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Do Império à Republica: O carnaval visto pelos quadrinhos (1869 - 1910)

Natania A. Silva Nogueira

Professora da Rede Pública Municipal de Leopoldina (MG)

O carnaval é uma festa popular que já se tornou marca característica do Brasil. O que poucos sabem é que sua história está relacionada a uma mídia que há mais de um século se faz presente no nosso cotidiano: as histórias em quadrinhos. Neste texto, fazemos breve investigação sobre a história dos carnavais e o carnaval nas histórias em quadrinhos publicadas no Brasil, tendo como locus a obra de Angelo Agostini, pioneiro nos quadrinhos brasileiros.

 

Introdução

O carnaval pode ser considerado uma das festas mais antigas do mundo. Surgindo na Antiguidade, atravessando a Idade Média e chegando ao continente americano, ele se tornou uma das formas de manifestação cultural mais características do Brasil, cercado de histórias, de mitos, de alegorias e de símbolos que resistiram ao tempo ou se adaptaram às mudanças impostas pela sociedade, em vários sentidos. Falar da origem do carnaval em si não é o objetivo deste artigo, mas sim refletir de que forma essa festa popular foi representada, por meio de imagens, muitas vezes cômicas, caricatas – como o próprio carnaval.

Essas imagens, inicialmente veiculadas por folhetins e periódicos, traduziam, pelo traço de desenhistas, a visão que se tinha do povo, do festejo e dos próprios valores embutidos nas caricaturas, nas charges e nas histórias em quadrinhos. De festa do homem simples e trabalhador, caiu no gosto da elite, em meados do século XIX, quando em salões ricamente decorados desfilavam (e desfilam) fantasias luxuosas e se permitia, ao menos uma vez ao ano, abrir mão de certos pudores. Na festa da carne, é proibido proibir, e as recriminações são abafadas ao som do samba, das marchinhas, das músicas que em cada época marcaram a alegria dos foliões.

O carnaval pode ser representado de diversas formas e com diversas finalidades pelo traço de artistas, expressando ideias e valores. Independentemente de julgar se os valores de um determinado sujeito da história são certos ou errados, verdadeiros ou falsos, trata-se de avaliar se esse juízo, essa representação se insere no contexto histórico do qual ele faz parte. É disso que trata este texto: da imagem que, junto com a palavra escrita, conta a história de uma festa sob o prisma de um artista, revelando o testemunho de um tempo.

Nosso recorte localiza-se entre 1869 e 1910, levando em conta a produção de um dos mais importantes artistas que atuaram no Brasil: Angelo Agostini. Durante o tempo em que esteve no Rio de Janeiro, Agostini retratou os carnavais cariocas e forneceu elementos para uma análise histórica dessa festa naquele momento histórico específico, marcado pelo abolicionismo e pelo republicanismo.

Carnaval e imprensa no Brasil (1850 – 1910)

O carnaval no Brasil, mais especificamente na cidade do Rio de Janeiro, foi por muito tempo um festejo que se fazia pelas ruas, quando populares se reuniam e, aos poucos, formavam-se multidões de foliões. Era o entrudo, que tinha origem portuguesa e foi trazido para o Brasil provavelmente entre os séculos XVI e XVII. Consistia em um folguedo alegre, mas violento. Havia entrudos familiares e populares. Nas ruas, os homens de boas famílias se misturavam com populares, em sua maioria negros e mestiços. As senhoras tidas como honestas assistiam de longe, das sacadas das casas, e mais tarde passaram a participar do corso carnavalesco vespertino, dentro de carros, protegidas do contato com os foliões das ruas.

Corso é o nome que os passeios das sociedades carnavalescas do século XIX adquiriram no início do século XX, no Rio de Janeiro, após uma tentativa de reproduzir no país as batalhas de flores características dos carnavais mais sofisticados da virada do século. A brincadeira consistia no desfile de carruagens enfeitadas – e, posteriormente, de automóveis sem capota.

A Figura 1 mostra um entrudo na Rua do Ouvidor, de onde as famílias podiam assistir, das sacadas, aos folguedos. A partir de 1906, essa prática foi transferida para a nova Avenida Central, onde famílias alugavam sacadas para poder assistir aos desfiles.

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Figura 1: Entrudo na Rua do Ouvidor – Angelo Agostini (1884).
Fonte: Acervo particular de Gilberto Maringoni Oliveira.

Foi na década de 1840 que ocorreu a separação entre a festa da rua – popular, negra – da festa de salão – branca e segregada. Teria sido uma família de italianos do Rio de Janeiro a primeira a organizar esses bailes com o uso de máscaras, à moda veneziana. A máscara, marcante até hoje nos carnavais de Veneza, ajudava a preservar o anonimato dos foliões, que se perdiam em meio aos salões. Nas ruas, as máscaras também eram usadas, algumas rústicas, outras improvisadas, mas sempre com o mesmo objetivo de manter o anonimato, pois, afinal, no carnaval as pessoas podiam se despir de certos pudores e cometer alguns excessos que normalmente eram condenados pela sociedade.

O uso de máscara tem como data inaugural o século XIII, mais precisamente o ano de 1268. O hábito de esconder o próprio rosto sob máscaras anônimas permitia aos venezianos, durante o carnaval, abolir as barreiras sociais, já que nessa época servos podiam se fantasiar de nobres e vice-versa, e homens e mulheres podiam trocar de vestimentas. Dessa forma, não só as barreiras das classes sociais eram negligenciadas, mas o próprio decoro moral, deixando que a loucura, ou melhor, a folia tomasse conta da realidade, propiciando orgias nos espaços públicos e privados. (...)

Nessa fase de relaxamento das normas sociais, o uso de máscaras permitia que as pessoas que as usavam pudessem cometer, no anonimato, todos os pecados da carne, quer fossem na cama ou na mesa (Faria, 2006, p. 87).

A máscara representava uma segurança para o folião que não desejava ser recriminado durante o restante do ano por suas ações durante o carnaval. Em seu livro Costumes em Comum, Thompson refere-se ao anonimato como uma estratégia do povo, quando as pessoas se reuniam em motins para protestar e usavam a multidão como um escudo contra a perseguição das autoridades, que não tinham como identificar todos os amotinados. Podemos transferir essa estratégia para o carnaval. Nas ruas, multidões acompanham blocos e se disfarçam para poder manter o anonimato e aproveitar os dias de folia, sem se preocupar com a constante vigilância da sociedade e da(s) igreja(s).

A nova modalidade de carnaval – o baile particular – era considerada civilizada, mais europeia e menos perigosa e tinha uma peculiaridade: pagava-se para participar. Portanto, era um baile para pessoas com posses. Assim, 

Os bailes carnavalescos de salão – privatizando um divertimento público para os sócios dos clubes e os que podiam adquirir ingresso – haviam se tornado a marca distinta da gente fina. Em oposição ao ‘entrudo moleque’, festa pública para o grande público, evento de rua e alvo designado das cacetadas da polícia (Alencastro, 1997, p. 53).

Já no início do século XX, o carnaval se torna uma festa mais familiar, com as primeiras matinês (bailes infantis) e com festas realizadas em casas de família. Aparecem também os concursos (de fantasias, de tipos exóticos etc.) e cresce o prestígio das primeiras sociedades carnavalescas, que antecederam as escolas de samba. As sociedades eram clubes ou agremiações que, com suas alegorias e sátiras ao governo, encontraram uma forma saudável de competição (Pequena história do carnaval).

O sucesso dos bailes de máscaras deu passagem à criação dos clubes de carnaval, cujo objetivo era a organização dessas festas de salão. Dessa forma foi organizada, pelo escritor José de Alencar, em 1855, com o nome de Congresso das Summidades Carnavalescas, que já em sua passeata inaugural contava com a participação de 80 sócios (Faria, 2006, p. 94).

Esse modelo de carnaval carioca – voltado para as elites – foi copiado em várias partes do Brasil. Na jovem capital mineira, Belo Horizonte, por exemplo, “o carnaval consistiria nos luxuosos desfiles de grandes sociedades carnavalescas da cidade do Rio de Janeiro” (Pereira Filho, 2004, p. 3), organizados pelos clubes de carnaval da capital, em substituição a manifestações populares como o entrudo. Essas associações de carnavalescos utilizavam os jornais impressos como forma de divulgar suas ideias sobre o carnaval. Nesse sentido, não apenas no Rio de Janeiro como também em grande parte do país, podemos verificar a presença dos periódicos na construção da imagem do carnaval no Brasil.

A imprensa era uma aliada do carnaval; afinal, era uma celebração tipicamente brasileira. Muito além de noticiar o festejo, ela lhe dava uma moldura de festa popular, movimento cultural, envolvendo-se diretamente na festa desde o século XIX, colaborando na socialização da festa em modalidades competitivas como os corsos – passeatas em carros, bailes, coretos, desfiles, organização de clubes e agremiações carnavalescas, blocos, fantasias e todo imaginário da liberação criativa popular. 

Segundo Eunícia Barros Barcelos Fernandes, a imprensa periódica tinha um papel importante: “como agente mediador de informações e ideias, articulando grupos de diferentes estratos sociais e interesses” (2007, p. 4), ela representava a modernidade e era, também, um instrumento pedagógico que se tornava importante instrumento para a construção de referências sociais. Nesse sentido, analisar as representações gráficas do carnaval através das imagens publicadas em jornais nos oferece dados para uma leitura social, política e cultural dessa festa, neste caso específico, no Rio de Janeiro.

Os jornais promoviam concursos, premiavam figuras pitorescas, reforçavam comportamentos, dando visibilidade e reconhecimento à festa. Apesar de estarmos analisando o carnaval no Rio de Janeiro, é  oportuno ressaltar que esse comportamento não se limitava apenas àquela cidade. Caroline P. Leal (2007) ressalta o papel da imprensa na divulgação do festejo e sua dedicação em transformar o carnaval na cidade de Porto Alegre em uma comemoração familiar e sem violência. A imprensa via o carnaval como celebração que devia ser levada a sério e que devia ser “domesticada”; cabia à mídia escrita levar a cabo essa tarefa. O uso de quadrinhos e caricaturas foi muito útil nessa tarefa.

O carnaval segundo Angelo Agostini

Durante o Segundo Reinado, havia grande tolerância à imprensa. Jornais, livros e panfletos circulavam por todo o Império, e até os cortejos carnavalescos contavam com carros alegóricos que representavam personagens importantes; havia liberdade de caricatura. Essa liberdade de expressão abriu espaço para o surgimento de uma impressa crítica e dinâmica, em oposição aos tempos de censura e perseguição do período colonial. Nessa imprensa encontramos várias referências ao carnaval e a vários artistas que procuram, através do desenho, expressar suas impressões sobre essa festa.

Um dos primeiros a retratar o carnaval brasileiro foi o desenhista ítalo-brasileiro Angelo Agostini (1843-1910). Nascido na Itália, chegou ao Brasil em 1850. Seu nome associa-se ao surgimento da caricatura em São Paulo, na revista Diabo Coxo (São Paulo, 1864) e ao pioneirismo na produção de histórias em quadrinhos no Brasil, “quase 30 anos antes de Yellow Kid (de 1895), do norte-americano Richard Fenton Outcault, tida como a primeira história de quadrinhos moderna” (Oliveira, 2006). Em 1869, Agostini publicou sua primeira historieta com personagem fixo, no periódico Vida Fluminense: As aventuras do Nhô Quim ou Impressões de uma viagem à corte. Mas foi em 1883 que surgiu seu maior sucesso nos quadrinhos, o Zé Caipora, o primeiro personagem de histórias em quadrinhos de longa duração publicado no Brasil (Moya, 1996, p. 16).

Seu trabalho fazia uma leitura dos usos e costumes da época em que viveu, leitura esta caracterizada pela ironia, principalmente frente às elites da época. Na cidade do Rio de Janeiro, foi colaborador na revista Arlequim (1867); na Vida Fluminense (1868-1875), nO Fígaro (1876-1878), nO Mosquito (1869-1875). Foi fundador do Mequetrefe (1875-1893); fundou e ilustrou a Revista Ilustrada (1876 a 1898); fundou o Dom Quixote (1895-1903). Colaborou nO Malho (1902-1954) e nO Tico-Tico (1905-1959), revista infantil onde desenhava as histórias do Pai João. Trabalhou na Gazeta de Notícias em 1904 (O carnaval visto por Angelo Agostini). Sobre sua crítica político-social, Rosangela de Jesus Silva afirma:

Para realizar sua crítica Agostini utilizou-se não apenas dos recursos textuais, mas também dos desenhos. Quando observamos as caricaturas de Agostini, percebemos o quanto a preocupação com o desenho está presente em seu trabalho. O seu traço não apresenta como principal característica a deformação da figura. Suas representações atuam mais como retratos que indicam com clareza de quem se trata e o que se quer mostrar. Além do desenho, as caricaturas vinham sempre acompanhadas de pequenas legendas salpicadas de comentários por vezes divertidos, irônicos ou mesmo bastante ácidos (Silva, 2006).

Como um apreciador dos costumes do povo brasileiro, Agostini não poderia ignorar nossa maior festa popular, o carnaval. Mesmo sendo estrangeiro, Agostini “soube captar com perfeição o espírito e a brasilidade tropical do nosso país” (Goidanich, 1990, p. 19). Retratou, em muitos de seus quadrinhos e caricaturas, os carnavais do Rio de Janeiro; neles podemos identificar a diversidade cultural e social brasileira, que durante o festejo aflorava com maior densidade. Ele celebra, em seu traço, a diferença, procurando tirar o povo da marginalidade à qual era relegado pelas elites, mostrando que era ele, na verdade, o dono da festa.

Olhar com atenção os registros de Agostini sobre a folia nas últimas décadas do século XIX e no início do século XX pode dar margem a uma interessante reflexão sobre esta própria festa, geralmente interpretada como um momento de suspensão de todas as tensões em nome de uma comunhão transitória: uma válvula de escape através da qual a "verdadeira" expressão popular e nacional poderia vir à tona. A etnografia de Agostini, longe de registrar esta pretendida univocidade, evidencia a diferença, a multiplicidade de gestos e intenções, a constante disputa por espaço e por autonomia entre diferentes atores da folia (O carnaval visto por Angelo Agostini).

Na década de 1880, na Revista Ilustrada, dedicou páginas duplas aos carnavais de 1881, 1882 e 1883 e 1884. Foi nessa revista que Agostini desenvolveu As Aventuras de Zé Caipora.A imagem ocupava espaço considerável na revista, sendo colocada nas páginas centrais. Foi justamente nessa revista que conseguimos algumas caricaturas de Agostini dedicadas ao carnaval.

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Figura 2:  Angelo Agostini – 1881.
Fonte: Revista Ilustrada, Ano 6, n. 241, p. 4-5, 1881 (in: O carnaval visto por Angelo Agostini).

Após a Guerra do Paraguai (1864-1870), passou a ser comum haver carros alegóricos dedicados a temas da atualidade. Eram os chamados carros de críticas ou de ideias. Na Figura 2, está um retrato de Agostini para essa prática, destacando ainda mais a crítica política e social característica desses carros alegóricos. Para entender melhor essas críticas, vamos fazer uma análise em separado de partes da Figura 2, começando com um comentário de Octavio Aragão sobre um destes fragmentos (que está na Figura 3).

Em 1881, nas páginas da Revista Illustrada, Angelo Agostini retratou um carro de crítica do Club dos Democráticos que colocava sem o menor pudor um retrato de Dom Pedro II inserido numa estrela pregada numa nuvem, claramente fazendo alusão ao interesse do Imperador pela Astronomia, ciência que – na opinião vigente – afastava a visão do monarca dos problemas nacionais (2002, p. 106).

 

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Figura 3

Em outro fragmento da caricatura (na Figura 4), ele critica a escravidão, ao desenhar um branco montando em um negro escravo, enquanto abolicionistas e escravistas lutam pouco abaixo. Repare a pergunta: Quem vencerá? Agostini era abolicionista, mas não combatia todos os senhores de escravo, apenas os maus senhores, que espancavam e maltratavam os cativos. Agostini era contra a violência aos escravos, muitas vezes denunciada em seus desenhos, pois ela representava uma incivilidade que não combinava com a modernidade, tão cultuada durante boa parte do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Por vezes, ele apresentou em seus desenhos posturas racistas e elitistas, sendo um homem de sua época: moderno, mas com liberalismo limitado.

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Figura 4

Num outro fragmento (Figura 5), faz uma representação da República sob a forma de uma mulher – Agostini era um crítico da monarquia e republicano convicto. Mesmo depois da Abolição e da proclamação da República, Angelo Agostini continuou satirizando os políticos e os costumes do Rio de Janeiro no começo do século XX, nas páginas da revista O Malho. Crítico político incansável, não fechava os olhos para os problemas enfrentados pela jovem república.

 

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Figura 5

Suas publicações eram voltadas para a classe média – a Revista Ilustrada, por exemplo, era semanal e tinha aproximadamente 4 mil assinantes –, que podia pagar pelos jornais e revistas. Utilizava linguagem mais simples e, por que não dizer, uma certa didática, possibilitando um diálogo mais amplo com o público. O Brasil era um país em que cerca de 80% da população não sabia ler e escrever.

Ainda em relação ao último fragmento, observe ainda que o desenhista faz uma referência ao Exército brasileiro, representado por um militar montado em um canhão. O  exército era um dos alvos que Agostini não poupava. Durante a Guerra do Paraguai (1864-1870), Agostini publicou caricaturas, desenhos, ilustrações de soldados mortos e mapas, ocupou muitas vezes as páginas do Cabrião, não esquecendo a sátira ao Duque de Caxias e ao recrutamento de voluntários para o conflito (Mestres do Quadrinho Nacional).

Nos quadrinhos mostrados a seguir, Agostini faz referência à hipocrisia da elite, que pertencia às sociedades carnavalescas. Durante o carnaval, os íntegros chefes de família que participavam dessas sociedades colocavam prostitutas em carros alegóricos, a desfilar pelas ruas da cidade, enquanto no restante do ano perseguiam e discriminavam – pelo menos em público, pois sabemos que muitos desses homens de bem eram frequentadores assíduos de bordéis – essas mulheres, consideradas má influência para as moças de família, criadas e educadas para serem mães e esposas exemplares. Mas é carnaval, é tempo de esquecer certos pudores; daí se permite que mesmo as prostitutas tenham lugar de destaque. Os preconceitos não são esquecidos, apenas convenientemente ignorados.

Angelo Agostini defendia um carnaval voltado para a família; por isso, muitas vezes criticou o comportamento das prostitutas, que desfilavam nos carros alegóricos ou atraíam os homens para os bordéis. Mas ele fazia uma distinção entre elas. As prostitutas de luxo, ele as usa para debochar dos senadores e deputados que as sustentam; as prostitutas pobres, Agostini as acusa de falta de decoro e assume postura higienista; as moças de família são representadas recatadas, tímidas e prendadas (Oliveira, 2006, p. 232).

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Figura 6: Quadrinhos de Angelo Agostini – 1884.
Fonte: Revista Ilustrada, Ano 9, n. 373, p. 4-5, 1884 (in: O carnaval visto por Angelo Agostini).

Agostini condena a hipocrisia da sociedade, que se torna mais nítida nesta época do ano, e deplora a imoralidade carnavalesca. Não gostava tampouco das festas de rua que envolviam populares, considerando-as de mau gosto e ofensivas à família e aos bons costumes.

Uma das manifestações populares que mais irritava Agostini, em tempo de carnaval, era o entrudo. Algazarra violenta e anárquica, ele possibilita à chamada ‘gentalha’ tomar conta das ruas com seus bandos de capoeiras e malandros, assustando cada vez mais a elite bem-pensante. Chegava-se mesmo a especular que o entrudo sairia vitorioso em seu embate contra os carnavais familiares e privados (Oliveira, 2006, p. 199).

Na Figura 7, dividida em dois quadros, Agostini representa um entrudo na Rua do Ouvidor (1884). No primeiro quadro, ele mostra o entrudo e a multidão que acompanha a folia, abrindo mão dos pudores normalmente reprimidos. No quadro seguinte satiriza, ao dizer que o “tempo” também quis participar, acabando com a festa. Compara os foliões aos soldados egípcios que foram engolidos pelo Mar Vermelho quando tentavam impedir a travessia dos hebreus liderados por Moisés. Insinua que os foliões teriam sido castigados pelos céus, por seu descaso à moralidade.

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Figura 7: Quadrinhos de Angelo Agostini (1884).
Fonte: Acervo particular de Gilberto Maringoni Oliveira.

Moralista, Agostini gostava do carnaval, mas não do entrudo. Censurava as liberdades tomadas pelos jovens durante a festa e a forma como as pessoas deixavam passar esses deslizes. Denunciava a depravação dos senhores de elite e não aceitava o comportamento despojado de pessoas de origem humilde, de prostitutas e cafetões, que lotavam bordéis em tempos de folia.

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Figura 8: Angelo Agostini  (1880).
Fonte: Acervo particular de Gilberto Maringoni Oliveira.

Na Figura 8, Agostini mostra um entrudo familiar e um entrudo popular. Nos entrudos familiares, era comum usarem-se os limões de cheiro ou laranjas de cheiro – pequenas bolas de cera recheadas de águas perfumadas –, que eram vendidos em tabuleiros pela cidade (como na Figura 1), que os foliões atiravam uns nos outros. Havia também jatos d’água, farinha, lama, cinzas, enfim, tudo que pudesse ser usado para deixar a outra pessoa suja. Nos entrudos de rua, os populares, corria-se o risco de receber na cabeça os conteúdos de penicos, lançados na multidão pelos moradores dos sobrados. Além de tudo isso, havia também o risco de ser agredido por um policial, que usava o cassetete para apartar os ânimos da multidão.

Nesse quadro, faz uma descrição de um desfile de carros alegóricos, acompanhado de um entrudo, que ali parece mais anárquico que no primeiro, com mulheres desmaiando e homens brigando, enquanto outras pessoas, fantasiadas ou não, aglomeravam-se para poder assistir ao desfile. Mascarados, homens de cartola, mulheres em pânico etc. Agostini traduz em desenho a violência dos carnavais, sob sua ótica particular.

A comunicação de massa é circular. A opinião de um jornal, de um jornalista, de um artista tem a ver com o público para o qual ele está voltado, que por sua vez possui semelhanças sociais, morais e econômicas. Agostini tinha ressalvas quanto ao carnaval de rua, mas acreditava no carnaval como uma manifestação típica da nossa cultura. Ele representa um grupo que deseja transformar, colocar ordem, civilizar o carnaval. Prova disso é que, aos poucos, o entrudo foi sendo proibido e desestimulado, seja pela polícia, seja pela administração pública.

Em 1904, o prefeito Pereira Passos apela para os jovens estudantes para que façam um esforço coletivo contra o entrudo, jogo bárbaro e pernicioso que gerava conflitos e desordem, impedindo as famílias de se entregarem aos ‘folguedos lícitos do carnaval’ (Araújo, 1993, p. 373).

Pereira Passos foi responsável pela reforma urbana que mudou a cara da cidade do Rio de Janeiro, que de corte passou a capital federal após a proclamação da República. Ele estimulou práticas higienistas, retirou os pobres do Centro da cidade, criou passeios públicos e não se esqueceu de criar novas regras para a maior festa popular do Rio de Janeiro. Os policiais foram instruídos a manter a ordem e a moral, impedindo a violência do carnaval. Havia até mesmo regras para o uso de máscaras. Tudo isso feito em nome do estímulo à participação da família na festa. Os entrudos entraram em decadência e foram substituídos por outras formas de carnaval de rua.

Conclusão

Se o carnaval era tempo de se soltar, de ultrapassar limites morais, sob a proteção das multidões que se aglomeravam nos entrudos ou sob as máscaras e fantasias que disfarçavam seus usuários, era também um momento de reflexão, quando se criticavam a política e os problemas socioeconômicos do Brasil. Era também, e ainda é, o momento de as massas se unirem, independentemente da origem social ou étnica, nem que fosse por três dias, para saudar a alegria de viver. As desigualdades não desapareciam (nem desapareceram até hoje), mas eram temporariamente suspensas enquanto durasse o festejo.

As representações que Agostini fez do carnaval, sejam elas por meio de quadrinhos ou de caricaturas, fornecem elementos para entender melhor essa festa popular no Rio de Janeiro do século XIX e do início do século XX. Mais do que isso, essas imagens abordam temas sociais e políticos importantes, além das reflexões e dos valores do autor e de seus leitores. São importantes documentos históricos, testemunhos de uma época. Essas imagens ajudam a entender parte do cotidiano dessa que se tornaria a festa característica do Rio de Janeiro e do Brasil.

Os quadrinhos, as charges e caricaturas continuariam sendo utilizados como forma de expressar críticas sociais, políticas e econômicas, mas também serviriam para propagar as ideias de governos, fossem eles democráticos ou ditatoriais. Não é exagero, então, afirmar que a caricatura e os quadrinhos ultrapassam as fronteiras da arte midiática para se tornar testemunhos da história, fontes documentais importantes para que possamos compreender um pouco mais dos costumes, da vida e da sociedade inserida em determinado contexto histórico.

Referências bibliográficas

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ARAGÃO, Octávio. A óptica sóciopolítica da arte sequencial de Angelo Agostini em algumas páginas de O cabrião (1866-1867) e da Revista Illustrada (1876-1898). Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2002.

ARAÚJO, Rosa Maria Barboza de. A vocação do prazer: a cidade e a família no Rio de Janeiro republicano. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.

FARIA, Flora de Paoli. O baile de máscaras de Veneza ao Rio de Janeiro: sob o signo do Arlequim. Terceira Margem: revista do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literária. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Centro de Letras e Artes, Faculdade de Letras, pós-graduação, Ano X, nº 14, 2006.

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Referências na Internet

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LEAL, Caroline P. “Porto Alegre carnavalesca”: o entrudo através do olhar imagético. História, imagem e narrativas, nº 5, ano 3, setembro/2007. Disponível em http://www.historiaimagem.com.br, visitado em 22/01/2008.

SILVA, Rosangela de Jesus. Os Salões Caricaturais de Angelo Agostini. In: 19&20 - A revista eletrônica de DezenoveVinte. Volume I, n. 1, maio de 2006. Disponível em http://www.dezenovevinte.net/

Texto originalmente publicado na Revista História, Imagem e Narrativas.

Publicado em 12 de agosto de 2008

Publicado em 12 de agosto de 2008

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