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Proust e a escrita: a página dos Campanários

Cláudia Dias Sampaio

O clássico assombro diante da folha, ou da tela, em branco não é exclusividade dos escritores diletantes. O não saber sobre o que escrever inquieta mesmo aqueles que têm a escrita por ofício. Talvez por isso, paralelamente ao desenvolvimento de suas obras, tantos escritores tenham se dedicado a pensar o ato da escrita. Entre os que teorizaram sobre a criação literária estão sobretudo os poetas. Charles Baudelaire, Paul Valéry, Paul Celan e João Cabral de Melo Neto são apenas alguns de uma vasta lista.

Aqui, damos voz ao romancista que investiu profundamente nessa reflexão e acabou por revolucionar a literatura ocidental. A cena que resulta na “página dos Campanários” expressa com maestria essa investida do escritor em pensar sobre o irromper da palavra em uma das obras literárias mais importantes do século XX: Em busca do tempo perdido (La recherche du temp perdu, 1913-1927), do francês Marcel Proust.

Como informa o crítico Erich Auerbach, no ensaio “Marcel Proust: o romance do tempo perdido”, que integra o livro Ensaios de Literatura Ocidental, publicado recentemente pelas editoras Duas Cidades e 34 na Coleção Espírito Crítico, “Marcel Proust nasceu em 1871, estreou na literatura na década de 1890, começou a ganhar fama a partir de 1917 e ao morrer, em 1922, era uma das grandes figuras literárias do mundo”.

Auerbach atribui a “alguma espécie de mágica” o interesse dos leitores pelos treze volumes que compõem Em busca do tempo perdido. O crítico defende a modernidade do romance a que ele chama “texto”, por ser “textualmente imutável, inconfundível, como um manuscrito famoso”.

Em busca do tempo perdido começou a ser editado no Brasil no final dos anos 1940 pela Editora Globo, que em 2006 passou a reeditar as traduções feitas por célebres escritores brasileiros como Mário Quintana, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Com notas, prefácios, resumos, cronologia e posfácios, as reedições fazem jus à audaciosa inscrição fixada sobre a capa: “Proust definitivo”.

No primeiro volume, No caminho de Swann, traduzido por Mário Quintana (que também traduziu o segundo e o terceiro volumes), encontramos, além da famosa passagem do chá com os bolinhos chamados madalenas, cujo paladar desperta no narrador as memórias da infância, a história do passeio que resulta na primeira página escrita pelo narrador que deseja ser escritor.

Ao que parece, para o herói do romance a palavra escrita é o aprofundar do que sentimos ao depararmo-nos com imagens, sons e perfumes que por algum motivo nos emocione. O narrador traduz essa emoção pelo prazer de ir com o pensamento além das impressões de forma, perfume ou cor, de “procurar o que atrás delas se oculta”.

O escritor estaria, então, sempre “em busca de algo”.

O que seria esse “algo”, senão o conhecimento de si? Para o poeta Rimbaud, é justamente esse conhecimento que é essencial à formação de um poeta. Em Carta de um vidente, ele escreve: “O primeiro estudo do homem que quer ser poeta é o seu próprio conhecimento, inteiro, ele procura a sua alma, a inspeciona, a tenta, a aprende”.

Nesse caso, a rememoração do narrador proustiano seria uma minuciosa inspeção de si? Tudo indica que sim, principalmente se pensarmos no caráter autobiográfico pelo qual tantas vezes o romance ainda é lido. Afinal, a história se passa por volta de 1900 na alta sociedade parisiense, da qual Proust – assim como seu narrador, um jovem inteligente e doentio – também fazia parte. Contudo, as sofisticadas referências literárias com as quais a obra é tecida e as múltiplas visões e perspectivas de seus personagens afastam esse tipo de consideração – que reduziria o edifício estético do autor a uma mera reprodução da vida.

A cena que motivou este ensaio mostra que a genialidade de Proust está justamente em ele ter feito, da criação estética, instrumento para essa inspeção de si.

Em mais um dos passeios que costumava dar com o avô, o narrador encontra o dr. Percepied, “que passava a toda velocidade em seu carro” e lhes oferece uma carona. Acomodado ao lado do cocheiro, na curva de um caminho, ele sente “aquele prazer peculiar que não se assemelhava a nenhum outro ao avistar as duas torres de Martinville”. Como o cocheiro não parecia disposto a conversar, o narrador viu-se forçado a recorrer à sua própria companhia, “tentando relembrar suas torres”. E é nesse momento, provocado pela lembrança “do deslocamento das linhas e das batidas do sol poente sobre as torres de Martinville e Vieuxvicq” e pela circunstância de se ter a si mesmo como companhia, que irrompe a palavra: “Logo, como uma casca, romperam-se suas linhas e superfícies, mostrando-me um pouco do que ali se achava oculto, e tive um pensamento que não existia para mim um momento antes, que se formulou em palavras”. A embriaguez causada pelo prazer que o jovem sentira fez com que ele “não mais pensasse em outra coisa”. E, ainda vacilante, sem querer confessar a si que o que estava oculto atrás das torres de Martinville “devia ser algo assim como uma bela frase”, pediu papel e lápis ao doutor e compôs a página sobre os campanários, para “aliviar sua consciência e obedecer a seu entusiasmo”.

Nos passeios com o avô anteriores a esse da escrita da página, o narrador fechava os olhos na tentativa de manter a “ilusão de fecundidade” que sentia ao exercitar o pensamento “a ir além da imagem ou do odor”, mas se deparava com o assombro da página em branco. Ele o fazia porque acreditava que assim se distraía da tristeza da sensação de impotência que sentia cada vez que tentava buscar um assunto filosófico para uma grande obra literária.

E é somente nesse passeio, prolongado além do habitual pelo encontro com dr. Percepied, que a fecundidade passa da  ilusão à ação.

A página dos campanários irá reaparecer no segundo volume e depois no sexto, quando o herói conseguirá enfim publicá-la, como confirma a nota explicativa de Guilherme Ignácio da Silva.

Para Auerbach, Em busca do tempo perdido é  uma “epopeia da alma, na qual a própria verdade envolve o leitor num sonho longo e doce, cheio de um sofrimento que também liberta e tranquiliza; esse é o verdadeiro páthos da existência terrena, que nunca cessa e sempre flui, que sempre nos oprime e sempre nos impele”.

Então, por que deixar de viver essa experiência?

A página dos campanários começa assim:

“Sozinhas, erguendo-se do nível da planície e como perdidas em campo raso, subiam para o céu as duas torres de Martinville [...]”.

Referências bibliográficas

PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. No caminho de Swann. São Paulo: Globo, 2006.

AUERBACH, Erich. Ensaios de Literatura Ocidental. Rio de Janeiro: Duas Cidades/34, 2007.

GALVÃO, Walnice Nogueira. Os novos caminhos de Proust.

Publicado em 09 de setembro de 2008

Publicado em 09 de setembro de 2008

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