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Cuidado com o Cão

Pablo Capistrano

Escritor, professor de filosofia

Crônicas filosóficas

Estava me deliciando com o livro Doutor Fausto, de Thomas Mann, quando me deparei com a seguinte passagem: “quem crê no diabo já lhe pertence”.

Passei um bom tempo paralisado por essa frase, lembrando das advertências da minha já falecida avó, quando eu, ainda criança, me punha em alguma situação de risco (como subir no guarda-roupa e pular na cama, correr por cima do muro com um cabo de vassoura na mão ou desaparafusar algum brinquedo com uma faca de ponta). Ela repetia, em tom de alerta: “Pablo! Cuidado! O cão atenta!”.

Confesso que até hoje, por mais que eu me esforce, tenho uma profunda dificuldade de acreditar no “cão”. Não sei se é um mérito ou um defeito, mas não consigo entender como é possível que Deus tenha um rival. Mas isso é uma questão para outras crônicas, que minha pouca teologia não permite explorar a fundo.

Lembro que uma noite dessas, chuvosa e com esse vento frio, típico dos meses de julho, eu estava ministrando um curso de férias em uma faculdade. O tópico era Hegel e a história, e a ideia era mostrar aos alunos o modo como Hegel tentava construir uma ponte entre as concepções teológicas da Alemanha protestante e o historicismo de Vico. Falando em linguagem de gente normal: eu queria mostrar como a ideia de Deus pode funcionar bem quando se casa com a ideia de história. No meio da aula, um aluno levantou-se e gritou: “Isso é mentira! Isso é mentira!”, só para depois sair da sala. Fiquei sem entender. Preocupado, procurei o sujeito depois, para tentar dizer a ele o que Northrop Frye havia escrito em um livro fundamental sobre a Bíblia, chamado O Código dos Códigos. Frye tinha um aluno chinês que não sabia como explicar o cristianismo para seus compatriotas (na década de 1960, a China vivia em plena era de Mao). Frye sugeriu: “comece falando de Marx”. Diante do espanto do aluno, ele emendou algo mais ou menos assim: “sim, porque Marx é filho de Hegel e Hegel é filho de Lutero; então, se você quer falar sobre cristianismo, comece falando do neto e depois chegue no avô”.

Mas meu aluno, tomado por um estranho fervor, não entendeu meus argumentos e terminou a conversa com mais uma dessas frases enigmáticas que de vez em quando retêm minha atenção: “Professor! Quem mais conhece a Bíblia é Satanás!”.

Lembrei, na hora, dos alertas de minha avó: “Pablo! Cuidado! O cão atenta!” e um arrepio gelado percorreu minha espinha. De repente, me vi diante de uma impossibilidade. Que argumento poderia oferecer para convencer meu aluno de que Hegel não era “o cão” nem um dos seus enviados?

O mal tem sempre assustado e seduzido o homem. Diante de um mundo cortado pelo escândalo natural, o mal inquieta e perturba, deixando muitas mentes humanas sob sua zona de influência. Quando os primeiros sacerdotes católicos da Espanha chegaram ao Caribe e a América do Sul, depois de 1492, facilmente identificaram, nas práticas xamanísticas daqueles povos, a influência do tinhoso. Não poderia ser diferente. Como explicar para um homem do século XVI, marcado por uma visão de mundo circunscrita ao Mediterrâneo, cercado por isolamento espaço temporal de mais de mil anos, sem nenhuma consciência antropológica, sem qualquer capacidade de interpretar e conhecer o outro, o diferente, o estranho? Como explicar que aquela possessão, aquela dança, aquele canibalismo, aquele uso ritual de drogas exóticas poderia ser outra coisa a não ser a influência nefasta do “fedorento”?

Não foram apenas padres católicos que viram a mão (ou a pata) do “rabudo” nas práticas xamanísticas. Avvakum, um sacerdote ortodoxo russo do século XVII, descreveu o xamã siberiano como uma personalidade religiosa que “servia mais ao Diabo do que a Deus”. Oviedo, um viajante espanhol que travou contato com cerimônias que utilizavam o Ebene, rapé alucinógeno, ainda hoje largamente consumido pelos pajés ianomâmis, disse: “Eles adoram o Diabo, sob diversas formas e imagens... Fazem um demônio, a que chamam cemi, tão feio e terrível como os católicos o representam aos pés de São Miguel ou de São Bartolomeu; mas não está preso por cadeias; ao contrário, é adorado”. O relato é grande, mas olha só essa parte: “... e deve considerar-se que o demônio entrava nele e falava através dele...”.

A desqualificação da antiga religião é um dos fenômenos que sempre despertou minha curiosidade. O que há nessas sociedades tradicionais que incomoda? Porque encontrar o “bicho de chifre”, ou o charlatanismo, ou a doença mental, ou a drogadicção, em sociedades que não tem esses conceitos? Não se trata de uma simples rejeição racial ao que não é branco, porque outras doutrinas religiosas, (mulçumanas, judaicas, budistas, taoístas e confucionistas) reagiram de forma mais ou menos semelhante. Ainda hoje, na África subsaariana, as velhas práticas animistas sofrem a perseguição de adeptos do islamismo, assim como os terreiros baianos, do outro lado do Atlântico, são apedrejados por fundamentalistas cristãos. Tudo porque, supostamente, o diabo mora na casa do outro e o que é diferente, estranho, distante de mim só pode ser mau, sinistro, bizarro.

Meu filho, o mundo é muito vasto, e o ser humano, essa coisa estranha, ainda me assusta muito. Eu particularmente tenho hoje, depois de adulto, e apesar dos incessantes alertas de vovó (que nunca teve medo do bafometh, diga-se de passagem) um espanto básico diante da capacidade humana de não entender. Mais do que o senso humano de compreender o mundo, o que me espanta é a tendência incontrolável que os humanos têm de não entender o óbvio. Mesmo neste tempo pós-moderno, quando o mal é mais visível e a banalidade da dor e da morte nos anestesia na sala de estar (será que em algum outro tempo foi diferente?), continuo a temer muito mais as ideias dos homens, porque, como escreveu Thomas Mann, nesse livro publicado depois da guerra, de Aushwitz e da bomba atômica: “quem crê no diabo já lhe pertence”.

Publicado em 09/09/08

Publicado em 09 de setembro de 2008

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