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Ética e/ou etésios no mundo das regras: mídia e corruptelas para um capitalismo caubói, de Bretton Woods a Michael Milken e os reflexos na brasilidade
Prof. Dr. Eduardo Marques da Silva
Introdução
Para falar sobre resultados que o sociocultural no Brasil adquiriu com a participação do preto escravo africano livre, teríamos que olhar com preocupação para os avanços e conquistas na construção das leis no século XIX em diante.
Observe o que dizem os compositores Zeca Pagodinho e Arlindo Cruz, ao homenagear a sambista Jovelina Perola Negra:
Deixa comigo!... Eu seguro o pagode não deixo cair.
É, sem vacilar, sem me exibir. Só vim mostrar o que aprendi...
Eu sou partideira da pele mais negra, que venho que chega pra improvisar.
Já vi partideira que nunca vacila,
entrando na fila querendo versar.
Mas só um aviso, que meu improviso é sério, é siso,
não é de brincar!
Otário com aço eu mando pro espaço!
Dançando eu faço o bicho pegar!
Deixa comigo! Eu seguro o pagode, não deixo cair!
É, sem vacilar...
A luz do repente é estrela cadente,
chega de repente não dá pra sentir...
Na lei do pagode só versa quem pode.
Quem sabe somar e não subtrair.
Não sou diamante, safira, esmeralda,
não sou turmalina, nem mesmo rubi.
Por onde eu passo, eu deixo saudade.
A pérola negra passou por aqui.
Deixa comigo!... É, sem vacilar...
Já vi partideira que nunca vacila
entrando na fila querendo versar,
mas dou um aviso, que meu improviso é sério é siso,
não é de brincar.
Otário com aço eu mando pro espaço.
Dançando eu faço o bicho pegar. (breque)
Segura malandragem!(breque)
É, sem vacilar...
Na feirinha da Pavuna tem jiló e tem caqui!
É, sem vacilar...
O samba sente saudade de ter você por aqui...
É, sem vacilar....
A Perola Negra dançou com o Baiano,
direto Sombrinha, também com Derly...
É, sem vacilar...
Ao abordar o assunto da lei e do crime no Rio de Janeiro de 1850 até o início da República, tocamos antes na questão de comparações que consideramos importantes, observando o perfil do nosso país em um quadro internacional da época. A Europa florescia, avançando em ideias e novas propostas no campo jurídico. Aqui se caminhava com imensas dificuldades nessa área, porque o que se propunha em termos de legislação criminal estava muito avançado para nossa realidade cotidiana. Sabemos que a lei sempre expressa o desejo da sociedade como um todo e acaba constantemente obsoleta para o tempo, pois não atinge nunca a todos, apesar de ser feita para todos.
De um lado, o escravismo era combatido e entrava em decadência como forma dominante de trabalho e relações sociais; de outro, paralelamente, praticava-se um capitalismo que não se configurava absoluta e plenamente como forma dominante de modo de produção. Havia um processo de transição híbrido no que se relaciona ao campo do trabalho no novo país. A questão da lei e dos marginais criminosos era bastante distinta, pois se inseria e se relacionava nesse e com todo esse quadro.
Para a cidade do Rio de Janeiro convergiam todos os problemas do Império e da futura República a se criar sucessivamente. Tinha um governo que cultivava uma certa estatolatria, pois a construção de seu Estado Nacional tinha a participação direta das classes dominantes. As discussões sempre ficavam restritas a essas elites dominantes, que detinham o poder através do controle dos mecanismos de funcionamento do Estado. Nessa estatolatria havia a possibilidade de viabilizar a tortura como meio de obter a confissão dos presos, embora saibamos que isso findara na Europa desde o término da Revolução Francesa. Enquanto lá era desenvolvida uma forma de organização participativa, aqui tal comportamento servia para a manutenção do status quo da classe dominante.
A Europa, em termos de jurisdição, teve o Marques de Beccaria, que durante o século XVII levantou questões polêmicas e novas. Falou sobre a entrada da Justiça no campo da ciência. Já se falava da necessidade de estabelecer o princípio da razão para as normas penais (Ferri, 1926, p. 638). Começava-se a construir com ele o delito como ente jurídico, com validade geral das normas penais, independentemente da personalidade dos indivíduos singulares, com a técnica exceção da grande divisão entre imputáveis e inimputáveis. Com ele fazia-se a correlação entre o delito e a pena.
Assim, a justia na Europa do século XIX ficaria profundamente marcada pela razão concreta, que ainda não havia sido acometida pela sombra da razão sensível, a futura holística no mundo científico. Havia grande valorização do homem em termos de suas práticas concretas em sociedade. Discutiam-se questões fortemente explosivas. O cenário europeu era palco de figuras como Enrico Ferri, homem importantíssimo que, embora não tendo sido contra os direitos humanos, insurgia-se contra o que chamou de excessos irracionais do individualismo, capazes de sacrificar as legítimas garantias da sociedade frente ao delito e a quem o praticava, quando apresentava a repulsa à prática da estatolatria. Pessoas como Euzébio Gomez, da escola positivista, que, com sua proposta, influenciava a época, contribuindo para solucionar a problemática da justiça com propostas como: individualização da pena; da periculosidade e da medida de segurança, esta última sem preocupação punitiva, mas tendo por fim a prevenção do crime e especialmente da sua reincidência. Nesse particular, mais importante que o ato incriminador era o exame da personalidade do seu autor. Tratava-se da protodefesa social. Abria-se, assim, o caminho para a aproximação entre os juristas e os criminólogos, o que se efetuaria em 1889.
No Brasil, com a produção de um código criminal e processual avançadíssimo, havia choques e contradições variadas. O elemento criminoso quase sempre era escravo, que só era elevado à categoria de cidadão quando criminava, ou oriundo da pós-escravidão; poucos eram livres, donos de si! Tais elementos faziam parte da sociedade subterrânea, a sociedade paralela, de que falou Schmith (1990, p. 261).
No caso do escravo, tínhamos importantes contradições. Por exemplo: ele era tratado como uma coisa, um objeto, uma mercadoria; mesmo assim, podia ser julgado como cidadãos. É claro que, uma vez livre, poderia assumir simbolicamente o retrato do desejado mimeticamente dele pelo sistema na pós-escravidão. Por isso hoje temos claramente atitudes que lembram essa esperada mímica de honestidade entre os seus descendentes. Podemos ver na letra do samba para Jovelina Pérola Negra, já mencionado, a vociferação de comportamentos semelhantes, como se era de esperar: “Deixa comigo!... Eu seguro o pagode, não deixo cair. É, sem vacilar, sem me exibir, só vim mostrar o que aprendi”, como se dona da situação fosse.
Como se fazia essa transferência jurídica? O escravo não era escravo quando praticava um ilícito, ou um ato criminoso? Ele acabava sendo transformado rapidamente em ser humano, cidadão, incluído na sociedade da ordem! Era visto, então, como um elemento participante da sociedade, que estava perdendo seus fabulosos direitos adquiridos como se os tivesse enquanto era escravo. O numeroso quadro de favelização que se vive hoje pode demonstrar o quadro da herança injusta entre nós latente e que se reverbera.
O escravo, à luz do sistema, era mera categoria de trabalho compulsório; ao ser vendido ou comprado, sua figura jurídica adquiria atribuições reais, ou seja, a condição de ser mera mercadoria, um elemento coisificado. Assim, a condição de cidadão a que aludimos era uma terceira figura atribuída a ele no Brasil.
O Direito, no século XIX, avançava a passos largos na Europa. As discussões de grandes questões, como a preocupação em aprofundar o que hoje chamamos Nova Defesa Social, a expressão moderna da conquista da Revolução Francesa, e da antevisão de Beccaria se faziam notar. O movimento moderno de política criminal de defesa social nasceu de uma reafirmação dos direitos do homem, da dignidade do ser humano e de sua proteção efetiva na comunidade social. É o resultado, por sua vez, da corrente libertada e humanitária de 1789 e da tradição cristã em sua vocação humanista.
A Europa brilhava com novas ideias e aqui se notavam fortes reflexos disso, mas não havia aplicabilidade, uma vez que a comunicação com a arraia miúda, como se dizia no Império, traduzia sempre um comportamento autoritário e mandonista, mesmo nos centros urbanos. No Rio de Janeiro de todos os Brasis havia uma distância entre o que determinava a lei e o que apresentava a realidade dos fatos na relação polícia/justiça, e o subterrâneo da sociedade paralela.Quase sempre a violência imperava; mesmo o jogo entre a reação e a resistência era mais acentuado. Apesar disso, nosso código criminal era um dos mais avançados para a época, e foi base para muitos outros da América Latina. O mundo das leis, principalmente na Europa, começava a entrar na difícil e complexa discussão do Direito Social e Criminal.
Na medida em que avançavam os movimentos em favor do abolicionismo e do imigrantismo, despejava-se grande contingente de pessoas desocupadas na cidade do Rio de Janeiro. As dificuldades de ter plenamente as práticas capitalistas em funcionamento garantiam um cenário bastante complexo. Tínhamos uma situação sui generis no que se refere aos avanços conquistados pela criminologia e sua aplicação, levando em consideração inclusive as contribuições vindas da Europa, todas religiosamente mimetizadas.
Tanto no Império como na fase republicana, o Brasil continuou a apresentar sinais de que possuía um Estado capturado pela classe senhorial e capitalista,primeiramente latifundiária e escravista e posteriormente industrial nova ou herdeiras, estas últimas, na maioria das vezes, de famílias dos antigos latifundiários também, muitos deles antigos e tradicionais escravistas que, por hábito talvez desdobrado da velha tradição mandonista local, no e do ‘tudo’, ou quantificável em uma visão holística da vida, acabava pondo muitos dos ex-escravos, agora na pós-escravidão, a seu serviço. É uma forma de recolocação mercadológica, mas eivada de contradições choques e preconceitos na nova vida que se lhes era oferecida. Mas, como diz o samba citado, a luz do repente é estrela cadente, chega de repente, não dá pra sentir... Na lei do pagode só versa quem pode. Quem sabe somar e não subtrair. Não sou diamante, safira, esmeralda, não sou turmalina, nem mesmo rubi. Por onde eu passo, eu deixo saudade. ‘A pérola negra’ passou por aqui.
Os discursos dos empregadores, movidos pelo jogo do capital, vinham sempre embasados na explicação de mudança do perfil sociocomportamental. O que poderia ser uma forma também mimética de se proceder diante do que era surdo e calado. Como um corpo calado,da professora Tereza Toríbio (2001).
O mais denunciador de tudo é que, com o quadro de miséria geralmente vizinha ou atuante na vida dos oriundos da escravidão, tudo era mais difícil de encontrar solução. Coitado passaria a ser a palavra mais ouvida e dita pela boca dos novos empregadores quando fizessem referências sobre esses protoprofissionais rústicos, como domésticas, sem carteira de trabalho assinada e garantias trabalhistas, principalmente nas antigas fazendas do interior, geralmente ex-agrícultoras brasileiras que se reverberaram nos centros urbanos, como o grande Rio de Janeiro e, mais especificamente, o fluminense. Os serventes de pedreiros, e muitos outros que vagavam pela informalidade econômica.
Fatalmente seu futuro poderia ser o de viver de uma economia subcapitalizada (Sotto, 2001). A razão maior é que a economia da e na informalidade mostrava sua mais terrível face entre nós: seu próprio legal, sua própria legislação clandestina! Notemos que havia até uma dinâmica própria em seu conjunto. A autoridade era também cristalina, como podemos ver no samba citado aqui. A economia subcapitalizada (Sotto, 2001) mostrava seu rosto dentro de sua dinâmica verdadeiramente rica, múltipla e variada de conceitos e pré-conceitos socioculturais.
Já vi partideiro que nunca vacila entrando na fila querendo versar, mas dou um aviso, que meu improviso é sério, é siso, não é de brincar. Otário com aço eu mando pro espaço. Dançando eu faço o bicho pegar... É, sem vacilar, sem me exibir, só vim mostrar o que aprendi.
A pós-escravidão trouxe um colorido verdadeiramente diferenciado para todos os egressos da escravidão; apresentava-se agora envolta em uma ambiência cotidiana marcada pela ‘sombra’ de uma nova modalidade de medo. Paralisavam-lhes os sentidos da vida social ante o novo desafio oferecido pela vida no surpreendente jogo do capital. Talvez redefinindo-se por um filete cultural também novidadeiro e absolutamente inesperado.
E. Thompson diz que a lei e a legislação podem ser vistas instrumentalmente, tanto medindo e reforçando relações de classes quanto em termos ideológicos, legitimando a estrutura de classe já existente, com critérios lógicos, com referência a padrões de universalidade e de equilíbrio (Thompson, 1974, p. 25-29). O autor tem posição acertada no tocante à realidade brasileira, basicamente do espaço geográfico de que tratamos aqui e principalmente quanto ao aspecto ideológico da lei. Ela permitia, de fato, reduzida mobilidade social, pois preservava a existência de um Estado capturado. Suas exigências e o péssimo cumprimento de leis conjugadas revelavam tendências a proteger uns e desproteger outros, colocando em dúvida os procedimentos e, em última análise, preservando os interesses dos captores.
Para Genovese, a legislação constituía o principal mecanismo para preservar a hegemonia das classes dominantes; ela não pode ser estudada como um fenômeno passivo; no caso da sociedade escravista e pós-escravista, ela se tornava um efetivo instrumento de defesa dos interesses da classe senhorial no Estado. Constituía força ativa entre a classe captora; as reivindicações daqueles que dominavam deviam ser necessariamente acomodadas dentro dela (Genovese, 1974). Verificamos também uma preocupação com a manutenção do poder que a lei garante para o setor social que controla o Estado, além de medir as relações entre as classes. A legislação da época possuía a marca da exclusão social, fortemente tendenciosa no Brasil escravista, por motivos óbvios, e pós-escravista no sentido de reverberação.
Entretanto, no que se relaciona ao crime, nosso Código Penal de 1931 foi considerado um avanço para o século do não!, o século XX, servindo de modelo para todos que surgiram depois na América Latina. Ademir Gebara diz também que a lei servia como mediadora e reforçadora das relações de classe, teoricamente falando, mas que também legitimava essas relações. Constatamos que elas apareciam sempre como reflexo do tipo de realidade que se tem no país, cuja multiplicidade das relações foi e em alguns casos específicos é marcada por uma pesada e ilusória, diríamos passiva, compulsoriedade de trabalho, em que seres humanos apresentaram-se como se ainda fossem simbolicamente reduzidos àquelas ínfimas condições sociais. Talvez seja o reflexo dos cacos do “espelho partido da História”, de que tanto falou Evgen Bavcar (Katz, 2003; Bavcar, 2003); de coisas como uma pseudopermanência entre nós da sombra do velho modelo de escravo/mercadoria, passávamos então a atuar como trabalhadores descartáveis do e no moderno jogo do capital. Afirmamos que a lei se aplicava quase sempre para garantir a permanência dos poderosos, mantendo a pseudopermanência de um status quo adquirido há muito.
Levando-se em consideração que o escravismo colonial que perdurou até o fim da escravidão como modelo, acreditamos que as leis da época eram um reflexo do conjunto de interesses das camadas sociais, que capturavam a administração do Estado. E também era fruto da preocupação de legitimar a já decadente prática da velha escravidão no seu lado meramente econômico, que, além de mediar e legitimar esses interesses, tinha como característica preceder o costume devido natureza da colonização (Gorati, 1972, p. 202-203). Tudo isso explica a estrutura de controle e de mandonismo instaurada no Brasil durante o período imperial, uma vez que as leis não exprimiam a vontade da totalidade coletiva dos segmentos sociais envolvidos, como se surgissem do consenso de representantes de todos os setores da sociedade.
As classes senhoriais, condutoras do processo junto com a realeza e preparadas para exercer forte influência nas tomadas de decisão, faziam-no sempre de tal forma que sua pressão, carregada de certo nível de desumanidade, promovia aplicações da lei, considerada naquele tempo expressão da vontade dela mesma, dentro da sociedade como um todo. A existência de um precário e diferente referencial conceitual ético-social sobre crime e suas variações no Brasil acabava por permitir atos de violência que se apresentavam cada vez mais extremados.
O Segundo Reinado, no que se refere ao aparelho administrativo de poder, aproveitando-se de uma forma de esclarecimento marxista, na segunda metade do século XIX sofria pressões de toda ordem, através de posições políticas antagônicas, como a novidadeira republicana que, embora na clandestinidade até 1870, conseguia reunir todos aqueles que poderíamos denominar insatisfeitos, grupo em que se destacavam basicamente os cafeicultores. Estes se mostravam francamente contrários ao regime vigente, esmeravam-se em mostrar sinais que representassem e apresentassem sempre o que estava ultrapassado no governo.
O conceito de crimeera fruto primariamente dos interesses dos segmentos liderantes da vida socioeconômica do país, ou seja, do lusitanismo. Eles não absorviam as novas conquistas que já estavam sendo usadas na Europa, econômica e filosoficamente; era a mimese mal-feita e, por isso mesmo, geradora de fieis seguidores na sociocultura paralela,como se assim o fosse realmente vivida na prática. Um certo sentido de empréstimo de seriedade, mas eivado de uma ebulição de rancores incontidos que, malandramente, ludibria-nos os sentidos.
Eu sou partideira da pele mais negra, que venho que chego pra improvisar. Já vi partideiro que nunca vacila entrando na fila querendo versar. Mas só um aviso, que meu improviso é sério é siso, não é de brincar! Otário com aço eu mando pro espaço! Dançando eu faço o bicho pegar!
No Segundo Reinado, já se podiam ouvir reclamações de uma mais participativa camada social organizada no poder, principalmente os cafeicultores. Por um lado, envelheciam práticas escravistas de produção no tempo porque extemporâneas; por outro, dava-se cada vez mais espaço para o desenvolvimento, talvez tímido, do capitalismo liberal e suas crises. Iniciávamos um novo tempo, pois o capitalismo se transformava velozmente, apresentando crises como a de 1929. O nazifascismo nasceria no alvorecer do século XX, o que, ideologicamente, também foi trágico. Houve ainda o crescimento de uma economia subcapitalizada (Sotto, 2001) na Europa, mas de desenho social e sinais tortuosos, cujos reflexos só poderíamos verificar muito tempo depois – talvez na segunda metade do século, e ainda assim em alguns países.
O fenômeno do crescimento acelerado de coisas como a mídia, valendo-se dos avanços tecnológicos da época, tornava o que era definitivamente local em inexorável e absolutamente global, antecipadamente. Juntos e acrescidos das corruptelas do próprio sistema, ajudava mais ainda no agravamento de um tudo no todo, agora bastante complexo. Tal turbilhão de acontecimentos e fatos históricos da primeira metade do século XX, que se sucediam em seu multiplicar de tragédias político-sociais e econômicas multifacetadas, chegou até os anos 1970 com um perfil mais acabado e definido de mundo.
Mídia e corruptelas para um capitalismo caubói: de Bretton Woods a Michael Milken
Para começo de conversa, não entendo de mídia nem percebo o que se quer com o emprego do termo. Ora, é uma corruptela comsotaque anglo-saxão da bonita e expressiva palavra latina media. Ou talvez neologismo. Além do mais, reduz ao singular o que era plural,tanto emlatim quanto em inglês. Cifra-se e se oculta a diversidade em troca de uma unicidade aparente. Recorro aMuniz Sodré em A verdade seduzida para considerar cultura o modo de relacionamento humano com seu real.
Para organizar meus pensamentos, lembro as raízes dos três termos fundamentais do que presumo vir a ser um diálogo: comunicação, subjetividade e cultura.
Cultura vem do verbo colere (habitar, cultivar). As influências de culturas diversas são essenciais aos avanços de um povo, de uma comunidade. Mas influências não devem ser confundidas com substituição de identidades. A história humana, e não apenas ela, tem mostrado isso ricamente. Somos capazes de digerir e recriar o que incorporamos. Por isso, a pérola da afro-descendêncianum processo transcultural livre e insubmisso, mas para isso é fundamental que a diversidade tenha espaço e tempo para manifestar-se livremente, como ocorre no Brasil com seu caldo de cultura geral e fluminense especificamente. Na estratégia dominante, os meios de comunicação são essenciais para garantir a hegemonia eurocêntrica, na versão anglo-saxã dos EUA, por exemplo, embora aparentem manifestar e expressar o multiculturalismo das populações ou corpos socioculturais autônomos incluídos.
O enraizamento da dominação econômica que implica uma dominação também cultural não é possível sem a abdução de identidades, que se configura na dominação cultural, verdade conhecida e empregada já há milênios entre nós. No entanto, nunca meios técnicos e o próprio universo tecnológico – que é fruto do desenvolvimento científico por excelência – estiveram tão propícios a essa estratégia com tal economia de recursos e garantia de controle sobre sua aplicação.
Hoje se busca incessantemente, nos vários campos, substituir ou subsumir a troca presencial de saberes e emoções no tudo do todo, tanto transmissores quanto produtores do cultural e do educacional com claros sinais de autonomia, por simulacros, limitados pelas próprias características dos veículos e da linguagem dos meios. A relação interpessoal e local, essencial ao ato cultural autônomo, vê-se restringida a pequenos grupos, sem espaço nos eventos de mercado, da medida do estético e da sabedoria, para este admirável mundo novo, em que vale tudo e nem tudo vale.
Mídia e a novidade do capitalismo caubói: de Bretton Woods a Michael Milken e o panorama mundial relacionado com o brasileiro
Em 1944, os delegados das potências aliadas reuniram-se no Mount Washington Hotel, em Bretton Woods; em vez de reviver o padrão ouro, concordaram que as moedas dos países deveriam ser fixadas em relação ao dólar, sendo este conversível em ouro a trinta e cinco dólares a onça. Era um novo sistema e direcionamento econômico que se desenhava no mundo.
Para obter sucesso, esse novo sistema dependia do controle da movimentação de capitais entre os paises, e obviamente seria marcado por uma profunda antipatia dos especuladores em moedas. Com isso, a liberdade do especulador seria severamente restrita pelo sistema de Breton Woods, chegando ao ponto de abrir correspondências para deter os fluxos indesejados de moeda.
No inicio de 1946, depois que o mercado futuro de grãos havia sido limitado pela escassez, o presidente Truman dizia que os preços dos grãos não deviam estar sujeitos à cobiça dos especuladores, tachando-os de mercadores da miséria humana. Algum tempo depois, em 1961,Margareth Thatcher, pelo lado da Inglaterra, durante um debate na Câmara dos Comuns, dizia que eram “os especuladores em ações que queremos atingir” – as pessoas cujo negócio é comprar e vender ações não com o objetivo de mantê-las por suas propriedades produtoras de renda, mas para viver do lucro que obtêm com transações, ou seja, negócios.
No entanto, os especuladores tomaram-se uma espécie de bodes expiatórios bastante convenientes para o fracasso político de então, desintegrando os vários sistemas monetários das economias conhecidas como formais feitas pelos governos. Eram até culpados pela inflação e deflação da época. Lênin e Stalin os amaldiçoaram pelas tribulações econômicas da URSS, e o jogo do velho capital continuava sua dança. Durante a Crise de Suez, em 1956, os especuladores chegavam a fazer com que o governo inglês desvalorizasse sua libra esterlina. Mas, após quatro anos, Richard Nixon, pelos EUA, suspendeu a perene conversibilidade do dólar em ouro, pondo fim ao sistema de Breton Woods.
A Grã-Bretanha, em setembro de 1992, foi mais uma vez forçada a desvalorizar sua moeda e abandonar o mecanismo da taxa cambial. A crise asiática de 1997 fluía, e o governo da Malásia afirmava que, por trás dos especuladores, havia um projeto judeu e ameaçou tratar a especulação como um crime grave.
Devido à guerra aos especuladores, houve uma mudança de atitude em relação ao modo de ganhar dinheiro, segundo Keynes, um mundo de prosperidade tornaria o lucro extinto, mas a mudança ocorreu no alicerce filosófico de toda uma era: a mudança de estilos do homem de negócios foi acompanhada por uma mudança nas prioridades das empresas. A busca individual da riqueza fora substituída por um ideal empresarial, mudanças que já eram vistas na década de 1950. Segundo Heilbroner, a acumulação adicional de riqueza no futuro próximo poderia gerar uma nova motivação econômica para substituir a conhecida mão invisível de Adam Smith. Era o capitalismo liberal apresentando sua novidadeira leitura do campo econômico.
A Revolução Financeira teria ocorrido no fim do século XVII. John Law percebeu que o valor de todo dinheiro, incluindo o ouro, residia essencialmente em um consenso; portanto, introduzira o papel-moeda na França em 1920. Transformar o papel em dinheiro era um ato de fé, um milagre da eucaristia nesta época (Thompson, 1974).
Após o fim do sistema de Bretton Woods, o dinheiro tomou-se apenas um produto da imaginação, sem peso. Todos os valores em moeda seriam um reflexo de seus valores futuros percebidos: o presente seria tão determinado pelo futuro quanto o futuro pelo presente. E o grande árbitro desse confuso sistema era o especulador.
Poucas foram às pessoas conseguiram ter essa percepção; Walter Wriston, presidente do Citicorp, declarou que o padrão de informação substituiu o padrão-ouro como base das finanças mundiais. Para esse tipo mudança seria necessária uma nova Revolução Financeira que foi facilitada pelos avanços na tecnologia de informação. A partir de 1969, as transações bancárias passariam a ser operadas em máquinas, tornando o mercado global eletrônico muito mais veloz. A informatização dos mercados financeiros prosseguiu a passos acelerados, absolutamente inebriantes para aqueles tempos. Entre os importantes avanços nas comunicações financeiras incluem-se a introdução das negociações naNasdaq.
A Internet possibilitaria o acesso dos lares ao mercado acionário, onde prosperou. Os aparelhos projetáveis fizeram com que os investidores pudessem negociar em qualquer parte do mundo, em tempo real. Iniciavam-se os tempos do domínio modista do just-in time! Isso acarretava o surgimento dos day traders, ou seja, especuladores amadores que operavam principalmente de suas casas e fechavam suas posições no final de cada dia de negociações. Tudo era não só novidadeiro, mas febril e calado.
Em 1988, nos EUA, já havia cinco milhões de americanos interligados com conta em corretoras on-line. Com esse novo perfil do capital e do capitalismo renovando-se novamente de maneira virulenta por todo o planeta, tudo se tornava estonteante e aparentemente incontrolável para países como o Brasil, que vivia mais uma fase de difícil acomodação e rearrumação social, com a complexificação em meio a uma pós-escravidão que urgia solução imediata.
Acrescentemos a tudo isso a ausência de uma relação positiva entre o avanço das informações e a sagacidade financeira, que era mais evidente no Japão durante a década de 1980, quando os investidores tomaram uma das piores decisões de investimento da história recente. Não ficava evidenciado de forma clara que o avanço nas comunicações tivesse produzido qualquer melhora no desempenho dos investidores nacionais.
A ideologia econômica liberal se rejuvenesceu com Bretton Woods, a ultima significativa realização de Keynes antes de sua morte, em 1946. No inicio da década de 1970, o keynesianismo sofreu severas críticas, que durariam duas décadas. O economista Milton Friedman, em seu trabalho contra a ortodoxia keynesiana, ressuscitava o liberalismo econômico do século XIX: afirmava que o mercado era autocorretivo, ou seja, ele mesmo encontraria suas próprias saídas, e que intervenção do Estado era algo meramente dispensável.
A partir desse pressuposto, argumentava que toda intervenção do governo, por mais bem intencionada que fosse, teria efeitos danosos. Para ele, os mercados eram a melhor maneira de distribuir informações e fornecer incentivos, independentemente das iniquidades que pudessem emergir. Em uma entrevista em 1973, disse que todas as sociedades estariam estimuladas pela cobiça e que o problema da organização social é como se constituir de modo que a cobiça cause o menor mal. O capitalismo seria esse tipo de sistema.
Com isso, não só defendia o especulador da acusação de causar a Grande Depressão como demonstrava simpatia pelo seu papel econômico. Friedman procurou mostrar que a ação dos especuladores desestabilizadores, que vendiam quando os preços estavam baixos e compravam na alta, não produziria efeitos colaterais danosos à economia, proporcionando uma perda inevitável de dinheiro, enquanto os que negociavam com eles ganhavam o que podiam. Um processo de darwinismo social acabaria por erradicar o especulador desestabilizador.
Friedman, junto com o outro economista, formaria uma nova linha de pensamento econômico. Com a Hipótese do Mercado Eficiente – HME (Hobsbawn, 2002), contribuiu para a revivência do liberalismo econômico. Os defensores do HME ressuscitaram ideias sobre o equilíbrio nos mercados financeiros que remontam à assimilação, por Adam Smith, da teoria newtoniana do equilíbrio: a mão invisível, sendo um análogo do relojoeiro divino e ao conceito de imanência da racionalidade no mundo, do outro famoso pensador, Leibniz.
Durante a década de 1970, o HME propagou-se pelas universidades e faculdades americanas, enquanto as empresas e os bancos, o capital financeiro, começava a aplicar variadas técnicas financeiras em suas suposições do mercado. No fim da década, essa hipótese tornara-se a ideologia prática do capitalismo financeiro.
Dessa forma, a escola dos economistas da crença do mercado eficiente tinha grande simpatia pelos especuladores. Se os mercados eram eficientes e estavam em constante equilíbrio ou em busca dele, e se os preços eram sempre aleatórios, então as atividades deles não podiam ser irracionais ou absolutamente irracionais em sua motivação, tampouco desestabilizadoras em seus efeitos. Friedman descartou a ideia de que o excesso especulativo causou o colapso econômico de 1930. Mas nem todos se convenceram, como foi o caso de Warren Buffett, que observou – acreditamos, corretamente – que o mercado frequentemente era ineficiente e que, para os teóricos o dito mercado, sua eficiência era uma conclusão incorreta.
Assim, essa nova era do papel-moeda, liberalismo econômico e tecnologia da informação gerou uma riqueza de criatividade financeira tão ampla e abrangente quanto à revolução financeira anterior, na virada do século XVIII. Essa atividade mais se evidenciou na esfera dos derivativos financeiros (derivativo é um valor mobiliário criado por contrato). Nascia assim, o que a historiografia econômica denominou Revolução dos Derivativos.
Na forma de contratos futuros e opções sobre ações e commodities, os derivativos são tão antigos quanto o próprio capitalismo. Tinham normalmente os preços reduzidos, sua aquisição era mais fácil do que uma ação real e, com isso, acreditava-se que davam margem suficiente para a ação do especulador. Contudo, governos tentaram proibir as transações com os derivativos a partir de 1734. Na nova era, o velho estigma havia sido removido, e os derivativos emergiram na linha de frente da inovação financeira.
Em 1967, Friedman tentou apostar na queda da libra esterlina antes da desvalorização forçada pela Grã-Bretanha, mas foi impedido pelos capitais financeiros, na figura dos bancos de Chicago, com a justificativa de que tal ação poderia incentivar a especulação. Posteriormente, Friedman publicou o relato dessa experiência absolutamente frustrante.
Após o colapso de Bretton Woods, Friedman, por intermédio de Mellamed, publicou um artigo justificando a criação de um mercado futuro; ele afirma que os contratos futuros para moedas teriam efeito estabilizador sobre as taxas de cambio e impulsionariam o desenvolvimento de outras atividades financeiras, o que se concretizou no novo estabelecimento do Internacional Monetary Market, na Merc, inaugurado em 1972. Em menos de um ano, foi aberta a Bolsa de Valores de Chicago. Com ela, as portas se abriam para outros novos mercados de derivativos, entre eles o de contratos futuros de ouro em 1975, o de futuros da Government National Mortgage Association em 1975, o de futuros de obrigações do Tesouro em 1976, o de futuros de petróleo bruto em 1998 e o de opções de moedas em 1982. Os anos 1980 foram frenéticos para a especulação de e sobre o capital. Para o Brasil, que se arrastava com pesados e complexos quadros socioculturais a serem resolvidos, como a questão da afro-descendência na pós-escravidão ainda na mais absoluta exclusão social, havia agora agravantes maiores como a famosa história do esquecimento como companheira de forno e fogão, literalmente.
Em 1976, aMerc introduziu um contrato futuro de taxas de juros em eurodólar, uma inovação significativa. Esse derivativo, impossível de entregar, foí legalizado, com retrospectividade de cinco anos. Com isso, a revolução financeira ganhava ímpeto e força adicional para a década de 1980, quando Sidney Homer, especialista em obrigações, teve a ideia de separar (Slripping, no jargão técnico), as obrigações de seus dividendos e vender os dois mobiliários separadamente. A coisa toda então se desenvolveu. Essa divisão permitia aos capitais financeiros e/ou bancos promover a transformação de diversos ativos, antes com liquidez, em papéis negociáveis, a securitização (de acordo com o Aurélio, concernente a seguro). Logo logo a ideia foi aplicada ao gigantesco mercado de hipotecas garantidas pelo governo norte-americano, no qual os juros e os pagamentos do principal da dívida eram divididos e negociados como obrigações separadas.
Outros novos produtos financeiros foram criados: em 1981, o Salomon Brother organizaria o primeiro swap, ou troca de dívida entre o Banco Mundial e o então FMI. A inovação financeira prosseguia por toda a década de 1980, com uma multidão de novos instrumentos financeiros, Londres sendo considerada uma fonte de criatividade nesses instrumentos.
As opiniões diferiam quanto à questão de a proliferação dos novos instrumentos financeiros ter aumentado ou não a especulação. O professor Merton Miller afirmava que os derivativos seriam matérias-primas essencialmente industriais, criadas para lidar com a incerteza e a volatilidade financeira subsequentes ao fim de Bretton Woods e a preocupante e premente crise do petróleo eclodida em 1974. Contudo, se foi feito um hedge (barreira, proteção, estabilizador; Aliandro, 1978, p. 122) para uma posição em derivativo, haveria segurança, como se fosse um seguro contra perda; caso contrario, seria altamente especulativa.
Assim, em meados da década de 1970 houve grandes desastres com os tais derivativos. Os prejuízos de mais de 1,5 bilhão de dólares em várias empresas tiveram como causa a má gestão de transações com hedge feitas de boa fé e até especulações sem hedge e não autorizadas. Os especuladores tiveram sua participação em tudo, como na quebra do Banco da Inglaterra. O professor Miller descarta escândalos como esse com os derivativos como meras falhas administrativas, irrelevantes. Contudo, não podemos descartar tão desastrosa experiência.
Seguiu-se, então, a revolução Ronald Reagan. Só se percebeu todo o potencial da revolução financeira quando as condições políticas foram adequadas. Demorou a década de 1970 toda para o reabilitar da ideologia do livre mercado e para ela se propagar das universidades para o mundo político. Friedman, economista acentuadamente político, teve papel fundamental em todo esse processo. Em 1960 era consultor dos candidatos à presidência no EUA. Na década de 1970, suas ideias foram adotadas pela britânica Thatcher, na época líder da oposição conservadora da Grã-Bretanha. Em 1976, Friedman ganhou o Prêmio Nobel, o economista mais conhecido do mundo. Por dois lados: Thatcher, eleita em abril de 1979, e Ronald Reagan, eleito em novembro de 1980, estavam prontos para pôr em prática a filosofia econômica desse economista. Formava-se, assim, uma forte união pela não-intervenção do governo nos assuntos econômicos; o julgamento do mercado era soberano.
Reagan teve como principal medida revogar a ação antitruste de dez anos contra a IBM, permitindo o declínio da estrutura reguladora da década de 1930, que fora elaborada para contrabalançar os excessos especulativos. Ele pregava, como Friedman, antipatia keynesiana pelo lucro e incentivava o ato de enriquecer. Com isso, Reagan reduziu os impostos de pessoa jurídica e física, e o papel de empreendedor foi exaltado.
Em 1981, houve declínio no governo Reagan, salários baixos, sindicatos fracos e crescentes desigualdades de renda. Portanto, somente os operadores financeiros puderam enriquecer. O resto da população poderia ter somente parte da riqueza se os operadores viessem a gastar. Daí a ascensão do trader. A década de 1970 foi marcada pela instabilidade financeira crônica; moedas flutuantes, inflação crescente, políticas econômicas de stop-go e taxas de crescimento declinantes produziram indesejável volatilidade, que tornou o mercado acionário um lugar perigoso para os investidores. O boom das cinquenta melhores empresas em 1972 teve o valor alto demais. E teve como consequência um drástico declínio do mercado, com inflação alta e baixo crescimento; as ações não despertaram interesse especulativo do público.
Os únicos que se arriscavam investiam em commodities e metais preciosos, porque ofereciam o melhor hedge contra o fenômeno da inflação. Uma pessoa que aproveitou essa oportunidade e investiu em 1978 US$ 1.000 no mercado futuro de gado, soja e suínos, e em dez meses passou a ter US$ 100.000, foi a senadora Hillary Clinton.
Em janeiro de 1979, após a invasão soviética do Afeganistão, o preço do ouro subiu para US$ 875/onça. A formação de pool da prata, com sua acumulação posteriormente, fez o mercado daquele produto subir dez vezes o seu valor; porém a intervenção do Federal Reserve lancetou a bolha e o preço da prata tomou a cair em 1980, acarretando prejuízo de mais de US$ 1 bilhão e pondo ao fim ao pool de prata instalado pelos irmãos Hunt.
Vários fatores institucionais contribuíram para a ascensão do negociador profissional da bolsa, o trader. Na década de 1970, vários bancos de investimentos americanos, incluindo o Morgan Stanley, tornaram-se companhias de capital aberto. As empresas passavam a ter acionistas desconhecidos, assumindo responsabilidade maior perante os acionistas, tornando a especulação institucionalizada, conhecida como proprietary trading, maximizando os lucros rápidos e os gordos dividendos. Os EUA adquiriam um perfil cada vez mais dinâmico na sua vida econômica, que respingaria em seus vizinhos latino-americanos.
No inicio da década de 1980, os negociadores estavam literalmente governando Wall Street; o negociador também prosperou fora do mundo dos bancos de investimentos; os avanços nas telecomunicações impeliram o crescimento dos fundos hedge, sociedades privadas de investimentos que fugiam da regulamentação da CVM. O mais bem-sucedido desses fundos, o Quantum Fund, criado em 1973 por George Soros, financista natural da Hungria, produziu retornos anuais médios superiores a 20% e 25% em relação a suas posições alavancadas em diversos mercados de ações, obrigações e moedas.
O negociador foi um fenômeno internacional, um produto da chamada desregulamentação e da globalização econômica. Os negociadores introduziram um clima verdadeiramente frenético e brutal no mundo das finanças. Na era das negociações globais, vinte quatro horas por dia, não dormiam o dinheiro nem os que o buscavam freneticamente. Deu-se então a ascensão de Michael Milken no inicio da década de 1980; os negócios voltariam a serem venerados, sob a influência de Reagan. Nos mercados de capitais, a desregulamentação estava substituindo a supervisão. A busca individualista da riqueza tomava o lugar dos objetivos comunitários do pleno emprego e da igualdade distributiva.
Nos primeiros dezoito meses do governo Reagan, o mercado ainda estava reprimido, devido às altas taxas de juros, que foram elevadas sem precedentes, mas com objetivo de eliminar a inflação. Em 1982, foi reduzida a taxa de descontos, a inflação foi derrotada, e com isso houve sinais de alta no mercado. Enquanto isso, na Grã-Bretanha, Thatcher dava início às privatizações, febre que também tomou o Brasil por pura mímese de país satélite; por intermédio deReagan, os EUA as transformariam em companhias limitadas. O propósito da aquisição de alavancagem,que recolocava velhas e falidas empresas no mercado produtivo e vivo, era adquirir uma empresa com o máximo possível de dívida, sendo a mesma mais os juros para serem pagos pelo fluxo de caixa gerado por ela, o mais breve possível, a fim de atingir o nível estipulado e pondo-a, na maioria das vezes, à venda. Não podemos negar que nesse particular o capitalismo se apresentava variado e rico em novidades, sempre inventando e se reinventando também. Fica a dúvida se ele era um sistema, um jogo, um jogo sistêmico, ou um sistema de jogos econômicos.
Em 1983, todos tinham o conhecer das transações; porém, dezoito meses antes, o ex-secretário do Tesouro, William Simon, e um sócio compraram a Gibson por US$ 1 milhão mais uma dívida de US$ 79 milhões. Contudo, quando a empresa foi ao mercado acionário, em 1983, teve capitalização de US$ 290 milhões. O sucesso da alavancagem deveu-se à imposição da empresa no mercado acionário somente na época de calmaria, com as taxas de juros em declínio e o mercado revivido.
Michael Milken, nos anos 1970, foi contratado como negociador de obrigações (ou junk bonds, títulos de empréstimo que pagavam taxa de juros maior porque a classificação de crédito do emitente era baixa), devido à sua teoria de subverter os balanços das empresas, substituindo o capital dos acionistas por dívidas. Desafiando a sabedoria convencional, de que as obrigações de alta rentabilidade eram especulativas porque encenavam mais risco, ele mostrou que as obrigações de empresas mal cotadas ofereciam boas oportunidades de investimento, pois a alta rentabilidade mais do que compensava seu histórico de inadimplência. Milken passou a dizer que investir em portfólio de obrigações especulativas no longo prazo traria melhores retornos do que um portfólio de dívidas de empresas. Procurou então fazer novas aplicações para suas junk bonds, tendo como ideia usar o capital de investimento para negócios em crescimento, como telefonia celular, cassino em Las Vegas. Com isso, passaria a dominar os mercados primários e secundários das negociações de alta rentabilidade, afirmando ser capaz de distinguir entre a percepção popular e a realidade.
O Brasil inexoravelmente teria que se enquadrar nessa nova dinâmica do capital e certamente se comportar no modelo da nova ética e/ou etésios que se desenhava no mundo, a caminho da efetiva globalização. Contudo, pesava-lhe ainda o ranço comportamental da pós-escravidão. No plano externo, ou seja, no quadro internacional, tudo se apresentava exuberante em avanços tecnológicos, em todos os sentidos. No departamento de fusões e aquisições do Drexel Burn ham Lambert surgia a ideia de usar as obrigações de alto rendimento para financiar as famosas aquisições alavancadas de companhias americanas de capital aberto. Milken, junto com Drexel, tinha como objetivo adquirir fundos com o magnata do petróleo para obter o controle da gigantesca Gulf Oil. Mas sua tentativa configurava-se um esforço em vão. No entanto, eles fizerem contatos com negociadores agressivos, chamados raiders, com a finalidade de fazer aquisições de alavancagem, e juntos obtiveram o controle da Gulf Oil, uma das mais importantes aquisições feitas pelos raiders. Milken conseguia equilibrar o jogo com o maior investidor, provando que os pequenos investidores tinham capacidade igual de competição. Os raiders diziam que os executivos contratados para administrar as empresas eram ineficientes, eram mais comunistas do que a URSS.
Contudo, a afirmação dos raiders, de que estavam promovendo a democratização do capital, era infundada. Quando o poder de Milken cresceu, ele começou pregar assuntos alheios ao mundo financeiro, divagando sobre perspectivas de abrigar a população em hotéis flutuantes, fazendo preleções a seus visitantes acerca dos riscos de violação de embalagens, refletindo sobre a longevidade humana. Milken tinha em mãos 2/3 do mercado de junk bonds.
Enquanto isso, no Brasil perecíamos com uma demorada adaptação a um regime novo, de abertura política, após anos de ditadura militar. Havia uma economia ainda fragilizada que necessitava se libertar do jugo dominador de fenômenos como inflação feroz e um certo eufórico controle/descontrole, talvez controle aparente ou ainda a sombra da não leitura sociopolítica do fenômeno novo da exclusão social que havia.
No plano externo o surto das aquisições, notadamente nos EUA, deu lugar a valorações com base em aquisições alavancadas, conhecidas como valor de mercado privado, que era calculado se examinando quanto dinheiro a empresa gerava e qual o montante de dívida que ela poderia suportar. Estávamos vivendo os estertores do século do não no mundo econômico. Aqui tínhamos ou vivíamos os etésios que anunciavam mudanças.
A África do Sul era claramente distinta do restante da África-subsaariana. O país apresentava nível bem mais alto de industrialização e economia mais diversificada e exercia papel mais significativo no que chamávamos de economia global.
Apesar disso, a distribuição de renda na África do Sul era a mais desigual do mundo. Essa desigualdade era apoiada nas diferenças raciais, que favoreciam os brancos (donos do capital financeiro) e no crescimento do nível de desemprego e do subemprego, o que mostrava que nem tudo era feito de maravilhas no mundo do novo modelo de construção do capitalismo e seu resultado social e sociocultural. Ela conseguia um grande avanço em relação a outros países africanos subsaarianos, representando 44% do PIB total do subcontinente. As rápidas mudanças políticas que aconteceram com o fim do apartheid colocavam o país numa posição privilegiada, podendo reverter o processo de exclusão social dentro do enfrentamento de um mundo surpreendente, repleto de contradições, no interior de uma economia global. Representava uma força motriz para todos os países da região meridional, fortemente dependente de sua economia.
Na África, muitos sobreviveram e ainda sobrevivem de uma economia marcada pela subsistência. Muitos intelectuais defendiam que a saída para a África estaria num recomeço, através da volta à economia primitiva, e na negação da conexão com as redes globais, que resultariam na destruição da sociedade africana. Não percebiam que a questão novidadeira e moderna da inclusão sociocultural se encarregaria de evidenciá-la e que seria necessário tratá-la com mais atenção, sem que se pensasse em manter a multiplicação das exclusões sociais e socioculturais pelo mundo. Assim, esse modelo seria o ideal, pois é sustentado do ponto de vista social e ambiental. Porém, o interesse das elites políticas e de suas redes de patronagem seria um obstáculo para a implantação de um modelo econômico de autoconfiança e sustentabilidade.
O novo dilema norte-americano seria conviver com a desigualdade gritante, a pobreza urbana e a exclusão social na Era da Informação. Os Estados Unidos eram a maior e a mais avançada economia do mundo, suas fronteiras abrigavam a primeira sociedade a vivenciar transformações estruturais e organizacionais características da sociedade em rede. Mas era também o país de uma sociedade que tinha registrado, nas últimas décadas, aumento substancial de desigualdade social, polarização, pobreza e miséria. Definitivamente não seria um bom modelo a ser seguido por nós, mas nossa propensão à mímese e nosso caráter contemplativo ludibriava-nos. Os EUA eram, sem sombra de dúvida, uma sociedade muito especial, com um padrão histórico de discriminação racial e um modo de urbanização peculiar.
A experiência da sociedade norte-americana com a desigualdade e a exclusão social, nos estágios de formação da sociedade em rede, podia ser um indicativo do que ainda estaria por vir em outras regiões do mundo, particularmente na Europa, por duas principais razões. Primeiro, a ideologia e a política dominantes na maioria dos países capitalistas insistiam na desregulamentação dos mercados e na flexibilidade administrativa, em um tipo de re-capitalização do capitalismo que refletia muitas das estratégias, políticas e decisões administrativas adotadas nos EUA nas décadas de 1980 e 1990. Segundo, e talvez o aspecto mais significativo, a integração crescente entre capitais, mercados e empresas em uma economia global compartilhada, o que causaria enormes dificuldades a alguns paises no que concerne a mudanças radicais em relação ao ambiente institucional de outras áreas. Na década de 1990, o capitalismo norte-americano parece ter sido bem-sucedido, pois se transformou em um sistema bastante lucrativo, dentro das condições de reestruturação, informação e globalização.
A margem de lucro líquida dos impostos nos períodos de pico dos ciclos de negócio subiram de 4,7% em 1973 para 5,1% em 1979. Estabilizaram-se na década de 1980 e atingiram 7% em 1995. As bolsas de valores bateram recordes históricos em 1997. Ao mesmo tempo, a renda familiar da classe média estagnou nas décadas de 1970 e 1980, e sofreu queda na primeira metade dos anos 1990 (Hobsbawn, 2002). Isso decorre principalmente de uma redução na média dos rendimentos reais auferidos semanalmente por trabalhadores do setor de produção que não exercem cargos de supervisão; a contribuição da mulher cresceu de cerca de 26% da renda familiar em 1979 para 32% em 1992, de modo que a estrutura familiar se tornou um fator muito importante para determinar a diferença no nível de renda entre famílias. Mas esta era apenas uma das realidades americanas que, no máximo, verificar-se-ia nas elites latinas.
A redução média da renda dos norte-americanos acabou por afetar as camadas sociais de forma distinta. Além disso, a desigualdade passou a assumir a forma de polarização no período de 1973 até 1995. As famílias mais ricas aumentaram sua renda média anual mais rapidamente, enquanto a queda mais acentuada na renda ocorreu entre as mais pobres.
A pobreza também se tornou generalizada e reverberante. A porcentagem de indivíduos cuja renda se encontra abaixo da linha de pobreza aumentou de 11,1% em 1973 para 14,5% em 1994. Isto é, mais de 38% de norte-americanos (Hobsbawn, 2002), dos quais dois terços eram brancos.
Para resumir, cremos que observações empíricas sustentariam um viés interpretativo que vincularia o crescimento da desigualdade e da pobreza nos EUA a quatro processos interrelacionados: o recuo da industrialização, tida em consequência da globalização da produção industrial da mão-de-obra e dos mercados; a individualização e a integração em rede do processo de trabalho, suscitadas pela economia informacional; incorporação da mulher ao trabalho remunerado na economia informacional, sob condições de discriminação patriarcal; e a crise da família patriarcal. A esses processos estruturais acrescentaríamos fatores sociopolíticos que, ao assegurar a dominação de forças de mercado irrestritas, acentuariam a lógica perversa da desigualdade.
O processo de desindustrialização, resultante do deslocamento geográfico da população industrial para outras áreas do globo, eliminava os empregados do setor e a mão-de-obra semiqualificada e decentemente remunerada que constituíam a espinha dorsal do mercado de trabalho norte-americano. No Brasil, vivíamos os percalços de uma dura inclusão social urgente e necessária dos afro-descendentes, que conviviam sob uma pesada e indesejada carga de preconceito. O capitalismo apresentava-se com a mais dura e verdadeira face de seu jogo social e sociocultural.
A individualização do trabalho, concomitante à transformação das firmas que assumiram a forma da empresa em rede, constituía o mais importante fator responsável pela desigualdade que não só se acentuava mas gerava sérios transtornos nos países de perfil econômico periférico como o nosso. Isso acontecia, por um lado, nos países que lideravam a economia internacional, como os EUA, porque os trabalhadores, como grupo, eram colocados em condições de trabalho altamente específicas a cada um deles e, portanto, eram abandonados aos seus próprios destinos individuais.
Por outro lado, o processo de negociação individualizada entre empregadores e empregados levava a uma diversidade extraordinária de retratos de trabalho, valorizando os trabalhadores com habilidades singulares e tornando os outros facilmente substituíveis.
A incorporação maciça da mulher na economia informacional tinha sido um fator crucial para permitir que a economia funcionasse com eficiência a um custo bem mais reduzido. Embora os salários pagos às mulheres com educação superior tivessem aumentado substancialmente nos EUA, ainda correspondiam, em média, a cerca de 70% do total da remuneração dos homens nas mesmas funções, de modo que a porcentagem global dos salários em relação ao PIB diminuía. Não quer dizer que a mulher fosse a parte bem-sucedida na história dos trabalhadores na economia informacional. Na realidade, a tão falada crise da família patriarcal teve efeitos punitivos sobre a maioria das pessoas naquela época, mas principalmente sobre as mulheres e as mães solteiras.
As tragédias diárias da vida nos guetos, lugares habitados pelos excluídos socioculturais nos EUA, constituíam um dos problemas mais antigos e tocantes da sociedade norte-americana. Durante décadas, nós os vimos como alvo de uma série de políticas governamentais, bem como acalorados debates políticos que abriram espaço para uma excelente tradição de pesquisa na área de ciências como história social urbana. As condições sociais, econômicas e habitacionais da maioria dos guetos norte-americanos do centro das cidades tinham piorado muito durante as ultimas três décadas do século do não, a despeito de um esforço sustentado visando à implantação de programas sociais urbanos e políticas de bem-estar social. A discriminação racial e a segregação espacial foram os principais fatores na formação desses guetos como sistemas de exclusão social. Seus efeitos adquiriram novos significados, tornando-se cada vez mais devastadores sob as condições impostas pelo informacionalismo. Os reflexos, pela pratica da mímese, atingiram-nos acrescidos de nosso caráter contemplativo.
A formação de amplas áreas de guetos no centro das cidades era resultado de uma série de processos: a mecanização da agricultura do Sul e a mobilização da força de trabalho industrial durante e após as Guerras Mundiais, que levariam à migração maciça de trabalhadores negros, os quais se concentravam nos vazios deixados pelo processo de suburbanização (a mudança das pessoas de classe média para áreas mais nobres, fora das regiões centrais das cidades, estimuladas pelas políticas habitacionais e de transporte do governo federal).
Guardando-se as proporções e distinções fenomenológicas, podemos dizer que estamos passando por problemas semelhantes por aqui. Também se deu por estas terras o deslocamento maciço decorrente do processo de reurbanização e, de certa forma, com incentivos múltiplos para preservar os centros empresariais e culturais nas principais áreas metropolitanas que aumentava a concentração dos afro-descendentes na pós-escravidão brasileira vivida e vivenciada aqui nos bairros mais desprovidos de recursos.
A informacionalização promoveu o aumento da oferta de emprego nos EUA, principalmente nos setores que exigiam maior qualificação, enquanto a globalização exportava os empregos do setor industrial de menor qualificação para os paises recém-industrializados, grupo a que o Brasil começava a pertencer. Portanto, nos Estados Unidos havia em verdade uma redução substancial na oferta de empregos do setor industrial, sobretudo daqueles que exigem menor qualificação, justamente o tipo de emprego que trazia os migrantes de volta às áreas urbanas e constituiu a base estável de suas possibilidades de emprego.
Muitos novos empregos da economia informacional exigiam maior nível educacional e habilidades verbais que raramente as escolas da rede pública do centro das cidades tinham condições de ensinar. Coisa que, no nosso caso, apenas agora se pode notar; e parece que se deseja a todo o custo recuperar o tempo perdido. Contudo, o novo tipo de produção industrial e uma proporção crescente de empregos no setor de serviços foram para os subúrbios, áreas mais abastadas dos EUA, o que reduziu o acesso ao emprego para os moradores dos centros urbanos. Assim, houve um descompasso cada vez maior entre o perfil exigido por muitos dos novos empregos e aquele apresentado pelos negros de baixa renda que moravam nas áreas centrais das cidades. Tal fenômeno também começou a surgir por aqui na última década (Pontes, 1968, p. 9).
Poderíamos dizer ainda que a crise da vida familiar e a instabilidade dos padrões de vida e de trabalho nos guetos interagiam profundamente com a dificuldade encontrada pelos homens pretos, principalmente os jovens, para se enquadrar nos padrões de aceitabilidade social e ética no trabalho, o que ainda subjaz às decisões de contratação de muitas empresas nos EUA. Finalmente, a pobreza e a crise familiar no gueto negro (como hoje, por aqui, nas favelas etc.) resultaram no enfraquecimento das redes sociais, o que reduziu as chances de encontrar emprego através de relações pessoais – o que também começamos a observar por aqui.
A expressão derradeira de exclusão social consiste no confinamento físico e institucional de um segmento da sociedade, na prisão ou sob a supervisão da Justiça, em regime de sursis ou liberdade condicional. Aos Estados Unidos coube a triste e ambígua condição de ser o país com maior percentual de população carcerária do mundo. A população carcerária era marcada social e etnicamente desde 1991: 53% dos detentos são afro-descendentes para 46% de brancos; e a proporção de negros continuou subindo durante os anos 1990. Os hispânicos constituíam 13% da população carcerária das penitenciárias e 14% da população das prisões locais. Contudo, enquanto a taxa de encarceramento dos brancos era de 215 por 100.000, chegava a 1.951 por 100.000 no caso dos negros. Um terço dos detentos estava em penitenciárias estaduais e participava de programas de tratamento contra drogas. E quase 3% dos então detentos nessas penitenciárias eram soropositivos ou estavam doentes em consequência da Aids. A sociedade existente na prisão reproduzia e propagava a cultura da criminalidade, de modo que todos aqueles que acabavam na cadeia viam suas chances de integração reduzidas substancialmente, tanto em razão do estigma social como pela degradação da personalidade.
Se ainda restavam dúvidas quanto ao fato de a principal questão trabalhista na era da informação não ser o fim do trabalho mas sim as condições dos trabalhadores, elas foram definitivamente dirimidas com o forte crescimento da mão-de-obra infantil mal-remunerada ocorrido durante a última década. Em 1992, o Departamento do Trabalho dos EUA registrou 19.443 violações à legislação aplicável ao trabalho infantil, o que correspondia ao dobro das ocorrências nos anos 1980 (Hobsbawn, 2002). Além do principal infrator (o setor de restaurantes fast-food), foram registrados casos relativos a filhos de imigrantes trabalhando ilegalmente em fábricas de roupas em Manhattan, na construção civil ou em fazendas.
O fator mais importante relacionado ao emprego de crianças parece ter sido sua incapacidade de defesa, resultando na imposição, até relativamente fácil, de uma remuneração mínima e condições de trabalho sempre (ou quase sempre) atrozes. Imagine então em países como o nosso. Aqui, as estatísticas referentes a essa questão não podem ser determinadas com exatidão. Levantamentos empíricos chamam a atenção para a importância do problema, bem como para o ritmo acelerado de seu rápido crescimento e expansão, frequentemente associado ao turismo e à exploração sexual.
Um dos mercados de prostituição de menores que mais tem crescido é o que engloba Estados Unidos e Canadá; ali, em 1996 as estimativas variavam de cem a trezentos mil prostituídos. Relacionada à prostituição mas considerada um segmento distinto da indústria da sexo de menores é a pornografia infantil. A tecnologia é um dos principais fatores responsáveis pelo crescimento desse tipo de atividade.
As Leis Derivadas (1891) mostram bem que a preocupação que se tinha não traduzia a realidade. O ano de 1871 havia sido um momento de virada absoluta, por haver formado a estratégia reiterativa do Brasil, em relação à Lei do Ventre Livre, aprovada por tratar da transição da escravidão para o mercado de trabalho livre, como mostrou Ademir Gebara (1986, p. 43). Com a aprovação dessa lei, criava-se uma nova realidade que impunha aos escravos uma percepção diferente do universo que os cercaria em futuro próximo. Tal percepção estava reforçada pelas atitudes de protestos que defendiam os interesses senhoriais, defendidos agora por escravistas.
Contudo, ao passar 1871, o processo abolicionista havia se estagnado, sendo retomado somente em 1885, com a libertação dos sexagenários. Durante esses quatorze anos, as leis que apoiaram a já extemporânea abolição não progrediram, restando como única solução aos escravos pretos os protestos – os quais ainda são muito mal estudados – e as famosas e constantes fugas. Os primeiros foram controlados através das leis, mas, as fugas não puderam ser controladas (Câmara, 1964, p. 111). O ano de 1871 representou uma forma de resistência, uma manifestação de absoluto inconformismo e protesto, em que as fugas tiveram significado político forte e diferente. Elas apareciam como algo extremamente perigoso para a transição gradual e segura que se pretendia. O século XIX apagou suas luzes sob surpreendente alvoroço. E nem se podia imaginar o quanto estávamos desnivelados em relação ao que se apresentava no plano externo do capital mundial.
No Rio de Janeiro avolumava-se o número de populares desempregados que se localizavam na cidade como mendigos, vadios, vagabundos, turbulentos e bebuns. Ao mesmo tempo, representavam um forte exército de reserva de mão-de-obra para ser absorvido pelo mercado de trabalho que deveria crescer em formas compatíveis com o novo quadro que se desenhava na capital. O número de profissionais informais e de trabalhos não regulamentados aumentava fortemente e garantia uma variedade de atividades que nasciam da necessidade de sobreviver dessa população. O governo imperial, rumo à república, mostrava-se não só impotente mas em profunda crise político-administrativa, envolvido com questões sérias como a militar e a religiosa, que desviavam as atenções de seus governantes. Os problemas trazidos com o fenômeno dos desocupados, habitantes permanentes ou eventuais, sobrecarregavam o trabalho da ainda incipiente polícia e da Justiça. Contudo, já em 1879 podíamos notar a preocupação com os novos ares e/ou etésios que estava respirando o país, em termos das relações capital-trabalho. Criou-se logo logo uma Lei de Locação de Serviços.
Os buracos negros do capitalismo informacional dão origem a uma profunda divisão entre pessoas e locais considerados valiosos e não-valiosos. A globalização atua de forma absolutamente seletiva, ainda com a tarefa de incluir ou excluir verdadeiros segmentos de economias e sociedades das redes de informação, riqueza e poder que caracterizam o novo sistema dominante. A individualização do trabalho está deixando os trabalhadores à mercê da própria sorte nos últimos tempos, tendo que negociar seu destino com forças de mercado em mudança constante. A crise do Estado-nação e das instituições da sociedade civil que se ergueram a seu redor durante a era industrial compromete a capacidade institucional de ajustar os desequilíbrios sociais derivados de uma lógica de mercado irrestrita.
Contudo, há mais nesse processo de reestruturação social do que simplesmente desigualdade e pobreza. Existe também a exclusão de pessoas e de territórios de relevância estrutural. Esses buracos concentram toda a energia destrutiva que afeta a humanidade. Como as pessoas e locais inteiros ingressam em tais buracos negros tem menor importância que os fatos que ocorrem posteriormente: a reprodução do modelo de exclusão social (Forrester, 1997) e a imposição de danos ainda maiores aos que já se encontram absolutamente excluídos.
Com frequência esses buracos negros se comunicam entre si e não estabelecem comunicação social com o mundo da sociedade legalmente admitida. No final do milênio, o que costumava ser chamado de Segundo Mundo se desintegrou, incapaz de dominar as forças da era da informação! Ao mesmo tempo, o Terceiro Mundo desapareceu enquanto entidade pertinente, esvaziado de seu significado geopolítico e extraordinariamente diversificado em termos de desenvolvimento socioeconômico. O chamado Quarto Mundo compreende vastas áreas do globo, como boa parte da África subsaariana e as áreas rurais empobrecidas da América Latina e da Ásia.
Conclusão
É mesmo uma nova ética e/ou apenas etésios no mundo das regras? A mídia e suas corruptelas para um capitalismo caubói de Bretton Woods a Michael Milken geraram realmente graves reflexos na brasilidade? Falar sobre os resultados que o sociocultural do Brasil adquiriu com a participação do preto escravo africano livre fica verdadeiramente um desafio se insistirmos em apenas olhar para o problema econômico, pois não podemos nos esquecer de que pobreza dá prejuízo! Um desses reflexos é aquilo a que estamos assistindo, que se derivou pelos afro-descendentes, as crias múltiplas e variadas que hoje compõem nossa sociocultura crioula. Teríamos que analisar os avanços e conquistas na construção das leis desde o século XIX, inclusive sobre o que representou o século XX, o século do não!, e sobre o alvorecer do XXI, o século da esperança. O velho semba das senzalas da escravização brasileira, que se desdobrou no futuro moderno e atualmente conhecido samba continua, como continuará a nos oferecer exemplos de uma vida vivida na diversidade da história da nossa cultura. Não olhá-las com o carinho que merecem é um verdadeiro pecado científico.
Ele certamente nos permite uma leitura a mais próxima possível das heranças deixadas pela africanidade na afro-descendência brasileira. Como já dizia Sêneca, “não haverá vento favorável se não houver vontade!” Mudar esse quadro de injustiças é urgente e já estamos até passando da hora.
Assim, basta olhar com mais um pouquinho de critério e acuidade para os detalhes ou para o ‘tudo’ deixado, que está no dia-a-dia daqueles que conviveram e ainda de certa forma convivem no ‘todo’ de nosso caldo de cultura moderno, para poder constatar o quanto foi retributivo por entre nossa prática de vida e que gera certa indignação o que hoje se pratica, sem que ao menos se perceba.
Hoje vivemos um grande e declarado divisor de águas na sociedade, pois aqueles que antes apenas se apresentavam como fruto de uma digerível africanidade na afro-descendência brasileira já clamam por maiores espaços sociais, políticos e econômicos, inclusive com manifestações que chegam ao plano das ideias através da música popular brasileira. Basta ver na letra do rap moderno de Marcelo D2, que é possível perceber que tal fenômeno se agravou, como se agrava a cada dia na voz da juventude. Até quando ficaremos autistas para manifestações populares:
Essa onda que tu tira, qual é?
Essa marra que tu tem, qual é?
Tira onda com ninguém, qual é? Qual é neguinho? Qual é? Me diz!
Referências bibliográficas
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Publicado em 19 de agosto de 2008
Publicado em 19 de agosto de 2008
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