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Guerra e paz

José Luís Fiori

Doutor em Ciência Política pela USP e professor titular de Economia Política Internacional na URFJ

A guerra nunca deflagra subitamente:
sua extensão não é obra de um instante.
Carl Von Clausewitz (1979, p. 77)

Os fatos mais recentes e importantes são conhecidos. No mês de abril de 2008, a última reunião de cúpula da OTAN, na cidade de Bucareste, reconheceu a aspiração da Geórgia de participar da aliança militar liderada pelos EUA, apesar da resistência alemã e da oposição explícita do governo russo. E, no dia 11 de julho de 2008, aviões da Força Aérea Russa sobrevoaram o território da Ossétia do Sul, na véspera da vista à Geórgia da secretária de Estado norte-americana Condollezza Rice, para inaugurar, no dia 15 de julho, à operação Resposta Imediata 2008: um exercício militar conjunto do exército norte-americano com as tropas da Geórgia, Ucrânia, Armênia e Azerbaijão realizado na Base Aérea de Vaziani, que havia pertencido à Força Aérea Russa até 2001.

Logo em seguida, no dia 8 de agosto de 2008, as Forças Armadas da Geórgia atacaram a província da Ossétia do Sul e conquistaram sua capital, Tskhinvali. Não está claro por que a Geórgia atacou a Ossétia do Sul exatamente no dia da inauguração das Olimpíadas chinesas. Mas não há dúvida de que a grande surpresa dos governos envolvidos nessa história foi a rapidez, extensão e eficácia da resposta russa, que em poucas horas cercou, dividiu e atacou – por terra, mar e ar – o território da Geórgia, numa demonstração contundente de decisão política, organização militar e poder de conquista.

Tudo feito com tamanha rapidez e agilidade que deixou os governos “ocidentais” perplexos, divididos e impotentes, obrigados a acompanhar os desdobramentos da ofensiva russa, hora a hora através de fatos consumados, sem conseguir saber ou poder antecipar seu objetivo final.

Logo depois da Segunda Guerra Mundial, Hans Morgenthau, pai da teoria política internacional norte-americana, formulou uma tese muito simples e clássica sobre a origem das guerras. Para ele,

a permanência do status de subordinação dos países derrotados numa guerra pode facilmente produzir a vontade desses países de desfazer a derrota e jogar por terra o novo status quo internacional criado pelos vitoriosos, retomando seu antigo lugar na hierarquia do poder mundial. Ou seja, a política imperialista dos países vitoriosos tende a provocar uma política imperialista igual e contrária da parte dos derrotados. E se o derrotado não tiver sido arruinado para sempre, ele quererá retomar os territórios que perdeu e, se possível, ganhar ainda mais do que perdeu na última guerra (Morgenthau, 1993, p. 66).

Em 1991, depois do fim da Guerra Fria, não houve um acordo de paz que estabelecesse as perdas da URSS e que definisse claramente as regras da nova ordem mundial, imposta pelos vitoriosos, como havia acontecido no fim da Primeira e da Segunda Guerras Mundiais. De fato, a URSS não foi atacada, seu exército não foi destruído e seus governantes não foram punidos, mas durante toda a década de 1990 os EUA e a União Europeia apoiaram a autonomia dos países da antiga zona de influência soviética, e promoveram ativamente o desmembramento do território russo, começando por Letônia, Estônia e Lituânia e seguindo por Ucrânia, Bielorrússia, os Bálcãs, o Cáucaso e os países da Ásia Central. Nesse período, os EUA também lideraram a expansão da OTAN na direção do leste, contra a opinião de alguns países europeus. E, mais recentemente, os EUA e a UE apoiaram a independência do Kosovo, aceleraram a instalação do seu “escudo antimísseis” na Europa Central e estão armando e treinando as forças armadas da Ucrânia, da Geórgia e dos países da Ásia Central, sem levar em conta que a maior parte desses países pertenceu ao território russo, durante os últimos três séculos.

Em 1890, o Império Russo, construído no século XVIII por Pedro, o Grande, e Catarina II, tinha 22.400.000km2 e 130 milhões de habitantes; era o segundo maior império contíguo da história da humanidade, e uma da cinco maiores potências da Europa. No século XX, durante o período soviético, o território russo se manteve do mesmo tamanho, a população chegou a 300 milhões de habitantes, e a Rússia se transformou na segunda maior potencia militar e econômica do mundo. Pois bem; hoje, a Rússia tem 17.075.200km2 e apenas 152 milhões de habitantes, ou seja, em apenas uma década – a década de 1990 – a Rússia perdeu cerca de 5.000.000km2 e cerca de 140 milhões de habitantes.

A maioria dos analistas internacionais que se dedicam a prever o futuro se esquece – em geral – de que os grandes vitoriosos de 1991 não foram apenas os EUA; foram: os EUA, a Alemanha e a China, numa virada histórica onde só houve um grande derrotado: a URSS, cuja destruição trouxe de volta ao cenário internacional uma Rússia mutilada e ressentida. A Alemanha e a China ainda tomarão muitos anos para digerir os novos territórios e zonas de influência que conquistaram nas últimas décadas na Europa Central e no Sudeste Asiático.

Enquanto isso, o desaparecimento da União Soviética colocou a Rússia na condição de potência derrotada, que perdeu um quarto do seu território e metade de sua população, mas que ainda mantém de pé seu armamento atômico e seu potencial militar e econômico, junto com uma decisão cada vez explícita “de desfazer a derrota e jogar por terra o novo status quo internacional criado pelos vitoriosos (em 1991), retomando seu lugar na hierarquia do poder mundial”. Por isso, neste início do século XXI, a Rússia é um desafio e uma incógnita para os dirigentes de Bruxelas e de Washington e para os comandantes militares da OTAN, quando na verdade o mistério não é tão grande e, se Hans Morgenthau estiver com a razão, trata-se de um segredo de Polichinelo: a Rússia foi a grande perdedora da década de 1990 e

, ao contrário do que diz o senso comum, será a grande questionadora da nova ordem mundial, qualquer que ela seja, até que lhe devolvam – ou ela retome – seu velho território, conquistado por Pedro e Catarina II. Por isso, a atual guerra na Geórgia não é uma guerra antiga.

Pelo contrário, é um anúncio do futuro.

Referências

CLAUSEWITZ, Carl Von. Da Guerra. São Paulo: Martins Fontes, 1979.

MORGENTHAU, H. J. Politics among nations, the struggle for power and peace. New York: McGraw, 1993.

Publicado em 26 de agosto de 2008

Publicado em 26 de agosto de 2008

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