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O horror silencioso

Pablo Capistrano

Escritor, professor de filosofia

Crônicas filosóficas

Um dia, um rapaz que era mais novo que eu talvez uns cinco ou seis anos me procurou. Aquela era uma época sem tantas lan houses espalhadas pela cidade, dessas que oferecem, a preços baixos, uma ou duas horas de contato com um computador; seu objetivo era simples: pedir ao Pablo para digitar umas poesias em um arquivo do Word para daí encontrar alguém que diagramasse em um outro programa qualquer o seu primeiro livro.

Algo não muito difícil de fazer e que eu, apesar do volume de trabalho, com certeza não iria recusar, ainda mais porque se tratava de um favor, e, na vida, quando a gente menos espera, sempre é convidado a fazer um favor para alguém, não é?

Curiosamente, dois dias depois, para a minha surpresa, bem antes do prazo de duas semanas que eu havia pedido, o rapaz voltou ao meu prédio. Quando o porteiro interfonou, disse que havia alguém “meio perturbado” querendo falar comigo, mas que se recusava a se identificar. Pelo canal fechado do condomínio, que oferece instigantes imagens da entrada do prédio para todos os apartamentos, pude ver aquela figura estranha, irreconhecível, com um longo chapéu de palha que sombreava o rosto e deixava os olhos à distância do mundo. Sem saber quem era, e com uma pontada daquele nosso novo medo urbano do outro, resolvi descer e falar com a figura lá em baixo, na portaria, bem à vista dos passantes, do porteiro e dos cento e sessenta apartamentos do meu condomínio.

Demorei algum tempo para entender que o sujeito que estava ali agitado, pedindo de volta seus poemas, dois dias depois de me ter entregue um bocado de folhas de caderno, era o mesmo que eu havia conhecido em algum evento cultural qualquer uns dois ou três anos antes do ocorrido. Eu não vi os olhos, por causa do chapéu. Mas vou confessar: me arrepiei; porque, apesar de aquele cara ter o corpo do meu amigo, sua voz não era a mesma, e sua presença também não. Era como se o sujeito que veio me procurar dois dias antes, com seus poemas e com suas esperanças de um dia ter um livro publicado, não estivesse mais entre nós, e uma outra figura, mais sinistra, selvagem e ameaçadora, tivesse vindo à tona, escondida sob aquele imenso chapéu de palha que mergulhava o rosto em sombras tão viscosas que quase podiam ser tocadas.

Semanas depois ouvi sobre aquela figura um desconcertante diagnóstico: esquizofrenia. O rapaz estava em meio a mais um dos seus surtos, que atormentavam sua família há alguns anos e que esfarelavam sua personalidade, despedaçando seu discurso e lançando-o para longe do mundo médio dos humanos.

Sabe, o fato de eu ser filho de um psiquiatra me forneceu algum pacote qualquer de informações sobre os distúrbios mentais: algumas nomenclaturas, alguns sintomas, algumas descrições de mecanismos biológicos e uma compreensão básica de que existem muitos tipos de loucura.  Mas estar diante daquele novo sujeito, que parecia ter saído de alguma zona cinzenta entre mundos, foi assustador.

Havia um certo horror silencioso, um certo desconcerto, uma inquietante sensação de que aquele fenômeno estranho, aquela bifurcação de personalidade, aquela fratura da linguagem não era deste mundo. Lógico que você vai me dizer que há um neurotransmissor qualquer que faz alguma coisa e que existe um receptor assim e assado que não funciona bem e que talvez um gene qualquer em um local errado possa explicar aquela transformação. Mas, apesar de toda a descrição biológica, há uma rede de significados que a loucura traz e que ultrapassam a carne. Aexandre Kojève escreveu uma vez: “O homem, portanto, só pode aparecer na Terra dentro de um rebanho”.

Esse rebanho é a nossa rede. A nossa matrix social que constrói uma arquitetura de mundo, que cria nossos conceitos e condiciona nossas percepções. Por isso, o estranho, o diferente, ganhou em nosso mundo o adjetivo de “louco”.

Assim, na virada do século XIX para o século XX, a ciência europeia, em seu período de maior delírio de potência, identificou nas práticas da antiga religião xamanísticas sinais inequívocos de que a força mental do xamã ou do pajé derivaria de uma espécie de “experiência expandida de distúrbio mental”. Essa constatação parecia tão evidente que, em 1929, um tal de Ksenofontov, estudando os xamãs da Sibéria, publicou um livro: O culto da loucura no xamanismo Ura-altaico.

Ou seja: o mesmo sujeito que é considerado doente mental na nova sociedade se tornaria uma autoridade espiritual se vivesse em uma sociedade de coletores e caçadores. Aquele que, em um mundo, era considerado um herói da comunidade, em sua luta contra as forças sem forma do outro lado, em um outro mundo seria um paciente em um hospital.

Na verdade a situação não é tão simples. Enquanto o esquizofrênico não consegue focar sua experiência e direcioná-la através de um controle consciente de sua viagem, o xamã mantém sua experiência focada. Ele vai e volta aos mundos sombrios da sua própria imaginação, ou à casa distante dos espíritos (como você achar melhor), e consegue transformar o sentido da sua viagem em benefício da comunidade, para ser posta a serviço dela, em função de suas demandas e de seus anseios.

Se o homem só aparece na Terra dentro de um rebanho, é certo que o rebanho que cria indivíduos esquizofrênicos é muito diferente do rebanho onde se criam xamãs. Talvez um dia, no futuro, alguém descubra que a natureza do distúrbio de nossos loucos seja só um sinal da estranha doença de nossa própria época.

Publicado em 23/09/08

Publicado em 23 de setembro de 2008

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