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A mais maleável das coisas
Pablo Capistrano
O jogo da morte é o nome do último filme de Bruce Lee. Ele o deixou incompleto: morreu antes de finalizá-lo. Lee tinha hipersensibilidade ao Equagesic (um anestésico composto à base de meprobamate e aspirina). Em 1978, o filme foi concluído com a ajuda de um dublê.
O cerne da filosofia de Lee (que era pós-graduado em Filosofia com uma dissertação baseada, salvo engano, no pensamento de Nietzsche) se apresenta no filme através de várias sequências de luta. O protagonista sobe vários andares de um templo e em cada um enfrenta um oponente especializado num tipo de combate. As referências a um processo iniciático de autoconhecimento são claras. Para treinar, Lee usava dremmy, um boneco de madeira que tinha dois braços abaixo do pescoço e outro na altura da cintura. Sua ideia era de que: “como a água, o sparring (treino de luta) deve ser sem forma. Coloque a água numa xícara. Coloque-a numa garrafa, ela se torna parte da garrafa... Agarre-a e ela lhe escapará por entre os dedos. O estado de nada pode ser confirmado. A mais maleável das coisas não pode ser quebrada”.
Para entender esse tipo de pensamento, é necessário treinar o olhar no exercício do movimento, no discurso subliminar do corpo. Como a música e o Kung Fu, a literatura é a mais maleável das coisas.
Isso pode ser visto de maneira clara na escrita ou na fala. O que diferencia um poema de uma crônica de jornal, um artigo de um conto ou uma peça teatral de um romance não é apenas o conteúdo do texto ou a arrumação das letras e das frases. Como a água, a linguagem se adapta à forma de seu recipiente.
O aprendizado da escrita parece ter muito a ver com a técnica de construir esses recipientes. Alguns autores se especializam numa ou noutra forma de combate. Como os praticantes de artes marciais, que gostam mais de usar as mãos, que chutam melhor, que usam bem a espada ou o Nunchaku, existem autores que se dão melhor com a poesia, outros que brilham no romance e alguns que fazem crônicas magistrais. Se há um aprendizado na escrita, este parece ser o do aperfeiçoamento da construção dos recipientes.
Não se domina a linguagem tentando parti-la ao meio. Você pode romper o recipiente que a contém para fazê-la espalhar-se, pode fundir recipientes diferentes para dar-lhe novas formas, mas retê-la nas mãos não é uma experiência que possa ser descrita.
Jogar o jogo da linguagem é um exercício muito saboroso, que às vezes põe o escritor em xeque-mate. Tem gente que morre disso. Tem gente que cresce com isso. Tem gente que constrói um punhado de obras-primas e tem gente que ganha o prêmio Pulitzer. Mas o bom mesmo, o instigante desse jogo, o mais útil para quem joga, é o aprendizado do estar vivo. A percepção de que, como Bruce Lee tentou mostrar com seus golpes, a vida não se retém, ela se adapta.
Publicado em 14 de outubro de 2008
Publicado em 14 de outubro de 2008
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