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Até nunca mais por enquanto (ou duas Cecílias)

Ieda Magri

Até nunca mais por enquanto, livro de Luís Antônio Giron, coloca o leitor frente a frente com 20 pesadelos – contos pungentes, aparentemente enredados por acontecimentos gratuitos e vertiginosos. Digo aparentemente porque a coerência com que são montados os contos faz com que o leitor tente seguir uma suposta trilha (mil vezes interrompida, totalmente obstaculizada e não poucas vezes apagada), brincando de esconde-esconde com as palavras e os sentidos outros, não-ditos.

O título já é um menino atrás de um tronco de árvore contando 1, 2, 3 enquanto o outro se esconde: um até nunca mais definitivo, melancólico e ácido vem seguido de um por enquanto cheio de promessas e de um redizer as coisas. Ou duas cecílias é por minha conta, mas tirado de um conto do livro: Avestruz no vergel. Nele, duas Cecílias “não gêmeas, mas uma era a outra” na janela. Cecília sisuda, Cecília serelepe. As duas cecílias, confessa o narrador, deixam-no confuso. Se lermos as duas cecílias, mulheres, bonecas, numa metáfora da literatura, temos como que um aviso do que vamos encontrar no livro de Giron: uma escrita sisuda que se converte em serelepe e vice-versa, confundindo o leitor.

No começo, Cecília sisuda, mais velha, mais autoritária, está um pouco descolada  da irmã, o que muda sem aviso prévio ao leitor ou ao narrador a ponto de haver uma completa inversão de papéis: a sisuda, a mais consequente, vai cair pela janela. Olhamos para baixo e vemos a bonita imagem, ou horrenda, não posso dizer em definitivo, de um avestruz com a cabeça enterrada no chão. A Cecília que fica, pensamos, é a serelepe, a inconsequente, a mais bem-humorada. Não. A que fica, não sabemos mais, nem o narrador, nem ela mesma, se é a sisuda ou a serelepe, tal é a fusão de uma na outra. A Cecília que caiu? “Vão consertá-la...”.

Temos aqui, num jogo, um convite à decifração do sonho-pesadelo: as duas Cecílias como as duas faces do livro: um tanto ao riso, ao deleite, outro tanto ao tiro certeiro das imagens-bala que ferem sem volta.

Os outros contos estão impregnados das duas Cecílias: humor macabro, crítica séria; uma criança de branco e cabelos compridos por trás das palavras desafina os ouvidos atentos com sua risadinha incontida; um senhor de fraque com uma arma escondida. Um é o outro, tudo se confunde e o autor oferece um travesseiro e uma cama quentinha para o leitor começar a entrar, não no sonho, mas no pesadelo. Ele, o leitor, está avisado desde sempre, desde o sumário que se transforma em tábua de pesadelos. Os contos não são uma noite clara: uma vez fisgado pela palavra-imagem inicial, o leitor está dentro do sonho ruim, e daí não há saídas: é preciso abrir quantas portas o corredor labiríntico apresentar; enfrentar os monstros ou correr deles.

Na medida em que o leitor avança, os pesadelos se complicam, até que, em Letra morta, último conto do livro, um jovem estudante que aluga um quarto se ocupa interminavelmente (é o conto mais longo do livro) em desvendar a Glória, uma menina morta que se escreveu, inscreveu, entalhando as palavras nos móveis do quarto agora alugado e obsessivamente marcado também pelo jovem. Ele, o estudante, já havia antecipado esse desfecho aglutinador e vicioso: “Glória, o te perscrutar supõe envolvimento”.  A Glória, corpo, matéria, não é encontrada; virou duas chuletas que foram enterradas pela mãe. Daí a Glória ser invenção. Do estudante-narrador-escritor que começa por escrever os fatos passados e passa a ser escrito por eles; da mãe da menina e inventora das histórias que conta jurando verdade.

A glória é satirizada pelo escritor que a desdenha na ousadia de uma escrita ao mesmo tempo irracional e planejada, firmemente construída para que possa ser feito o movimento inverso.

Ficha técnica do livro:

  • Título: Até Nunca mais Por Enquanto
  • Autor: Luís Antônio Giron
  • Gênero: Conto
  • Produção: Record

Publicado em 14/10/2008

Publicado em 14 de outubro de 2008

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