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Muletas e jardins
Mariana Cruz
Muitas vezes aqueles que pensam que podem mudar o mundo ou que têm uma visão muito positiva diante das intempéries da vida são tachados de ingênuos, sonhadores, delirantes. Mas, graças a esses tipos, muitas coisas que parecem não ter solução se arrumam direitinho. Há, no entanto, maneiras e maneiras de ser otimista. Existem os que alimentam a conformidade, adequando-se a qualquer situação, dizendo para si mesmos que tudo está bom do jeito que está. E há os que, ao contrário, mostram uma nova forma de lidar com uma situação triste e modificam tudo que está ao seu redor.
Na literatura, podemos encontrar exemplos célebres desses dois tipos de otimismo. O primeiro é perfeitamente descrito por Voltaire em sua obra-prima Cândido ou o otimismo (1759). O segundo está no best-seller Pollyana, de Eleanor H. Porter (1913), uma espécie de tataravô dos livros de autoajuda, que desencadeou ondas de otimismo pela Europa do início do século XX.
No livro de Voltaire, o otimismo exagerado do personagem-título é quase destruidor. Cândido crê fielmente na doutrina de seu preceptor, o filósofo Pangloss, que considera o mundo em que vivemos o melhor dos mundos possíveis e afirma que todas as coisas são do jeito que são e não poderiam ser de outra maneira – numa clara ironia à filosofia de Leibniz. Cândido passa por enormes agruras – é expulso do palácio onde mora, separado de sua amada, espancado diversas vezes, roubado, enganado, passa fome, sede, vaga sozinho pelo mundo – e segue se forçando a acreditar que “tudo está bem”. Até que, ao final do livro, descobre o real sentido desse otimismo ao deparar-se com um velho que diz não se importar com as coisas que acontecem no mundo, apenas se preocupa em vender os frutos que cultiva, pois, segundo ele, “o trabalho afasta de nós três grandes males: o tédio, o vício e a necessidade”. Dito isso, Cândido retorna à sua casa e, juntamente com as pessoas que moram com ele – todas com uma história de vida trágica e extremamente entediadas pela apatia que tomara conta deles após terem se mudado para a granja –, começa a trabalhar. Todo o grupo se compenetra nesse louvável desígnio e faz com que a pequena propriedade se torne bastante rentável.
Cunegundes estava, na verdade, muito feia, mas tornou-se uma excelente doceira. Paquette bordava. A velha costurava. Nem mesmo o irmão Giroflée se furtou ao trabalho; revelou-se um bom marceneiro; e até se tornou honesto.
Por fim, Cândido percebe que considerar este o melhor dos mundos possíveis não significa aceitar todos os revezes passivamente, e sim agir; afinal, “devemos cultivar o nosso jardim”.
Diferente da conformidade de Cândido (antes de descobrir a importância de cultivar jardins), a menina Pollyana exerce seu otimismo de forma ativa através do Jogo do Contente, um jogo ensinado por seu pai no dia em que ela, esperando ansiosamente ganhar de natal, das senhoras da caridade, uma boneca, ganha um par de muletas. Diante da decepção da menina, o pai mostra o lado positivo desse presente: ela deveria agradecer por não precisar usar esse par de muletas.
Após a morte de seu pai, a menina vai morar com tia Polly, uma senhora rica e rabugenta que não tolera o jeito otimista da sobrinha. Lá chegando, Pollyana começa a difundir o tal Jogo do Contente para as pessoas que passa a conhecer: “o jogo era exatamente encontrar alguma coisa com a qual estar contente, não importa o que (...), e quanto mais difícil é, mais divertido se torna resolvê-lo”. Foi assim quando sua tia se irrita com ela por ter perdido a hora do jantar e ordena que a empregada lhe sirva pão e leite na cozinha. A menina fica contente com tal castigo, afinal gosta de pão, de leite e da companhia de Nancy, a empregada da tia.
Se Pollyana e Cândido se derem as mãos, talvez se obtenha uma boa receita de como lidar com os infortúnios, além de ser um interessante exercício para os eternamente insatisfeitos: tentar enxergar sempre o lado bom que existe em uma situação ruim e incentivar os outros a fazer o mesmo. Mas não dá para parar por aí. Há que se agir. Há que se revolver a terra. Há que se cultivar o jardim.
Publicado em 23 de setembro de 2008
Publicado em 23 de setembro de 2008
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