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Os cronistas

Prof. Dr. Eduardo Marques da Silva

As obras dos principais cronistas do Rio de Janeiro, como Vivaldo Coaracy, Luiz Edmundo, Vieira Fazenda, João do Rio, Machado de Assis, Lima Barreto – que estão à disposição na Biblioteca Nacional, no Arquivo Nacional e no Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro – devem ser consultadas com um viés questionativo. Os artigos e matérias de jornais de época também.

Tratamos aqui desses autores porque sabemos que tiveram acesso à vida cotidiana da cidade no final do século XIX e início do XX. Buscamos pesquisá-los com o fito de verificar, com a máxima precisão possível, os comportamentos sociais por seus olhares – muitas vezes lúdicos – registrados nas crônicas. Procuramos verificar movimento, ritmo e relacionamentos que marcavam a vida na cidade do Rio de Janeiro no período.

Observamos artigos de jornais da época, como o Jornal do Commercio e o Diário do Rio de Janeiro, assim como O Globo e programas específicos da TV de âmbito nacional com informações recentes sobre o tema na mídia para mensurar e/ou avaliar seus efeitos na sociedade como um todo, inclusive seu corpo deficiente – que chamamos de paralelo, comum.

Tendo como contexto uma cidade como o Rio de Janeiro, capital do Império Brasileiro no século XIX, sofrendo reflexos do período de instabilidade político-econômica vivida pelo conjunto da economia mundial na época, buscamos centrar nosso olhar na análise do imaginário coletivo popular do cotidiano sociocultural, dentro do conceito de corpo desenvolvido pelo professor esloveno Evgen Bavcar; em suas palavras: “se ousamos dizer ‘inválidos da guerra’, por que não deveríamos usar expressões como ‘inválidos do progresso’, ou mesmo ‘inválidos da industrialização, da alimentação’, em vez de ‘vítimas da fome’”? (Bavcar, 2003).

A história dos ex-escravos, principalmente na fase da pós-escravidão brasileira, não se prende somente ao puramente factual. Pode ser contada melhor pelo olhar da escola historiográfica do evenementille, que privilegia o acontecimento, o eventual, o comum, o corriqueiro. Sua trajetória ainda está presa a registros do dia-a-dia em suas épocas, do cotidiano, principalmente o da rua. Daí, registros de jornais, ocorrências policiais, casos contados são mais valiosos. É um audacioso mergulho em uma quase prática sociológica pouco comum entre os historiadores. Desprezível, talvez, mas necessária para visualizar a corporificação de algo que se construiu à surdina da ordem sociocultural oficial e que não conseguimos visualizar com a precisão que merece.

Os cronistas da época têm como figura central o escravo ao ganho, o capoeira e outras tipologias sociais de nosso manancial malvisto – que se encontram quase todos em nossos escombros socioculturais até hoje. Esses cronistas são muitas vezes viajantes do espaço lúdico, usando a conotação como jogos de comunicação, para que o desenho mais verossímil dessas criaturas seja buscado na presença, na alma, na latência de vida em seus sinais mais contemporâneos.

Acreditamos que o mais significativo conceitual cristalizado sobre os relacionamentos sociais não esgotou definitivamente o tema. Focamos nosso olhar crítico nos papéis sociais assumidos no espaço mágico do fetiche do capital produzido inicialmente pelo mercado ambulante da época. Ali estavam figuras participativas da vida comum da cidade na época; suspeita-se também que seja reveladora de um espaço pouco tratado pela historiografia.

A (re)leitura crítica das relações pode dissipar uma nebulosa social que se apresenta no corpo sociocultural contemporâneo no espaço do simbólico. Somos uma cidade multifacetada, complexa, onde os corpos urgem identidade. Se identidade representa a soma de papéis (desempenho, deveres) e status (direitos), sempre em movimento, havia – como há até hoje – um constante jogo de deslocamentos de status no grande jogo de comunicação da sociedade.

É sobre ele que pretendemos tratar: o que passa a interessar são seus reflexos, latência, alma e presença, uma vez que a constante transformação dos protagonistas da trama sociocultural que escolhemos passa a ter importância singular. Mais ainda: por trabalharmos no espaço do fetiche do capital, o movimento passou a ser intenso e surpreendente até nossos dias. Seus sinais podem ser percebidos até hoje no avesso/anverso do corpo. Suas representações reinterpretam o não-dito, o oculto nos documentos dos ‘sem direito à palavra escrita’ na história oral sociocultural, com armadilhas na averiguação. Na historiografia oficial, o conhecimento do outro pode ser captado como aquilo que excluiu, criando assim um espaço próprio, que encontra sua segurança nos dados que extrai do dominado.

O querer saber ou querer dominar o corpo transformou a tradição recebida em texto produzido sem escrita, que não se interessou por uma verdade escondida que será necessário encontrar (Certeau, 1982, p. 45). O corpo poderá se revelar um código que aguarda ser decifrado. Por esse motivo, o deficiente corpo dos excluídos ou ignorados tornou-se o objeto de nossa análise, e pretendemos seguir averiguando-os historicamente no social.

Segundo Michel Foucault, o corpo se converte em extensão, em interioridade aberta, em cadáver exposto ao olhar (1963, p. 5). O corpo visto transforma-se em corpo sabido e as heterologias se constroem em função da separação entre o saber que contém o discurso e o corpo-mundo que o sustenta.

Todorov analisou o corpo que cala – o outro como uma tipologia para tratar a alteridade. Destacou três planos fundamentais para compreender essa problemática: o axiológico, o paraxiológico e o epistêmico. Esses três planos precisam de nova leitura, uma vez que todos estão envolvidos em um mundo marcado pelo grande conflito mundial da globalização: a falta de diálogo entre as globalizações locais e as localizações globais (Cortezão, 2003) acaba por transformar tudo em um epistemicídio, como costuma dizer o sociólogo Boaventura de Sousa Santos (2002, p. 4). O primeiro plano, quando é feito um julgamento de valor; o segundo, por meio de uma ação de aproximação ou de distanciamento, adotando seus valores, identificando-se com o outro ou então lhe impondo submissão; e o último plano quando se conhece ou ignora a identidade do outro. Embora haja interligação entre os três, não significa que possam se reduzir um ao outro.

Sabemos que a historiografia europeia não reconhece a alteridade. Os dominados sempre foram tratados como inferiores. Seus valores culturais foram ignorados e a política empenhou-se em assimilá-los aos princípios cristãos. No Brasil, porém, vivia-se a liberdade do abandono, em um jogo de poder do Clube das Elites.

Todorov (1983, p. 183) destacou como mais importante para a ideia de divindade a religiosidade – e não a religião –, o que permitiu nova discussão sobre a alteridade e o etnocentrismo; por isso os corpos ganham complexidade nas leituras de seus conflitos. Segundo ele, a igualdade não se estabeleceu à custa da identidade, pois cada um tem o direito de se aproximar de Deus pelo caminho que lhe convier (Todorov, 1983, p. 188). Isso permite lê-los com mais independência, pois podemos suspeitar que cada um se apropria de seu Deus fazendo dele um instrumento da luta territorialista no cotidiano da cidade.

Os estudos da Etno-história e da Arqueologia sobre a escrita e a língua, sobretudo os de Alfredo Austin, Angel M. Garibay e Pina-Chan, apresentaram excelentes resultados para a compreensão desta sociedade e de suas tipologias. Nosso propósito é reconstituir as concepções mentais dos dois corpos, pôr em ação a nova tecnologia vaticinada pela meta-história. Pô-la em confronto com ela mesma, questioná-la em razões que a própria razão desconhece, o que seria a razão sensível guardada em suas entranhas.

Carlo Ginzburg (1987) diz que a sobrevivência, os arcaísmos, a afetividade e a irracionalidade da violência delimitam o campo específico da História das Mentalidades, distinguindo-a das disciplinas paralelas, hoje consolidadas como História das Ideias.

Temos a formação de corpos autônomos no avesso/anverso do corpo sociocultural do Rio de Janeiro; são os escombros, a superfície e a virtualidade da mistura sociocultural do Brasil Império – inseridos em um espectro de um outro império maior, abrangente, totalizante e mais globalista ainda, mundializado em uma maré de avassalador mundialismo –, no alvorecer da República, que fizeram mais clara a pós-escravidão e que precisam ser mais bem estudados, uma vez que se trata de uma história oculta que ainda incomoda muita gente por aqui.

Analisar os discursos dos cronistas da época citada para construir o fio condutor que explica as ligações dos corpos inseridos no grande jogo do corpo cultural e sociocultural brasileiro, de diálogo estranho e novidadeiro, dificulta o entendimento da relação (se é que se pode denominar assim) estabelecida do local para o global. Analisar esses textos revela a latência da presença desses corpos na periferia social da época, identifica seu legado e decodifica a alma do imaginário coletivo daqueles esquecidos do grande corpo cultural construído aqui pelos lusitanos. Acreditamos que descrevê-los através da lente do imaginário coletivo urbano carioca, pelo olhar dos cronistas da época, permite captar como o escravo ao ganho, o capoeira, enfim, o ex-escravo considerava o tratamento coisa/gente gente/coisa no jogo do capital, complexo em mudanças sociais na rua, no interior do ethos fluminense. Descortinar seu lado avesso/anverso em uma cidade inserida em um pré-capitalismo complexo e desafiador revela sempre algo mais.

Descrever elos e sinais característicos que explicam a existência latente do corpo dos esquecidos de nossa sociocultura para esclarecer se permaneciam escravos e/ou ex-escravos, inclusive na pós-escravidão brasileira, valoriza o espaço do fetiche do capital. É deveras desafiador! Mais ainda: definir uma cartografia urbana que os identifique mostra o profundo estado de avesso/anverso que configuravam.

Ao evidenciar o embate dos ditos corpos, considera-se seu histórico processo de construção. Continuaremos a buscar a verificação de sua mobilidade, no intento de constituir um quadro que se aproxime do que denominamos avesso/anverso do corpo; novos mecanismos de autodefesa na construção do processo de resistência da cultura africanista estão presentes no espaço do urbano popular da cidade do Rio de Janeiro até hoje.

Buscou-se analisar, no espaço do imaginário coletivo, os modernos sinais de suas permanências ou mesmo identidades que permitam desvendar essa imensa nebulosa sociocultural. É para nós importante verificar onde se deu a instalação do conflito e dirimir ou reduzir as dúvidas quanto ao tratamento dispensado ao escravo (gente/coisa e coisa/gente). Verificar o espaço (Certeau, 1982, p. 14) do lúdico permite constatar ser este um definidor maior para a construção de seu desenho de mundo imaginado pelos africanos no Brasil da época, o que foi passado para os afro-descendentes inclusive pelos registros dos cronistas.

Assim, sabemos que não podemos nos esquecer dos dizeres de Anthony Giddens, que ensina que vivemos um tempo vazio do espaço vazio no tempo presente! Assim, estamos sendo sempre surpreendidos por um verdadeiro Complexo de Cassandra. Ludibriados pela notícia sobre o fato e o presente do novo tempo. Abrir-se sempre ao novo e desafiador é nosso maior motivo de continuar uma luta pela melhor visão científica, que esclareça o quadro também cada vez mais complexo que teremos que enfrentar. Em nossa sociedade, um quadro se estabeleceu definitivamente cirúrgico e deu-nos um desenho extremamente complexo, que podemos nos atrever a dizer que se trata do avesso/anverso do corpo sociocultural do Rio de Janeiro.

Referências bibliográficas

BAVCAR, Evgen. Corpo: espelho partido da história. In: NOVAES, Adauto. Homem-máquina: a ciência manipula o corpo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

CERTEAU, Michel. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense, 1982.

CORTEZÃO, Luíza. Globalizações locais e localizações globais: difíceis diálogos nas sociedades complexas. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2002.

FOUCAULT, Michel. Naissance de la clinique. Paris: PUF, 1963.

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

TODOROV, Tzvetan. A conquista da América. São Paulo: Martins Fontes, 1983.

Publicado em 16 de setembro de 2008

Publicado em 16 de setembro de 2008

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