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BREVE APRESENTAÇÃO DE UMA FARSA VICENTINA, AUTO DA ÍNDIA, EM DIÁLOGO COM O REINADO DE D. MANUEL

Raquel Menezes

Professora, pesquisadora, editora do site Pequena Morte

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar

Fernando Pessoa

O diminutivo impera, a gente amesquinha-se, a nação decai.

Oliveira Martins

Segundo Cleonice Berardinelli, Gil Vicente – autor que nasceu durante o reinado de Afonso V e viveu até o reinado de D. João III – foi um dos maiores autores dos três primeiros séculos da Literatura Portuguesa, ao lado de Fernão Lopes e Camões. A obra teatral vicentina é a primeira manifestação séria e continuada de Portugal, pois o teatro que o antecede se restringia à representação de momos e entremeses, ou seja, sem potencial literário mas de grande aparato cênico. Em boa parte de seu fazer teatral, Gil Vicente atenta para as questões religiosas (Auto da fé) e para a crítica social (Auto da Índia).

A farsa Auto da Índia, de Gil Vicente, lançada em 1509, é uma pantomima da sociedade ibérica nos tempos da corte de D. Manuel. A peça narra a história de uma Ama que, diante da partida de seu marido para a Índia em busca de riqueza, aceita a visita de dois amantes. Além da protagonista, outras quatro personagens fazem parte do enredo: a Moça, criada que em tom leve e irônico critica a postura venturosa de sua ama; o português, de nome Lemos, e o Castellano, que, aproveitadores da ausência do marido, fazem a corte à esposa solitária; e, claro, o viajado marido da Ama. Esse auto é o primeiro texto teatral que encena uma intriga, uma história completa. As circunstâncias desse adultério são as profundas alterações – nem todas positivas – que a busca pela glória através da expansão marítima estava a provocar na sociedade portuguesa da primeira década do século XVI.

Esta farsa, composta por cinco “figuras”, apesar de ser contínua e não possuir cenários e histórias diferentes, pode ser lida em três momentos: a conversa inicial da Ama com a Moça acerca da viagem do marido, a chegada dos amantes à casa da esposa “solitária” e o retorno do marido “negro” e agora “gordo” a seu lar, deparando-se com uma esposa falsamente, embora convincentemente, triste com a partida do marido e agora alegre com seu retorno. A farsa termina com:

Vão-se ver a Nau, e fenece esta primeira farsa.

Não observamos nenhum tipo de punição para a Ama, ou seja, seu adultério fica impune. Contudo, é relevante pensar que um castigo para a personagem principal destruiria o efeito cômico característico da farsa, como também fugiria ao objetivo de Gil Vicente, que não era punir o adultério, mas sim preveni-lo.

O adultério tenta ser justificado pela juventude e beleza da Ama, como podemos observar em:

Est' era bem graciosa
Quem se ve moça e fermosa.

E, mais adiante:

Partem em maio daqui,
Quando o sangue novo atiça:
Parece-te que é justiça?

Entretanto, o que o narrador ambiciona mostrar é o mal que as expedições marítimas, objetivando o enriquecimento da coroa, estão fazendo à sociedade portuguesa, pois as mulheres ficam sozinhas e “sem ceitil”, tendo que arrumar formas para seu sustento.

A personagem farsante, então, com seu calor juvenil e a convicção de que “O certo é dar a prazer”, aceita e engana, além de seu marido, seus dois amantes (um com o outro), com medo de ficar à espera de seu marido “gamo” e “demo”, que poderia não regressar. Vale ressalvar que, embora ao final do texto a Ama, com todas as suas artimanhas cômico-sórdidas dignas do teatro vicentino, revele ao marido a ansiedade e o desejo de vê-lo novamente, na verdade estava apenas preocupada em não ter como viver sem uma figura masculina que a pudesse sustentar. Nessas condições, é a personagem da Ama quem se oferece aos amantes ao contar que o marido viajara, como pode ser visto no trecho:

Foi-se à Índia meu marido,
e depois homem nascido
não veio onde vós cuidais;
e por vida de Constança,
que se não fosse a lembrança...

Esta farsa vicentina, além de valer-se do adultério, apontando-o com uma das características da decadência dos costumes portugueses, também satiriza a busca pelas riquezas no Oriente. O narrador faz uso da personagem do marido, um soldado que, nas palavras de Saraiva e Lopes, “confessa, na intimidade, não ter tido outro propósito senão o de enriquecer com a pilhagem guerreira”. Afinal, embora o espírito de cruzada fosse de grande valia para o rei de Portugal, era também, ainda nas palavras desses autores, “a representação coletiva e heroica sem alternativa” dos soldados que, forçados a participar, acabavam se aproveitando da situação e enriquecendo às custas do Oriente. Esse aproveitamento torna-se notável no texto vicentino em três episódios: quando a Moça fala à Ama que o Amo, o marido, regressara “gordo” – o que marca a saúde e a fartura, ideias fortemente presentes no pensamento burguês da época; quando, satisfeito, o Marido conta à esposa que “trouxera” o seu “quinhão, um milhão”; e, finalmente, na fala da esposa:

Quero eu rir
disso que vós me dizeis.

E ainda

A nau vem bem carregada?,

que aponta para o contentamento da esposa com a atual circunstância financeira do marido.

No livro História de Portugal, Oliveira Martins, historiador português do século XIX, em um capítulo destinado a descrever e relatar a Dinastia de Avis (1500-1580), aborda as ambições de D. Manuel consequentes da conquista da Índia: “queria (...) figurar entre os primeiros soberanos da Europa” e, para isso, “resolveu mandar a Roma uma embaixada”. Por isso, em um  relato onde o exagero se faz presente, o historiador apresenta a ostentação, por parte de D. Manuel, das riquezas advindas do Oriente.

O enriquecimento do reino através da exploração das riquezas da Índia não permitia uma reflexão da corte a respeito das questões dos judeus e/ou de todas as outras problemáticas que o reino enfrentava enquanto pensava nos carregamentos e nas notícias das vitórias conquistadas além-mar. O reino era um lugar de delícias e fantasia onde, segundo Oliveira Martins, “o rei comia, adormecia, ouvia os conselheiros para tratar dos negócios públicos ao som de músicas permanentes” e, enquanto ceava o rei, “os chocarreiros castelhanos diziam disparates intencionais, como todos os bobos”.

O Auto da Índia faz crítica ao reino de D. Manuel e às alterações sofridas na sociedade portuguesa. A partir da leitura do texto de Oliveira Martins, isso se faz mais evidente; afinal, entre outras coisas, o historiador comenta o quanto o “comércio traduzia um sério movimento da inteligência”; por sua vez, no drama de Gil Vicente, fica evidente o quanto as atividades comerciais, outrora menos importantes, agora são motivadoras de toda uma sociedade. Nesse sentido, é emblemática a fala da personagem principal, quando ela se queixa do marido “fastio” que a deixou sem “ceitil”. Essa valorização da moeda, somada aos grandes investimentos em esquadras, que, por mais que trouxessem muito do Oriente gastavam com intensidade, pois era grande o número de embarcações naufragadas, foi um dos motivos da ruína da fazenda pública no reinado de D. João III.

Ainda nas palavras de Oliveira Martins, “a justiça era um mercado, no reino e na Índia”, o que leva a pensar que outro motivo para a impunidade do adultério da personagem da Ama, além do traço cômico que Gil Vicente pretendia dar à farsa, era uma sutil menção ao fazer judiciário da época, que se preocupava mais com as riquezas do que com a moralidade.

Sendo assim, é possível concluir que o texto Auto da Índia, assim como tantos outros vicentinos, fazendo uso de artifícios cômicos, é uma crítica ao que a sociedade portuguesa estava a se tornar por decorrência da ambição do reino em enriquecer e ser poderoso diante das outras nações. Para tal tarefa ambiciosa, o reino enviava os maridos e filhos portugueses ao Oriente, que, mesmo com grandes chances de voltarem “gordos” e cheios de fartura, corriam o risco de não voltar, deixando suas mulheres à espera de seus retornos. A Ama, notável personagem feminina de Gil Vicente, e seu adultério são um alerta que o escritor faz para a sociedade da época, com a intenção de impedir a queda do reino português no que diz respeito às questões da moral.

Publicado em 30 de setembro de 2008

Publicado em 30 de setembro de 2008

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