de plantas que não pertenciam ao tipo de solo ou a região fazia aumentar o consumo de água. Houve também mudanças significativas, como o paisagismo eficiente, que oferecia refrigeração natural e poupava insumos como mão-de-obra e fertilizantes. A maneira mais simples de eliminar a necessidade de aguar a paisagem foi replantar com a flora que a evolução adaptou para viver no lugar, substituindo os gramados tradicionais por diversos tipos de relva nativa.
São vários os exemplos de economia de água nas residências: redução do consumo das descargas em 26%; utilização de água potável; chuveiros mais econômicos acompanhados de mudanças nos hábitos, pois antes as pessoas tomavam banho com o chuveiro aberto, sem fechar a torneira ao ensaboar-se; a louça deixou de lavada com a torneira aberta; as pias passaram a ter torneiras que misturam água com ar, a fim de fazer uma mistura espumosa. Na indústria há exemplos de economia: a Coca-Cola reduziu em 79% a necessidade de água para o enxágue de latas, usando ar para limpar seu interior. Um centro de idosos construiu 50 novos apartamentos com privadas adaptadas, economizando 58% da água.
Aliado a isso, desenvolveu-se a recuperação de água usada e de água da chuva; a água suja dos chuveiros, pias, banheiros, poderiam ser usadas na irrigação subterrânea; vasos sanitários passaram a usar água salobra em suas descargas. Canalizaram-na, depois de usada e era recuperada com tratamento terciário, para devolvê-la diretamente aos reservatórios. Na recuperação da água das estações locais de tratamento biológico surgia um sistema inovador de tratamento de esgoto, o living machines, eliminando a necessidade de cloro, polímeros, sais de alumínio e outros produtos químicos, custando menos que a tradicional. Produziram-se fertilizantes valiosos e benefícios ao solo sem o perigo da intoxicação química. A água passava a ser tratada à medida que ia passando por tanques abertos, situados em estufas solares passivas. Os tanques eram povoados por uma série complexa de organismos. Estavam previstas nas soluções: campanhas multimídia, ações de treinamento de professores e formulação de novos currículos escolares, já que educação era fundamental; além disso, seriam oferecidos descontos no pagamento da tarifa a quem gastasse menos.
Os anos 1970 foram responsáveis por um disparar de preocupações com a ecologia. No Brasil, o panorama foi bastante insinuante, sempre como reflexo de tudo que havia no mundo, mas sabemos que não passava da mais perfeita mimese. Não podemos esquecer que tudo se deu surpreendentemente devido à estiagem do Lago de Furnas, que esteve doze metros abaixo de seu nível normal. A falta de chuva esvaziou-o e também a marina. As chuvas foram escassas e o índice pluviométrico foi inferior à média normal, o que fez secar os reservatórios paulistas. Angra II acabou por entrar em operação em julho de 2000, ajudando a evitar que o sistema energético entrasse em pane.
Teria havido falta de planejamento nos últimos vinte anos, e o investimento em energia não acompanhou o crescimento do PIB. A ideologia econômica liberal, revivificada pelo professor Milton Friedman, que representava a vanguarda do pensamento liberal na época, dizia que o que movia a sociedade era a cobiça, o que era uma velha novidade, pois destacava o especulador, novo personagem do capitalismo que se reinventava. O sistema estaria se baseando na novidadeira hipótese de um mercado eficiente. Era a sombra da Revolução de Derivativos, que trazia uma nova era do papel-moeda, uma revolucionária tecnologia da informação, movimentando-se pela infomotricidade e pela infotecnologia, presentes e influentes nos dias de hoje.
Após o colapso de Bretton Woods, o economista Friedman apresentou ao mundo essas novidades e outras, como a criação do Mercado Futuro, que revolucionou a economia da época. A abertura da Bolsa de Valores em Chicago gerou fortes consequências, como uma enorme quantidade de instrumentos financeiros, dando forma a Revolução Financeira de 1980. Quanto às empresas quebradas, podemos afirmar que tudo se dava por causa da má gestão dos negócios, interna e externamente, com enormes prejuízos.
Essa revolução se deu no governo Ronald Reagan, nos anos 1980. Friedman influenciava tanto os EUA quanto a Inglaterra, com Margareth Thatcher, que se tornou primeira-ministra britânica em 1979. As práticas filosófico-econômicas de Friedman, que se baseava na não-intervenção do Estado nos assuntos econômicos, eram a velha música do também já velho liberalismo. Como medida, Reagan revogou uma ação antitruste de 10 anos contra a IBM e incentivou o enriquecimento com redução de impostos. Em 1981, ocorreu declínio da avaliação do governo, com baixos salários e renda concentrada em demasia. Já podemos ter a visualização de tudo em países como o nosso.
Logo tivemos a ascensão do trader que, na década de 1970, gerou inflação crescente, com moedas flutuantes e baixo crescimento econômico. Ocorreu a invasão das tropas da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas no Afeganistão. O ouro começou a subir assustadoramente.
Na década de 1980, os bancos se tornam companhias de capital aberto; deu-se o avanço nas comunicações com o fenômeno da informática. Era a sombra do revolucionário momento que se aproximava. Os acionistas desconhecidos começaram a aparecer e se multiplicarem pela então internet-boom. Dava-se o crescimento dos fundos hedge. Os negociadores governavam Wall Street.
Em meio a tudo, deu-se também a ascensão de Michael Milken nos terríveis e nervosos anos 1970. Vaticinava, como negociador de obrigações, os famosos junk bonds, que representavam investimentos em telefonia, cassinos, e a distinção entre a percepção popular e a realidade. Drexel Lumbert promoveu as aquisições alavancadas (incentivadas), que representaram uma verdadeira grande ideia para o capital. Os anos setenta acabaram por gerar um quadro novo; o objetivo era ter o controle da gigantesca Gulf Oil, que, sem o apoio financeiro do Magnata do Petróleo, teve problemas. O contato com raiders, os negociadores, com a finalidade de obter juntos as alavancagens, e, ao final de um montante, igualar-se à Gulf Oil. Milken e Drexel conseguiram. Dois terços do mercado estava com Milken. Em 1980, as aquisições de alavancadas tornaram-se o motor do mercado de então.
Podemos ver que não foi à toa que chamamos o século XX de século do não. Tivemos atribulações diversas, que até hoje lutamos para superar. Todos os países sofreram seus reflexos, que foram sentidos de maneira variada. Mas não podemos deixar de fazer alusão ao fenômeno da valorização do meio ambiente, que realmente também foi abalado com novidades como a ecologia. Deu origem a um verdadeiro capitalismo humano, ou mais humano, tratado na obra Capitalismo Natural (Hawken, Lovins e Lovins, 2004), que pensa o homem por inteiro, dizendo que é possível encontrar soluções que garantam, na cidade e no campo, na diversidade de cada região, um padrão mínimo de bem-viver.
Sabemos que, com as cidades se avolumando em tamanho e quantidade no País, com o advento da República, os problemas encontrados formavam-se como novidadeiros fenômenos, em todo o mundo e com variações imensas de país para país, geralmente solucionados isoladamente. O que também não era nada aconselhável, pois suas imensas variações e tipologia sociais acabavam sendo agravantes em demasia. Configurava-se tudo como um grande complicador a mais. Muitos deles foram causados pelas soluções dadas a outros problemas. Tudo acabava sendo um verdadeiro círculo vicioso! A noção de cidadania de cada um de nós deveria levar a tal ponto que, ao buscarmos solucionar nossos problemas, buscássemos também soluções conjuntas, ou o que valesse solucioná-los em suas diversas dimensões e particularidades; mas não, gerávamos diversos outros problemas também.
O sonho acabava, a idade contemporânea foi apresentada para nós em seus sinais de derrocada, a partir da crise do liberalismo econômico, entre 1850 e 1870, com a quebra da Bolsa de Londres, o que fez a Europa se mostrar ao mundo com o insinuante modelo de Estado-gerente como se fosse um grande Titanic definitivamente submerso.
Esse modelo de Estado apenas regulador ou regulacionista de então, marcado pela livre iniciativa, pelo livre-câmbio ao sabor da dança da oferta e procura do mercado e pela teoria da velha mão invisível na economia, começava a submergir. O laissez faire, laissez passer chegava a seu triste final para a vida do civilizado homem de negócios. Em 1945, a visão holística trazia a percepção, mais verdadeira, de que a soma das partes é maior que o todo, que nós aqui demonstramos pela fórmula que acreditamos melhor expressar: S partes >TODO. Dentro de si havia e se revelava então um mundo novo que exigia também um novo olhar para ficar e marcar vidas. As aparências enganavam e enganariam, ludibriavam sempre qualquer desavisado. Não se tratava de um mero modismo, como defendem alguns, mas, verdadeiramente de uma revolução de costumes, enfrentamento da vida e de sua percepção. Daí por diante, tudo se revelou em um mundo do pensar chamado então de Holism. Vinha a afirmação de que, depois da "velha razão concreta" do "velho cartesianismo", nem tudo era quantificável, ou seja, nem tudo poderia ser não só visto ou manuseado. Descobria-se o óbvio! Havia mais coisas entre o céu e a terra do que afirmava a vã filosofia, fossem elas a existência de coisas que estavam no campo da percepção, no sensível, no não visto, no saber abstrato, no campo dos sentidos e não poderiam ser computadas, ou mesmo quantificadas por pessoas que se prendiam às velhas receitas da razão concreta.
Surpreendentemente se revelaria então tudo (ou quase tudo) do todo, ou seja, começávamos a procurar com mais desenvoltura e liberdade, as novas razões, que existiriam nos corpos socioculturais autônomos, como afirmaram Bavkar e Katz, e outros que-tais do mundo em que se vivia. Seriam talvez "razões que a própria razão desconhece". Certamente havia algo mais que não se percebia a olho nu! O velho capitalismo e seu jogo se tornariam definitivamente senis? Ou se revivificavam desafiadoramente, diante de nossos olhares estarrecidos?
Lembremos então: anteriormente a essa época, o pensador Marat, em Plan de Législation Criminelle, que por muito tempo foi o modelo para a legislação criminal da velha Revolução Francesa (burguesa), introduziu a ideia de oficinas públicas para garantir trabalho e educação para vadios e mendigos. Mas pereceria diante da descoberta que também era trabalho, embora condenável, o que eles faziam na prática do crime.
O princípio defendido por Marat previamente e de maneira extemporânea, prometendo pôr fim ao desemprego (que acreditava ser a razão fundamental de tudo), ia desmontar a justificativa moral para os furtos, mas era um ledo engano, pois eles já se constituíam em corpos socioculturais autônomos, verdadeiras sociedades paralelas, como vemos hoje no urbano fluminense. Marat achava, então, que estaria liberando o legislador para a tarefa de prever penas distintas para ricos e pobres e que poderiam, então, violar o princípio almejado de proporcionalidade. Tudo chegava ao seu estertor.
O capitalismo, nos estertores do século XX, apresentava os primeiros sinais de esgotamento de seu novo modelo. A Tailândia deixou flutuar livremente sua moeda, o Baht, provocando desvalorização e despertando grande turbulência regional. Desencadeou-se uma sucessão de quedas cambiais e de bolsas, fugas de capitais e distúrbios financeiros, da Ásia Oriental ao mundo, que assistia estarrecido (Beinstein, 1997).
Os chamados tigres asiáticos foram um dos mitos definitivos da economia de mercado, herdeiros do milagre japonês de meteórica trajetória. Era a dança macabra da crise que se avolumava. Países superficialmente descritos como subdesenvolvidos e de férrea disciplina industrial em torno de rigorosas estratégias de exportação alcançaram altos níveis de crescimento, mas não o desejado desenvolvimento. A exploração continuava como marca forte do capitalismo. Baixos salários, jornadas longas e intensas, pouco ou nenhum protesto social, regimes políticos ditatoriais ou democracias restritas justificavam as restrições como sacrifícios necessários para o desenvolvimento genuíno e competitivo, que traria bem-estar para o futuro da população.
A combinação de autoritarismo, desigualdade social, industrialização que atendia a poucos privilegiados e expansão comercial em benefício da então classe média - ou seja, dos setores de consumo - foi inexorável, pois "a fila anda", como se diz. No dito popular burguês, podia-se observar que ele se opunha a outras experiências desenvolvimentistas fracassadas, que somente enfatizavam o mercado interno, o consumo das classes baixas. Era preciso manter os níveis de ganho das camadas que viviam do comércio. A ampliação dos direitos sociais, da participação popular legitimada por valores coletivos de igualdade, a justiça social e a independência nacional, embora sendo a receita mundial, aqui foram apenas maquiagem.
Diante da desordem populista ou pseudosocializadora impregnada de obstinação nacionalista terceiro-mundista, os trabalhadores se dedicavam a trabalhar sem perder tempo com aventuras políticas ou sindicais. Mercado e pulso forte eram fórmulas milagrosas a que aderiram principalmente os militares, como no Brasil. Os homens de negócios e especialistas, estimulados por relatórios técnicos do FMI e do Banco Mundial, também apoiaram essa iniciativa.
Aos tigres juntaram-se outros países, como a já citada Tailândia, Malásia, Indonésia e Filipinas, em marcha para o Primeiro Mundo. Entretanto, vemos agora que todas se encaminhavam para o desastre. Seu poder de sedução chegou a persuadir a velha China comunista, que decidiu realizar sua abertura aos investimentos estrangeiros e ao comércio internacional.
Nos anos 1980, o asiatismo foi o discurso da moda, ponto mais alto até os primeiros cinco anos da década de 1990. Em oposição às dificuldades do Japão, era apresentada a pujança dos tigres e dragões de então. Os grandes organismos internacionais cultivaram a imagem do milagre da economia de mercado no leste asiático; e continuaram fazendo quando o desastre aparecia no horizonte próximo. O FMI, no relatório Perspectivas da Economia Mundial, de outubro 1996, apresentado um ano antes do crack, não hesitava em assinalar que a situação econômica e financeira mundial continuava animadora; referia-se a países da Ásia como mercados emergentes. Não havia sensibilidade do FMI diante das turbulências periféricas.
A crise mexicana do fim de 1994, causada pelas reformas neoliberais que abriram esse país à especulação financeira, apareceram em 1996, com sinais muito claros de reaquecimento financeiro e desaceleração do dinamismo exportador dos tigres e dragões. As taxas de crescimento de suas exportações, de 20% em 1994 e 1995, caíram para 5% em 1996; os déficits em sua balança de pagamentos internacionais cresciam em alguns casos a 8% do PIB. Na Coreia do Sul multiplicavam-se greves e escândalos financeiros; na Tailândia, a especulação imobiliária supunha prosperidade geral para surgir como a ponta do iceberg de uma crise estrutural incomparável para a época.
O relatório registra que a Indonésia administrou com prudência os lucros derivados do petróleo, mas, justamente naquela época, vivia-se à comprovação de ecologistas que afirmavam ser o ouro negro uma riqueza em decrescimento no mundo: era a escassez energética. O rápido crescimento era exemplo de supervisão governamental, pois se acreditava ser a única capaz de evitar um desastre financeiro. Em sua análise prospectiva da economia internacional, divulgado em setembro de 1997, o Banco Mundial explicava que: "embora haja dificuldades para manter o rápido desenvolvimento que os beneficiou na última década, países do Leste asiático continuarão com forte crescimento devido à liberalização dos mercados mundiais".
Mas a euforia se transformou em uma curiosa mistura de surpresa e temor. Assim, o que aconteceu? Os culpados seriam determinados bancos, megaespeculadores como George Soros, a empresa financeira Peregrine Investments Holdings ou certos governos da região, que se deixaram levar pelo entusiasmo dos mercados? A crise era atribuída a fatores monetários e a certa velha franja hiperespeculativa, que navegava à deriva pelo mundo, sujeita a alterações emocionais, a condutas cíclicas que oscilavam entre o otimismo e o pânico, arrastando enormes fluxos de capitais.
Não faltaram análises de conjuntura que ressaltassem a independência da economia real em relação à economia monetária, cujas desordens não teriam por que afetar a primeira. Os meios de comunicação faziam curiosos coquetéis (Beinstein, 1997), combinando palavras como efeito dominó, volatilidade financeira, desconfiança dos mercados, por mero estilo de interpretação, pintando uma realidade confusa, quase mágica da realidade de então.
Expressões, como a do primeiro-ministro da Malásia, Mahathir Mohamad, ao descrever os mercados financeiros internacionais como uma "selva de bestas ferozes" (La Nación, 25 de janeiro de 1998), exemplificam o clima. O centro dinamizador da globalização, o mundo das finanças, passou a ser descrito como área perigosa, com tubarões, especuladores irresponsáveis. De onde viria esta avalanche especulativa? Qual a causa de sua ascensão irresistível? Temos algumas explicações psicológicas em Kindleberger (2000) ou nos comentários extremamente ácidos de Galbraith sobre o mundo da especulação, citados por Beinstein, apresentando o fenômeno com rigor maior ou menor, sutileza ou confusão. Em geral, tratava-se de descrever a fórmula hábil que empurrava para a frente - ou para o nunca - a reflexão sobre a dinâmica do capitalismo globalizado.
Iniciava-se imperceptivelmente a segunda etapa, com a imprensa internacional estendendo a crítica aos Estados da região, acusados de serem mais irresponsáveis que os banqueiros. Foram descobertos os delírios faraônicos dos governos da Malásia e da Indonésia, o favoritismo aos grandes conglomerados exportadores, os chaebols para o governo coreano, a desordem filipina.
A corrupção era utilizada com frequência maior. A onipotência do poder permitia aos altos funcionários internacionais e aos manipuladores da informação de massa esquecer elogios à disposição modernizadora dos governos e das empresas asiáticas e adotar discursos radicalmente opostos.
Além disso, envolvia gente subdesenvolvida associada a aventureiros e tecnocratas oportunistas de países considerados sérios. Foi como a situação da Indonésia, com dívida privada de mais de 80 bilhões de dólares, incobrável, com sucessivas desvalorizações da moeda. A crise foi reduzida às flutuações da rúpia ou do índice da Bolsa de Jacarta e ao comportamento da cleptocracia encabeçada por Suharto e família. Não se tratava mais de crise da esfera especulativo-financeira, relacionada com certos dirigentes políticos corruptos. Agora apareciam fatores econômicos estruturais, estratégias de desenvolvimento equivocadas. Começou-se a falar da fragilidade dos modelos apoiados no comércio exterior e nas alianças maléficas entre governos e empresas exportadoras locais.
No início de fevereiro de 1998, um telegrama da agência Reuters afirmava que familiares e amigos de homens fortes no poder em nações asiáticas tiveram oportunidade de se converter em cidadãos ricos. Eles seguiam o chamado modelo coreano de desenvolvimento, em que o governo obrigava o setor financeiro a injetar dinheiro em empresas fabris para estimular o desenvolvimento e as exportações. O método funcionou por algum tempo. Duas décadas mostraram números de crescimento econômico com que as nações desenvolvidas só podiam sonhar. A corrupção foi considerada insignificante. A crise financeira parece ter confirmado esta opinião: "o modelo coreano está destruído", disse o professor Jesuf Wanandi (Beinstein, 1997) sobre o país mais afetado pela crise.
No final de agosto de 1997, o jornal Le Monde, de Paris, assinalava que, depois de ter bajulado esses mercados emergentes, os financistas, árbitros do planeta moderno, retiraram-se a grande velocidade. No fundo, não estavam equivocados em estimar que o crescimento dos tigres e dragõeshavia se esgotado. E um forte dirigismo político se instalava. O asiatismo permitira uma decolagem formidável, realmente de causar espanto, mas era tudo sinal do novo comportamento do capitalismo.
O Japão provou que os cinquenta anos para alcançar o Ocidente podiam ser realizados por esses países em vinte anos ou até mesmo em quinze. Mas pulverizou-se rapidamente! O dirigismo conduziu à conveniência da política e dos negócios, ao concentrar a crítica em si próprio, deixando em segundo plano o esquema de economia de exportação. Desviava-se a atenção para o aspecto instrumental do modelo, distorcendo sua essência. A globalização permanecia fora da crítica. Mas tratava-se de uma má administração da abertura, de inserção errônea no livre mercado internacional. Especialistas assinalavam que, na Ásia oriental, fracassava o voluntarismo estatizante. Por conseguinte, para a sua salvação, recomendavam mais purgação, e o país ficaria acéfalo a tudo, vivendo uma realidade de deformação inegável, pois, no social, o trágico quadro de descaso distanciava ainda mais as sociedades.
Aqui, o planejamento das cidades e o planejamento estratégico de uma empresa acabariam por implicar uma cadeia de ações com soluções em diversas áreas, sempre trabalhando conjuntamente, como em saneamento e educação. Buscava-se qualidade de vida para todos cidadãos, carentes ou não. Métodos inadequados de exploração destruiriam a integridade das culturas existentes. Seria preciso buscar benefícios a longo prazo, esquecendo-se às vezes dos ganhos de curto prazo que nem sempre podem levar a resultados duradouros.
Retomando as soluções hídricas. Vivíamos em um planeta aquático: três quartos da superfície da Terra ainda são cobertos de água. Mas a água doce, limpa, também é escassa; e pior: vem escasseando assustadoramente. Menos de 3% da água do planeta seriam doces e, a maior parte estaria presa às geleiras ou nas grandes profundidades subterrâneas do mundo. Muitos rios e lençóis estariam também poluídos. Assistimos então ao que é alarmante: cidades inteiras estão ficando cada vez mais pobres em água e ela tem se tornando causa importante de conflitos internacionais.
O que o homem deve fazer não é tentar obter mais água, construindo represas e hidrelétricas, pois novos investimentos representam gastos com pouco retorno, além de prejudicar o meio ambiente. Dizia-se que seriam construídas grandes represas sem indagar qual a melhor solução, cometendo o mesmo erro com a energia. O mundo do capitalismo recente vivenciava mais um dilema sério.
Nada acompanhava o atual índice de crescimento demográfico nem a grande demanda. Mas o homem continuava se servindo de água potável para quase todos os fins, como lavagem de chão, descarga de banheiros etc. O homem ocidental devia pensar como os habitantes da África do Sul, como registraram Paul Hawken, Amory Lovins e L. Hunter Lovins em Capitalismo natural: criando a próxima revolução industrial: com o propósito de ter um pouco, para todos, para sempre.
No panorama sequidão, a agricultura gasta o dobro da água consumida por todos os prédios, indústrias e minas. Mas os projetos faraônicos que acabariam caindo sempre no ridículo insistiam em aparecer. A corrida da água presumia recursos hídricos inexauríveis. Nos anos 1990, a sombra do esgotamento mundial e da energia de bombeamento obrigou a novas descobertas da agricultura de terra seca. Apesar de existirem águas subterrâneas, é necessário saber se é possível bombeá-las até a superfície. Estávamos acometidos de um grave e novo desafio/problema no mundo moderno. Os estoques estavam cada vez mais escassos!
O Rio de Janeiro também enfrentava esse problema/desafio, que era de proporções mundiais na história do tempo presente, com um agravante, imperceptível: aquela população que chamávamos de periferia, que na verdade tem um ou vários corpos sociais e socioculturais autônomos e se agiganta diante de nossos olhares estupefatos, paralisados, impotentes diante de tamanha grandeza. Ora, quem acabaria pagando suas consequências imediatas seriam os que habitavam a classe média, o setor de consumo. A pauperização do outro chegaria inexoravelmente aos calcanhares da sociedade da ordem. A classe média sempre reagiu de forma violenta, quando acuada. A história já foi testemunha disso! Basta ver os regimes de força no capitalismo, como o nazi-fascismo e as variantes que tivemos durante o século do não e adjacências futuras. Sabemos que ele sempre foi amparado em uma classe média absolutamente desesperada, insensível, que ao mesmo tempo em que se valia de seu comércio clandestino, daqueles que habitavam o espaço da sociedade paralela, despejava sobre eles seu misto de temores/aplausos.
Da máscara da civilização à difícil tarefa de realizar a civilização da máscara
Jean Starobinski, quando especula sobre o que chama de "Máscaras da civilização", estuda a linguagem e os argumentos desenvolvidos em torno da ideia de civilização na França dos séculos XVII e XVIII. Reconstitui a história da palavra que, com o sentido moderno de processo de aperfeiçoamento do homem, entrara no dicionário na segunda metade do então século XVIII, principalmente a partir dessas reflexões iniciais. O grande linguísta e filósofo de Genebra aborda as relações entre a doutrina clássica da Antiguidade e a civilidade e a arte da adulação. Revela as funções das fábulas e dos mitos nos séculos XVII e XVIII e suas relações entre exílio, sátira e tirania em Montesquieu; o estilo filosófico em Voltaire; e a busca do remédio no próprio mal, em Rousseau. São seis ensaios que refletem sobre os limites entre mistificação e sinceridade, entre civilização e barbárie.
Quanto à palavra civilização, as principais referências sobre ela são hoje conhecidas com aproximação satisfatória. Em francês, civil no século XIII e civilidade no século XIV se justificariam facilmente por intermédio de seus antecedentes latinos, mas civilizar teria sido atestada muito mais tarde. É encontrada no século XVI em duas acepções. A primeira seria levar à civilidade, ou seja, tornar civis quebrando os costumes e as maneiras dos indivíduos. Em jurisprudência, é tornar civil uma causa criminal leva a ver que esta última acepção sobreviveu pelo menos até o fim do século XVIII; Littré a assinala como utilizada outrora. Ela forneceria a base do substantivo civilização, que o Dicionário universal Trévoux, de 1743, define como termo de jurisprudência. É um ato de justiça. A civilização se faz convertendo as informações em investigações. O aparecimento um pouco mais tardio da mesma palavra no sentido moderno do termo constituirá menos um neologismo lexical do que a entrada em cena de um significado concorrente, logo triunfante, como afirma o professor Jean Starobinski. Embora não seja minha área de domínio, creio que as acepções jurídicas de civilização teriam desaparecido do Dicionário da Academia de 1798, que, na sua quinta edição, dizia que civilização é a "ação de civilizar ou estado do que é civilizado", o que em 1795 encontrava-se em L. Snetlage (1795).
Essas palavras estiveram em uso para dizer que uma causa criminal era tornada civil; foram e ainda são empregadas para exprimir a ação de civilizar ou a tendência de um povo a polir ou a corrigir seus costumes e seus usos, produzindo na sociedade civil moralidades luminosas, ativas, afetuosas e abundantes em boas obras. Equivaleria a dizer que cada cidadão da Europa estaria, no tempo presente, empenhado nesse último combate de civilização, ou civilização dos costumes.
Este artigo busca demonstrar que algo esteve em curso e, sinuosamente, se interpôs entre nós. Poderíamos perguntar se o que veio se dando não foi fruto de uma surpreendente confecção de corpos socioculturais autônomos calados, ou que necessitavam ficar calados, dentro do todo social que construíamos então no Brasil escravista, que se reverberou pelos tempos da pós-escravidão até agora. O fato é que realmente criamos e alimentamos algo maior que nossa capacidade de percepção.
Como observa J. Moras, a palavra civilização conheceu tal impulso durante o período revolucionário, quando era fácil atribuir ao espírito da revolução um neologismo que lhe era anterior. Contudo, não deixa de ser verdade que a palavra civilização podia ser tanto mais facilmente adotada e difundida quanto o período revolucionário. Segundo M. Frey, que viu formarem-se inúmeros substantivos em -ação a partir de verbos em -izar, como centralização, democratização, federalização, municipalização, nacionalização, panteonização (de panteão), utilização. Podemos verificar que a própria civilização impôs-se e impõe-se ainda. Tanto que Sébastien Mercier, em 1801, não a considera mais como um neologismo. A palavra, então, rapidamente deixou de aparecer como nova.
Conclusão
Para concluir, podemos afirmar que o Rio de Janeiro mudou! E também com ele o perfil do Brasil se revelou agora como um todo. Principalmente pelo processo de capitalidade irradiadora, no início, e também pelo processo consequente de capilaridade irradiadora. Ao largo de tudo, cresceu uma corporificação sociocultural de favela realmente insinuante, atormentando constantemente a cidade, principalmente sua elite. Em que pesem todos os avanços tecnológicos de um significativo mundo globalizado ao redor, reiteramos que fica difícil negar a presença desses corpos.
Assim, assistimos passivamente amortecidos, até bem pouco tempo, ao volume de grave problema sócio-educacional-econômico. O ovo da serpente se rompeu e a cria está por aí, como um barco à deriva. Sua tecnologia na favela (que se contrapõe a de favela) representa hoje um desafio que influencia a todos sob a gênese do novo mundo, na composição de uma urbis carioca que ainda não se concebeu definitivamente, talvez porque se trata de um Rio de todos os Brasis, como dizia o economista Carlos Lessa. Tudo tomado de uma geografia social onde a sociedade paralela insiste em permanecer, como se fosse a permanência e a ostentação da ilusão. Buscar demonstrar que algo esteve em curso e se interpôs entre nós é muito pouco para que tenhamos maior visibilidade de seu todo. Poderíamos questionar se dela veio tudo, mas que não foi realmente fruto de uma surpreendente confecção de corpos socioculturais autônomos calados. "Necessitavam ficar calados", como dizia a professora Tereza Turíbio, nesse todo social que construímos, no Brasil escravista e pós-escravista, realmente reverberou pelos tempos da pós-escravidão até aqui. O fato é que realmente criamos e alimentamos algo maior que nossa capacidade de percepção e combate. E cujo serpentear, hoje, nos assusta sobremaneira.
O monopólio exercido por Portugal sobre o Brasil-colônia e a concentração dos meios de produção - especialmente as terras, sempre em mãos da minoria de abastados cidadãos lusitanos - só corroborou para efetivar uma acumulação primitiva de capital vil.
O processo de favelização teve início no século XIX, quando, em busca de proximidade com o mercado de subsistência e da redução do tempo de deslocamento, apesar da insalubridade e das precárias condições, a população pobre instalou-se nas áreas centrais da cidade, o maior pólo de atração do movimento migratório. Embora esmaecido na primeira metade do século XX, o século do não, podemos asseverar que foram trágicos os resultados. As correntes migratórias internas de Minas Gerais, do Nordeste e alguma transumância da própria Província Fluminense, a mão-de-obra dos pretos, geralmente ex-escravos, completam o mosaico que vemos hoje, alterando de vez sua composição étnica e engrossando o contingente de desempregados e subempregados na cidade (Carvalho, 1987). Mas esses grupos compõem uma sociocultura tanto oficial quanto paralela complexa, riquíssima em novidades sempre surpreendentes, que merece ser estudada.
Assim foram os séculos XVIII-XIX-XX e, podemos sentir, reverbera-se pelo alvorecer do século da esperança, o XXI, desde as possessões portuguesas na América e em outras partes do mundo, num vertiginoso processo de desenvolvimento, tanto tecnológico quanto científico. O Brasil tornava-se um dos maiores produtores de açúcar e ouro do mundo, no período da Revolução Industrial, de 1760 até o início do século XX, quando tudo passou por uma radical mudança.
Assim, de lá para cá, o darwinismo e o positivismo do século do não deram lugar a uma tipologia social de crioulo branqueado, forma cabal de preconceituosidade, fenômeno que começou a ganhar corpo com o avanço do tempo, com a complexificação social; a sociedade de classe do capitalismo foi se tornando cada vez mais presente, a ascensão social do preto também passou a ser inexorável. Porém, apenas uns poucos conseguiram ter aceitação na e pela sociedade da ordem. O processo de mudança se acelerou, não para retirar favelas, palafitas e a pobreza em geral, mas em tudo se evidenciava o jogo capitalista do desprezo/valor/interesse. Aqui, amargamos coisas como a escravidão, o latifúndio e o latifundismo, real e efetivamente, por um longuíssimo tempo após Jesus Cristo. Como pudemos ver, o século XX acabou construindo e se responsabilizando pelo contraponto entre o cartesianismo e o holismo. Não foi à toa que o denominamos de o século do não.
Há muito ainda por fazer para que possamos reparar o estrago feito. Contudo, sem sombra de dúvida, uma delas - e talvez a primeira - seja atuar na sanha do ato de ludibriar de nosso povo, investindo em coisas como Educação. Acreditamos ser realmente nossa mão mágica, de que tanto falou o capitalismo liberal. O trapézio já está vazio, mas, inexoravelmente suspeitamos que teremos novos trapezistas: talvez a juventude desamparada da favela que conosco coabita no urbano da cidade, pois o mimetismo e o ato de ser de uma sociedade contemplativa permanece entre nós.
Referências bibliográficas
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Publicado em 22 de janeiro de 2008
Publicado em 22 de janeiro de 2008
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