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Clara dos Anjos depois de Lima Barreto

Ieda Magri

Era a primeira vez que Clara dos Anjos via o centro da cidade. O sacolejo do trem não chegava a embaralhar as ideias que trazia de como seria ganhar a rua e pisá-la com os próprios pés. Ia inteira ali e sabia ser esse movimento definitivo: era como sair de sua cidade natal, libertar-se dos pais, ganhar, enfim, a responsabilidade de uma mulher adulta e, ademais, mãe. Desde que desconfiou de que ele não voltaria ali outra vez, naquela noite longa em que o céu se mostrava esparramado de estrelas que se encolhiam na sombra repentina, como se a do seu coração tomasse partes aqui e ali daquele céu antes tão limpo e luminoso nas noites em companhia de Cassi, Clara não sentia nada tão forte. Ela sabia que atravessava uma fronteira.

Apertou a mão de Afonso, pensou que a vida seria mais fácil se ele não parecesse tanto com o pai e temeu pela hora em que ele a abandonaria. Mas o trem chegava à Central e Clara dos Anjos fez andar o menino. Como uma mulher que conhecesse a vida – e a cidade –, pôs-se em direção ao Campo de Santana. Tinha ouvido falar desse imenso jardim. Demorou-se olhando as árvores e explicando ao filho assustado que as pessoas não queriam lhe fazer mal. Se bem que, sabia, havia por ali muitos malandros. Apertou sua bolsa de tecido contra o corpo e tratou de protegê-la bem. Sentia-se como se já tivesse estado ali antes e não teve medo. Só não saberia o que fazer se algum rapaz a abordasse. Apertaria o passo e usaria, se fosse preciso, a posição do pai. Afinal era empregado dos Correios, e ai de quem se atrevesse a apontá-la como mãe solteira, mulher desfrutável. Afastou o pensamento ruim ao ver o filho chutando uma tampinha: como estava feliz! Ali ninguém sabia quem era e sua cor estava de acordo com a maioria. O pai estava errado, afinal, ao dizer que a mulata pobre não poderia frequentar certos espaços. A possível humilhação lhe era indiferente. A rua acolhia a todos e, pensou, não sem um suspiro, que as diferenças se faziam notar nos interiores: mas não havia vontade nela de entrar em casas ou cafés. Preferia ver a cidade e ah, se pudesse!, o mar. O mar! Como faria para chegar à Praia do Flamengo? Dona Margarida falara tão bem da Praia do Flamengo, a vista do Pão de Açúcar, as palmeiras altíssimas e as mulheres, todas de traje de banho passeando com seus maridos. Clara sentiu-se invadir por um prenúncio de melancolia, mas que importava não ter roupa de banho? E depois era indecente. Preferia somente molhar os pés, sentir a areia fina entre os dedos, sujar o vestido sentando-se no chão.

Levantou-se do banco em que estava a observar o filho colecionando pedrinhas – incrível como ele explorava tudo o que era diferente do chão do subúrbio –, bateu palminhas apressadas chamando-o e calculou quantos minutos gastaria no caminho até o bonde. Iria, sim, à praia do Flamengo; e lá saberia quando viria à cidade outra vez? Preocupou-se um pouco com o dinheiro: como explicaria ao pai que gastara tudo que tinha? Diria caprichos do filho. Pobre Afonsinho, nunca teria o que as crianças brancas tinham. Por sorte ele se contentava com as coisas miúdas do chão. Mas pediria doces mais tarde e ela os daria. Ah, se pudesse voltar a ser feliz como uma criança que recebe balas! Tinha sido uma vez: era noite e não fizera nenhum barulho. O céu não tinha sombras e o futuro era uma promessa boa morando numa casinha pequena com um homem de boca macia. Olhou para o lado como que para desviar-se daquela lembrança que dizia quem era, e era boa e doída: fruta do quintal colhida ainda não madura.

No bonde, sentou-se entre uma mulher gorda e um senhor que lia o jornal. Quando o bonde fazia a curva, ele roçava-lhe o braço. Clara odiou-o, fazia de propósito, oras! Assustou-se um pouco com os meninos pendurados do lado de fora, que ousadia! Explicaria ao filho que aquilo era muito perigoso, não deveria, jamais, andar de bonde assim. Depois se recriminou de protegê-lo demais e sentiu vontade ela mesma de andar assim, com um pé apoiado no estribo, uma mão no banco: os outros pé e mão a vagar na onda quase morna do vento. Que sensação de liberdade! E que afronta às senhoras sérias!  Mas estava perdendo a paisagem. Que mania tinha de olhar para dentro enquanto a natureza lhe acariciava os olhos. Viu as palmeiras, os vendedores de coco, o Pão de Açúcar, como era bonito! Não conteve seu braço e, como se fosse de outra, viu-o apontando toda aquela boniteza ao filho: veja, Afonsinho, é lindo, não é?! Mas ele estava entretido com um papel sujo que trouxera do Campo de Santana.

Clara pagou o bonde e saltou. Já não via nada além do mar. A vida teria sido muito melhor se tivesse conhecido antes esse lugar. Talvez nem tivesse sonhado com casamento. Então as viúvas não eram felizes? Era isso: desse dia em diante se comportaria como uma viúva. E forte como dona Margarida. Saberia resolver tudo porque se contentaria com o mar. Quando o céu não pudesse lhe dizer mais nada, dormiria, e ao acordar tomaria o trem e depois o bonde e viria à praia. Faria bordados, se preciso, trabalharia em alguma faxina, compraria trajes de banho e, de resto, só precisaria de dinheiro para os bilhetes. Não era muito e a vida ficava mais leve.

Observou, então, um casal, uma moça jovem e um rapaz com pasta nos cabelos. Ela ria e parecia que o moço lhe fazia alguma promessa. Sem aviso, sentiu o incisivo doer-lhe. Mas que droga, já fazia uma semana que sentia o dente. O velho Meneses não tinha feito um bom tratamento. Tomou o filho nos braços e passou a andar mais depressa, mas não conseguia afastar-se de uma sensação esquisita parecida com um dèjá-vu e, por isso, olhava para trás algumas vezes.

– Aquele não era o Cassi Jones?

Esta é uma dica: se quiser conhecer a verdadeira personagem, leia Clara dos Anjos, de Lima Barreto. Ele escreveu também um conto com o mesmo título. Você encontra o romance facilmente em qualquer sebo, até mesmo nos de rua, em edições que não custam quase nada.

Publicado em 12 de agosto de 2008

Publicado em 12 de agosto de 2008

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