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Persépolis

Pablo Capistrano

A primeira guerra que eu acompanhei ao vivo foi a do Iraque contra o Irã, na década de oitenta. Lembro vagamente (eu tinha sete anos naquela época) de um tanque de guerra na TV, subindo um morro de areia com alguns soldados vestindo uniforme marrom.

Não pense que eu sou alguma espécie de doente mental (como uma criança de sete anos pode prestar atenção em um noticiário de guerra?), mas é que naquela época não havia Discovery Kids nem Cartoon Network; então era inevitável – para um garoto viciado em TV como eu – assistir, além da Sessão da Tarde e do Vale a Pena Ver de Novo (na minha cidade, em 1980 só havia a Globo e a TVU), ao Jornal Hoje.

Minha compulsão por mapas também acabou me levando a imaginar, em um velho atlas branco que minha mãe havia ganhado junto com a Enciclopédia Barsa, as montanhas do Irã e os confrontos envolvendo os exércitos do regime do Khomeini e do (então “guerreiro da liberdade” e defensor dos direitos humanos da era Reagan) Saddam Hussein, pelos desertos orientais. Mas tudo aquilo era apenas uma estranha abstração, como se eu estivesse observando um filme fantástico que falasse sobre um confronto intangível em um mundo alienígena.

Era difícil imaginar que, por trás daquela guerra, daquela estranha e ainda incompreensível revolução, daquele exótico nome (Irã) e daquela bandeira esquisita (verde, vermelha e branca – cores odiosas para um rubro-negro como eu, diga-se de passagem), havia seres humanos.

28 anos depois, chega às minhas mãos a HQ Persépolis,da Marjanne Satrapi. Ela é bisneta do antigo imperador da Pérsia, que foi deposto com apoio dos governos ocidentais pelo pai do antigo xá Mohammad Reza Pahlevi (que por sua vez foi deposto pela revolução de 1979). Marjanne era uma das garotas que viviam do outro lado da tela da TV, naquele mundo distante e abstrato para onde aquela guerra me levava depois que eu chegava da escola.

Sou particularmente fascinado por essa simultaneidade. Quando li a série Persépolis (nela Marjanne conta sua própria história sobre o pano de fundo da revolução e da guerra que assolou o Irã na década de 1980), parei varias vezes para pensar: “o que eu estaria fazendo no dia em que o tio daquela garota iraniana, Anuch, foi preso e executado pelo regime fundamentalista? Ou quando os aviões iraquianos começaram a fazer manobras nos céus de Teerã para iniciar a sequência de bombardeios? Ou quando ela teve que se exilar na Áustria com quatorze anos, por causa da pressão do regime e da ferocidade da guerra?”.

Persépolis tem esse grande mérito: é uma obra que consegue pôr o pessoal ao lado do coletivo e estabelecer um tecido de individualidade em um movimento social e político que geralmente é retratado bem de longe. Através da frieza jornalística das câmeras de TV.

Ao contar a própria história, Marjanne apresenta, em formato de quadrinhos, um painel muito interessante para compreender o que ocorreu no Irã.

Ela humaniza os rostos sem forma dos mortos na guerra, torna vivo o pensamento e os sentimentos das mulheres com a cabeça coberta sob o chaddor e nos convida a entender o que acontece no oriente mulçumano a partir de uma visão que abandona todos os estereótipos ideológicos que a CNN e os fundamentalismos cristãos de Bush Júnior tentam empurrar consciência adentro do Ocidente.

Eu costumo a pensar que o mundo é grande e que a minha vida é só um minúsculo fragmento de quartzo perdido no meio de uma duna imensa. Tem vezes que isso me assusta, outras vezes me conforta. Mas é a arte, como a dos quadrinhos de Marjanne, que de vez em quando me liberta para a estranha impressão de que os sentimentos que nos vinculam podem ser mais fortes do que a distância cultural que nos separa.

Publicado em 12 de agosto de 2008

Publicado em 12 de agosto de 2008

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