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A Estrela Bailarina

Pablo Capistrano

Escritor, professor de filosofia

Crônicas filosóficas

Falam as más línguas que Nietzsche teria dito uma vez: “Eu não acredito em um deus que não dance”. Não posso atestar se ele realmente disse isso, porque não lembro de ter lido em nenhum livro e, como eu tenho essa doença que alguns chamam de “literofilia crônica” (dizem que é hereditário), só acredito naquilo que eu leio. Mas, para não me indispor com quem me disse a frase (não é bom se indispor com as pessoas, você sabe disso, não é?), vou tomá-la como verdadeira.

Bem, o fato é que Nietzsche não poderia ser ateu, em um sentido amplo do termo, ou cético em relação às questões da religião. Se ele fosse à Bahia na época do carnaval e descobrisse que aquele afoxé que toma conta das ruas é, na verdade, um imenso ritual religioso para Exu (uma entidade muito importante do panteão afro-brasileiro), com certeza ele rasparia a cabeça.

Imagine como seria importante para a história do pensamento ocidental uma “Saída de Santo” de Friedrich de Xangô. O fato é que o ataque de Nietzsche à religião, em seus escritos mais ácidos, tem um endereço certo: o acético e cerebral mundo moralista do cristianismo germânico-protestante. E, como não é inteligente reduzir o fenômeno religioso ao modelo europeu de um protestantismo cuja grande chave é a interpretação racional da palavra das escrituras, bem que poderíamos imaginar que o Deus de Nietzsche seja mesmo uma estrela bailarina, um deus da antiga religião.

Na antiga religião, para entrar no reino dos espíritos ou ceder o corpo para que uma força não consciente o domine, é necessário entrar no mundo dos movimentos da dança e do ritmo da música. Hoje, muitas teorias sobre os efeitos neurofisiológicos dos estados modificados de consciência (EMC) indicam que tambores e maracás (marcadores de ritmo) têm papel central no processo de possessão e no transe utilizado nas manifestações da antiga religião. È provável que o som dos tambores altere a atividade neural do encéfalo, harmonizando-a com a força vibratória do som e modificando a consciência daqueles que participam dos rituais.

Viu? Ninguém precisa beber cerveja para ficar chapado quando os filhos de Gandhi passam na Avenida Sete, no carnaval de Salvador. Basta se entregar ao transe e viajar com os tambores. Os Soras, da Coreia, também entendem como nos terreiros baianos cada espírito tem uma melodia característica, situada em uma escala de cinco tons. O xamã Sora dança quando a melodia do espírito é cantada e sua força é evocada pela dança, que é uma forma de comunicação do espírito com os que assistem aos cultos. Há um aprendizado e uma ansiedade de contato em cada gesto da dança. Assim como a melodia de um compositor erudito pode carregar uma gama profunda de significados para quem escuta a execução de sua sinfonia ou para quem toca um instrumento na orquestra, a experiência de assistir à dança de um xamã, ou de um filho de santo em um terreiro de candomblé é bem diferente da experiência de participar do próprio balé.

A dança ensina que o corpo é um templo em potencial dos excessos e dos extremos de uma festa de euforia. Aliás, estar eufórico é estar possuído por um deus, e dançar é a manifestação natural desse tipo de euforia santa. Deve ser por isso que a quadrinha diz que quem não gosta de samba é ruim da cabeça ou doente do pé.

A cabeça e o pé são os extremos do corpo, a parte que nos conecta à terra e o campo que nos liga ao vazio do céu sobre nós. Dançar é aprender a coordenar o corpo em uma totalidade que une a cabeça ao pé, em uma simbiose erótica de força e energia vital. Nos rituais da antiga religião, a força da música, unida ao poder corporal da dança, muitas vezes torna obsoleto o uso de plantas mágicas, porque a própria força hipnótica dos tambores primitivos já cumpre esse papel.

Curioso é perceber como a música europeia, no Renascimento, começou lentamente a abandonar o ritmo e a construir um tipo de base musical erudita que mata o corpo. Até o balé clássico é um tipo particular de tortura que condiciona o caos rítmico do corpo livre e possuído a um padrão de harmonia pensada pelo cérebro do coreógrafo. Tive uma namorada que dançou balé clássico até os quinze anos e que costumava me dizer: “Aquilo é um tipo de tortura”.

A música europeia, como a religiosidade moderna, tentou calar o corpo e submeter as irracionalidades da possessão primitiva a um padrão de contemplação racional que seria o indício de toda grande arte. Por isso, Paulo Francis (segundo dizem as más línguas – você já sabe que eu não li isso, não é?), com todo o seu nazismo alcoólico, teria dito uma vez: “Mil anos de tambores africanos não valem uma nota de uma sinfonia de Wagner”.

Era contra esse tipo de raciocínio que Nietzsche costumava a cuspir sua fúria filosófica. Em um mundo que havia escondido o corpo, abandonado a força vital, criado uma dicotomia entre natureza e homem, não seria possível imaginar que aquele batuque, que aquele fervilhar de quadris, que aquele canto gritado, que aquela euforia, que aquela possessão pudesse ser outra coisa a não ser o sinal de decadência e promiscuidade ou uma coisa que vinha da parte do cão. Como, em um mundo de razão e matemática, alguém poderia dizer que Deus também sabia dançar? O Deus da religião antiga não é um princípio abstrato, uma construção racional ou um modelo matemático. Não é um Deus sem forma e sem corpo, que habitava com sua presença invisível o mundo dos homens. É, sim, uma estrela bailarina, que pode se manifestar concretamente no meio da grande avenida ou no templo, como um Deus que não é ruim da cabeça, nem doente do pé, e que, por isso mesmo, também sabe sambar.

Publicado em 18/08/08

Publicado em 19 de agosto de 2008

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