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Sobre: As primeiras palavras foram de amor

Cristina Peres

Professora de Liceu, jornalista, poetisa e escritora em Lisboa

Confesso que por três vezes na minha vida senti inveja.

não
       não é uma desgraça
é a chuva, meu amor
       batendo na vidraça

A primeira já está resolvida, aconteceu quase ao nascer e resolvi-a no ano passado. Durou umas décadas.

A segunda permanece, ainda que menos acentuada e dirige-se aos gatos, esses opulentos seres recebedores de sol e carícias. Invejo-os sobretudo nos momentos de sair de casa para os duvidosos deveres da vida. Antes de sair de casa desejo sempre ser gato doméstico, mas depois, já cá fora, começo a vacilar e a pensar que afinal a cintilação do sol na rua, que afinal a carícia da chuva no rosto, que afinal o calor humano…

estou dentro de mim quando estou lá fora
olhando o mundo que não sou eu
e quando regresso das minhas viagens
nem preciso de me ver ao espelho

A terceira foi ao saber deste livro de Jaime Salazar Sampaio, ainda antes de o ler. Foi a inveja bastante atenuada depois que tive o livro na mão, porque a ternura que me inspiraram a leitura dos textos e a mão de quem os recolheu reconciliou-me com a ideia de esta ideia me ter sido roubada ao futuro.

se ele andava perdido nos labirintos do sonho
e eu marchava garbosamente pela estrada plana da realidade
como é que acabámos por apanhar as mesmas flores?

Eu sei que mais cedo ou mais tarde me lembraria de recolher das peças de teatro de Jaime Salazar Sampaio todas as expressões poéticas que podem viajar por si, no entanto o Luís Valente Rosa antecipou-se na ideia e no fazer.

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(é muito perigoso interpretar o silêncio dos outros)

Mas perdoo-lhe, ainda mais tendo este nome que tem.

talvez seja altura de fazermos um balanço
       ou, pelo menos, respirar fundo
              e, com humildade
                     pedir desculpa
                                   e perguntar porquê

Teria de ser um valente a fazê-lo, até porque não deve ter sido fácil defrontar todos os “mas” do autor. E foi com olhar de rosa que o fez, porque este é um livro para ser lido pelas rosas ou por aquilo que de rosa existe em cada leitor. Todos os que lerem este livro saberão do que estou a falar.


Como no teatro clássico, talvez a pedir desculpa por tê-las retirado do berço em que nasceram, ele organizou o livro em três “actos”: algas, manhã, silêncio.

Quando o recebi pelo correio, devorei-o e não fiquei saciada, pensei em silêncio para mim que o Luís Valente Rosa deveria fazer uma segunda recolha, e assim proceder como o autor, que já vai em não sei quantas versões do seu Teatro Completo, quando tinha avisado na primeira que aquela seria “mesmo” a edição completa do seu teatro.

disse não a quem sou
à vida e ao sonho
       porém
              um pequeno pássaro poisou-me no ombro
              pode dizer-se não a um pássaro?

Mas falemos dos textos que vieram à luz para fazer (assim o diz LVR) “prova de que grande parte do conteúdo dessas peças era a sua alma de poeta ali incrustada”. Este é assim um livro de uma extrema e oculta complexidade, porque os textos são de uma total despretensão, foram retirados de peças de teatro para mostrar que são poesia e, assim sendo, trata-se quase de um ensaio a provar uma tese, sendo que o corpus é a própria demonstração.

Quando voltei a lê-los foi com uma intenção muito pragmática: escolher, com autorização do Jaime, um ou dois poemas para uma antologia formada por textos de vários autores, que se vai organizar para fins humanitários, mas sempre com preocupações estéticas. Ele tinha-me indicado dois; quando fui para os retirar e incluir entre o novo corpus já não sabia de quais se tratava, quase todos me pareciam possíveis. Este foi um teste que fiz sem o fazer. A grande arte é assim, ampla, ainda que feita de palavras sem pretensão com um estilo que raia a inocência do menino ou a matreira sabedoria do que não quer exibir o que foi aprendendo, talvez por pudor, talvez por medo. Tive então o imenso desafio que me fez, de escolher eu o ou os poemas.

Não foi fácil, gastei todos os marcadores que tinha em casa. Página sim, página sim, um marcador. Se as páginas estivessem soltas tê-las-ia lançado ao ar pelo método oracular. Mas a lombada e as páginas bem coladas não se conformaram com este método primitivo de escolher poesia.

Reli de trás para a frente, depois da frente para trás, e depois percebi que se estava a tornar um vício e me arriscava, à custa de tanto ler os poemas (tem razão, Luís Valente Rosa, SÃO poemas), a apropriar-me deles deixando de ter a relação leve de vaga recordação de os ter lido nas peças e passar a julgar-me autora…

Assim, fiz uma primeira selecção focada na temática da colectânea, que não vem agora ao caso, e que mesmo assim deu umas dezenas, e destes, propus a alguém, que diz que não gosta de poesia, que escolhesse dois. Foi uma magnífica prova dos nove, porque escolheu nada menos de… nove, o que achei que não estava mal para quem diz que não gosta de poesia (tal como o meu avô profundamente religioso dizia que não era crente).

o doutor receitou-me
uma crença qualquer
tomasse religião
senão…
       fui eu
agarrei-me ao senão
              e cá estou

Lidos os seleccionados, tarefa a que acabou por achar algum gosto, dos sete foi-me mais fácil, não retirar cinco, mas eleger dois, como representantes de todos os outros.

Mas ainda não tinha o problema resolvido, que fazer com os outros cerca de cento e cinquenta?

Era preciso escrever, escrever sobre eles, resistir à tentação de os copiar todos para aqui mas dizer que o menino que em cada um existe (ou a rosa) vai adorar visitar este jardim.

o tempo passou por cima de nós
       está na hora de fazermos as malas
       e, com um sorriso
              deixarmos as coisas desacontecer

Todos os poemas aqui incluídos foram retirados do livro As primeiras palavras foram de amor, de Jaime Salazar Sampaio, a partir de ideia original e selecção de textos de Luís Valente Rosa (edição Dimensão 6).

Publicado em 19/8/2008

Publicado em 19 de agosto de 2008

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