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Somos todos iguais nesta noite
Ieda Magri
– Não há de ser nada. Tudo no mundo se resolve quando a gente pode entrar em casa e avistar o mar.
Essa a resposta de Seu Francisco, funcionário em dia de despedida, para as dores do cotidiano. Um homem que viu com susto a velhice acenando através do espelho e que deu, sempre, um jeito de se conformar com as perdas grandes e pequenas: a morte da mulher, a aposentadoria e os problemas miúdos que enfrentava no emprego. A calma, a naturalidade e o bom humor empregados na resposta desafiavam os colegas, já que Seu Francisco, todos sabiam, morava num conjugado na Rua Prado Júnior quase esquina com a Barata Ribeiro, e que, portanto, não tinha vista para o mar. Mas eu posso afirmar: ele, da sua janela, via, sim, o mar.
A história de Seu Francisco pode ser lida – e o leitor verá que é muito melhor – no livro de Marcelo Moutinho Somos todos iguais nesta noite. Chama-se “Da profundeza do azul” e é só uma dentre as tantas bem narradas histórias de gente que sente, que está se esfregando com a vida e que nos enrosca na delas já ao abrir o livro.
São 22 pequenas histórias, fulgurações de ternura, divididas entre iguais e noites pelo autor. Os contos, digamos, menos noturnos de iguais nos lembram frequentemente o olhar infantil, a delicadeza das crianças, mas – vai um grito aí – a perversidade, a falta de entendimento entre a criança e a gente grande, como em “Jujuba verde” e “Dia de festa”. A despeito da divisão avisada pelos títulos, o escuro da noite já se faz sentir com toda a força em iguais, nos contos mais que bonitos “Rosa Noturna” e “Choro”. Nessa altura do livro, já estamos completamente mergulhados na densidade da noite e, por mais que procuremos um lugar iluminado, que tentemos nos distanciar das personagens de Moutinho, parece-nos que estamos misturados, que de alguma forma compartilhamos o caminho que fazem nas páginas, nas ruas do Rio ou numa pescaria no céu. Estamos iguais, iguaizinhos até o final do livro, pelo menos.
Antes de Somos todos iguais nesta noite (2006, Rocco), Marcelo Moutinho já havia publicado Memória dos barcos (2001, 7 letras), organizado as antologias Prosas Cariocas – uma nova cartografia do Rio (Casa da Palavra, 2004), Contos sobre tela (2005, Pinakothèke) e participado de outra antologia: Rio Literário (Casa da Palavra, 2005).
O que se destaca neste último livro de Moutinho é sua capacidade de observar e de sentir a pulsação da vida nos mínimos acontecimentos do cotidiano, que, em mãos menos hábeis e talentosas, poderiam facilmente cair na banalidade. Ao contrário; o que aparentemente seria fato corriqueiro – um passeio no carro novo do pai, o corre-corre de uma costureira (ainda que faça as fantasias de uma escola de samba), uma garotinha que gosta de Pablo José, um travesti trabalhando nos arredores da Praça Paris, um menino vendo-se crescer – torna-se, sem susto, uma construção sem pressa, uma tocha de luz que erguemos nas mãos e que nos guia os passos nesta noite menos escura, porque plena de poesia.
Diante da imensidão de livros de autodestruição que teimam em aquecer as vendas do Natal e que disputam as prateleiras das livrarias o ano inteiro, posso dizer, não sem um suspiro de lamentação, que escritor e leitor precisam meter a boca no mundo e bater o pé:
– Não há de ser nada. Tudo no mundo se resolve quando a gente pode ler um bom livro vindo das mãos de um autor jovem e que, sabemos, tem ainda muito a nos dar.
Publicado em 09/09/2008
Publicado em 09 de setembro de 2008
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