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O remédio e o veneno
Pablo Capistrano
Escritor, professor de filosofia
Crônicas filosóficas
“O antibiótico salva o homem, mas só o vinho o faz feliz”. Essa frase (atribuída a Alexander Fleming, inventor da penicilina) eu ouvi pela primeira vez da boca do meu amigo Edílson Pinto, escritor, cirurgião e professor da disciplina de oncologia na UFRN. Certamente há nela um traço fino de humor inglês, e, a despeito de ser verdadeira ou não (a depender do tipo de vinho que você bebe ou do antibiótico que te prescrevem), ela ensina algo interessante acerca da natureza do mundo. Algo que os gregos já sabiam.
Em um livro bem conhecido no circuito acadêmico, A Farmácia de Platão, o pensador franco-judeu Jacques Derrida faz um mergulho no significado profundo das palavras do antigo idioma grego para mostrar que a diferença entre o remédio e o veneno é a dosagem.
Pharmakon é um termo grego que servia para designar tanto uma droga que alucina (como o vinho), um remédio que cura (penicilina), um perfume que seduz afrodisiacamente um parceiro (Chanel Número 5) ou um veneno que mata (cianureto). A sabedoria dos antigos nos faz lembrar que, em uma farmácia, aquilo que cura pode matar e aquilo que encanta também, de certo modo, enlouquece e escraviza.
A natureza dispõe de uma quantidade fantástica de substâncias que alteram a consciência, produzindo as delícias do encantamento e o desespero sem fim da loucura. Essas forças quádruplas (cura, prazer, loucura e morte) andam juntas e nos circundam, contaminando o ambiente e produzindo um casulo químico que interfere em nosso corpo e em nosso entendimento.
O mundo moderno não inventou as drogas. Elas estão dadas no meio natural, apenas esperando que alguém venha, colha-as e descubra o modo certo de refiná-las, fermentá-las, cozinhá-las em efusão, sintetizá-las, embalar em saquinhos e vender na farmácia, no bar ou na porta do clube descolado.
Na aurora do homem, a farmácia era logo ali, no meio da floresta, da savana ou da estepe. Terence McKenna, um dos antropólogos mais freaks de que eu já ouvi falar, chegou a defender a curiosa ideia de que a consciência humana havia se desenvolvido a partir do momento em que nossos ancestrais, perseguindo as manadas de búfalos, no esforço de domesticação que deu origem à nossa moderna agropecuária, começou a consumir psilocybe, uma substância que aparece junto com cogumelos nas fezes dos bois brancos.
McKenna chegou a essa conclusão bicho-grilo após alguns anos de estudos das práticas xamânicas espalhadas por diversas culturas e grupos étnicos mundo afora. Na Sibéria, a ingestão da Amanita muscaria, um cogumelo colorido rico em psilocybina (a mesma substância que isolada e sintetizada em laboratório ajudou o doutor Albert Hoffman a criar o LSD), é parte do contexto ritual da religião xamânica.
O transe obtido através da ingestão dessas substâncias, em um contexto ritual e através da direção de um xamã, faz com que uma realidade “verdadeira”, oculta à consciência ordinária dos homens, mostre-se em todo seu vigor. A ideia básica das práticas religiosas que utilizam substâncias como a psilocybe é de que as plantas são espíritos professores e que a natureza é uma imensa “farmácia”, na qual os praticantes do transe xamânico podem adquirir para si algo do ensinamento contido em cada cacto, cipó, fungo ou folha de árvore desta terra estranha e cheia de variações bioquímicas exóticas.
Entre os Ianomâmis na fronteira do Brasil com a Venezuela, por exemplo, é comum o consumo de um rapé de ebene por quase todos os homens que ultrapassam a puberdade. Nesses contextos, o xamã preside o ritual no qual os participantes se iniciam e constroem um acesso privilegiado a outros estados de consciência. Nos Andes, há o cacto de San Pedro (peyote), também famoso no México; na selva peruana, o aiuasca (uma planta cujo nome significa “vinho dos mortos” no dialeto quíchua e que teria poderes de abrir os portais do mundo dos defuntos, estreitando o contato entre os vivos e os espíritos dos que já se foram); no Gabão, a ibogaina (que, segundo alguns, além de produzir alucinações, regressões e ataraxia serve para curar viciados em heroína) é largamente utilizada há milênios pelos membros da religião Fang como planta mágica que serviria para estreitar contatos com os espíritos desencarnados.
Mas não é preciso ir longe para perceber como o uso da “farmácia de Deus” por parte das culturas tradicionais pode ser amplo. Entre nós, quando os portugueses adentraram os sertões brasileiros, travaram contato com inúmeras santidades, seitas e conjuntos de rituais que usavam largamente plantas como a nossa Jurema, símbolo maior do xamanismo potiguar, tão esquecida entre os que buscam religiões exóticas, e plantas mágicas em outras selvas.
Pois é, veja só que coisa. A mesma porta que pode levar o homem ao contato com o sagrado e o divino nas sociedades tradicionais, hoje, sintetizado, refinado, processado industrialmente, torna-se esse lixo químico que arrasta milhares de pessoas em todo o mundo para um estágio de prostração mental e degradação biológica.
A diferença entre o remédio e o veneno é muito tênue. Assim como o espaço do divino e o do mundano muitas vezes se cruzam em um mundo cheios de portas e janelas da percepção, que às vezes se expandem e às vezes se estreitam, levando o homem do céu ao inferno na mesma viagem. Esquecemos certamente os ensinamentos das plantas e, ao transformá-las industrialmente em produtos de mercado, acabamos por desmontar a ordem sagrada que envolvia suas práticas de consumo.
Sem os rituais da antiga religião, essas flores, fungos e folhas acabam por ser transformadas em uma porcaria bioquímica, que leva para nossa mente aquilo que o nosso mundo industrializado mais sabe construir: poluição.
Publicado em 26/08/08
Publicado em 26 de agosto de 2008
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