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O autor na fotografia contemporânea: entre a subjetividade e o referente

Leandro Pimentel Abreu

Doutorando em Comunicação pela Escola de Comunicação/UFRJ

A interseção entre a fotografia e a arte, a partir dos anos 1950, coincide com uma revisão da condição do artista como autor e dos limites da obra como resultado de uma criação subjetiva. A possibilidade de desenvolver essa questão levou-nos a um desvio em direção aos modos de circulação e fruição das obras. O desvio ocorre pela própria dificuldade em se definir o "fotográfico", seja em relação à sua pureza ou ao alargamento de seu campo, através das diversas contaminações com outras técnicas de produção e de apresentação dos discursos. Nesse caso, podemos questionar se o encontro mais explícito da fotografia com a arte, a partir da segunda metade do século XX, seria o prenúncio de uma "fotografia expandida", que passa a se configurar mais nitidamente na atualidade, quando se difundem diversas tecnologias e modos de manipulação e de circulação das imagens. Ou, talvez, o próprio termo "expandido" já pressuporia um limite que obstrui a potência da obra, erigindo uma oposição que já não tem mais relevância na medida em que a própria materialidade do objeto artístico é questionada. Preferimos nos desviar dessas considerações a fim de pensar a obra como um acontecimento, um composto de forças que cada um irá construir com as ferramentas que mais lhe convier. Assim, voltamos nossa observação para o modo como essas imagens circulam e o uso que se faz delas. Afastamo-nos do ato fotográfico como momento enfático da criação e nos encontramos com o modo como a função autor irá incidir na experiência da obra.


Capa do primeiro libro publicado pelo casal Becher, em 1970

Nesse percurso destacamos a convergência entre fotografia e arte no final dos anos 1950 através da obra do casal Hilla (1934) e Bernd Becher (1931-2007), cuja estratégia visava o apagamento de traços subjetivos nas imagens através de um sistema de produção e de exposição estritamente orientado. Tal método abre uma via que se distancia do embate que havia no campo da fotografia moderna, que, grosso modo, pode ser ilustrada pela polarização entre a "fotografia pura e direta" de Alfred Stieglitz (1864-1946) e a "manipulada e construída" de Man Ray (1890-1976), como propõe Fatorelli (2003, p. 85).

Em contrapartida, essa oposição formal se atenua em uma proposta comum que aponta para uma "engenharia da interioridade do sujeito e para uma lógica subjacente da imagem, (...) intimamente associada ao conceito de inconsciente e ao uso de metáforas" (idem, p. 84). Ao nos voltarmos para a produção das vanguardas na Alemanha, país onde os Becher desenvolveram sua obra, vemos um certo paralelismo entre a oposição Man Ray/Stieglitz e dois movimentos artísticos que tiveram destaque no período entre as guerras: a Nova Visão (Neue Optik) e a Nova Objetividade (Neue Sachlichkeit). Há, porém, na Nova Objetividade - e nesse sentido ela se distingue do movimento chamado "fotografia direta" (Straight Photography), protagonizado por Stieglitz - a proposta de uma dessubjetivação, uma ética de modéstia diante da natureza e de reserva por parte do fotógrafo. Passa-se da visibilidade da profundidade, humana e subjetiva, para a visibilidade da superfície, mecânica e objetiva (Rouillé, 2005, p. 360), afirmando uma certa neutralidade, um olhar maquínico que sintetiza o princípio de um recuo do sujeito autor. A aproximação entre a proposta dos Becher e a Nova Objetividade nos leva a repensar a função do autor no contexto artístico contemporâneo, quando são indicados alguns caminhos que se abrem na produção e na circulação das fotografias e dos discursos em geral.


Albert Renger Patzsch - tornearia industrial e Mina Katharina - 1954

Em um ensaio de 1934, Walter Benjamin sugere que, ao invés de nos perguntarmos como uma obra se vincula às relações de produção de uma época, nos indaguemos como essa obra se situa dentro dessas relações (1996, p. 122). Sua crítica se direciona à indiferença dos autores em relação aos modos cristalizados com que os discursos circulam e são produzidos. Nesse sentido, destaca, por exemplo, a distinção convencional entre autor e público, entre outras oposições habituais entre gêneros e formas literárias, que poderiam, se ultrapassadas, beneficiar uma produção potencialmente revolucionária. Em um texto anterior, Benjamin já chamara atenção sobre a ascensão de uma certa "criatividade", "cujo pai é o espírito de contradição e a mãe é a imitação - (que) se afirma como fetiche, cujos traços só devem a vida à alternância das modas" (1996, p. 105). Ironicamente, ele se dirige diretamente a Albert Renger-Patzsch, um dos mais atuantes membros da Nova Objetividade, afirmando que o emblema desse "fotógrafo criativo" é "a vida é bela", e cita o célebre trecho de Bertold Brecht (1898-1956):

nunca a simples reprodução da realidade consegue dizer algo sobre a realidade. Uma fotografia das fábricas Krupp ou da AEG não diz quase nada sobre essas instituições. A verdadeira realidade transformou-se na realidade funcional. As relações humanas, reificadas - numa fábrica por exemplo - não mais se manifestam. É preciso pois construir alguma coisa, algo de artificial, de fabricado (Benjamin, 2006, p. 106).

Os Becher voltam-se justamente para o mesmo tema das fotografias de Renger-Patzsch: as "frias" formas industriais e ainda fotografadas de modo aparentemente mais neutro. Tal modelo também se aproxima, estética e metodologicamente, do método de August Sander (1876 - 1964), que, assim como Renger Patzsch e Karl Bolssferdt (1865 - 1932), tinham um trabalho fotográfico que o aproximava da proposta dos artistas da Nova Objetividade. Sander desenvolveu um inventário tipológico, cujas imagens foram organizadas sob um modelo enciclopédico. Não obstante sua proposta quase científica, seu livro, Faces of our Time, publicado pela primeira vez em 1929 com parte dos retratos feitos para seu grande projeto, People of the 20th Century, foi apreendido em 1936 pelo governo nazista.


August Sander: Carregador (1929), Desempregado (1928) e Farmacêutico (1907)

Porém, além de afirmar o aspecto mimético da técnica fotográfica - que incidia, entre outras coisas, sobre as escolhas da perspectiva, da objetiva, da composição, do fundo e da qualidade luminosa -, a produção dos Becher investia na organização e composição do conjunto das imagens e no modo de apresentação. O deslocamento em relação ao projeto da Nova Objetividade se alinha com um novo panorama artístico que se configura mais intensamente a partir dos anos 1960, desviando "a questão estética do eixo subjetivo e processual para o de posições relacionais ocupadas pelo artista e pela obra no interior do campo cultural" (Fatorelli, 2003, p. 126). No âmbito de uma produção cuja base é fotográfica, ocorre um desvio em relação à tensão entre a mecanicidade da técnica e o olhar do sujeito, que animou grande parte das reflexões sobre a fotografia, levando-nos a repensar a ideia de autoria vinculada ao ato fotográfico e da imagem ao referente.

Desde sua origem, os encontros da fotografia com a arte aconteceram por diversas vias. Além da reprodutibilidade, a fotografia introduz de modo mais explícito a máquina e a indústria como parceiros aparentemente fundamentais na construção das imagens. A ideia da ausência do autor artesão ou mesmo a de um eficiente orientador das condutas do aparelho se configurou como uma das principais críticas à trivialidade das imagens fotográficas, que, como Baudelaire definiu em O público moderno e a fotografia, "muito contribuiu, aliás, como todo progresso puramente material, para o empobrecimento do gênio artístico francês". Seria, então, preciso superar resistências, "exorcizar o fantasma do Touro Sentado" que, "no seu gesto inconsciente, encarna essa manifestação do acaso" (Lissovsky, 2002, p. 5), transformando em imagem o empobrecimento do espírito que advinha dos ares gélidos que sopravam com a modernidade e o crescimento industrial.


Hilla e Bernd Becher: casas com traves de madeira (1959-1974)

As estratégias de resistência a essa perspectiva desumanizadora dos novos tempos aparecem no campo da fotografia moderna em obras que investem na afirmação do olhar subjetivo do autor. Essa tendência em humanizar a técnica tornou-se uma das principais vias da produção fotográfica em um território distinto do da arte. Em Filosofia da caixa-preta, publicado em 1983, Vilém Flusser, ao conceber uma pureza humana distinta dos artifícios tecnológicos, afirmou que os aparelhos tenderiam a condicionar o pensamento do homem. A reconquista da liberdade viria, portanto, de uma mudança de consciência dos fotógrafos, esses funcionários do aparelho. Ou seja, seria preciso penetrar na caixa-preta e subverter suas programações a fim de introduzir elementos humanos imprevistos. (Flusser, 1998, p. 45).

Entre as diversas entradas da fotografia no terreno artístico após a Segunda Guerra, a via dos Becher afirmou uma tendência da qual grande parte da produção moderna tentara se afastar através da recusa da objetividade e com investimento nos aspectos subjetivos da imagem fotográfica. No final dos anos 1950, o casal iniciou um trabalho sistemático que visava fotografar as instalações de fábricas construídas no final do século XIX e início do século XX, prédios que começavam a ser desativados e demolidos. Fotografaram torres de caixa d'água, entradas de minas, estruturas industriais, celeiros, armazéns e arquiteturas vernaculares alemãs. Esse trabalho, uma espécie de inventário tipológico, compondo uma taxionomia das formas industriais modernas, caracterizou-se pela rigidez metodológica no processo de construção de sequências de fotografias em preto e branco que obedeciam a um estrito rigor formal. Tais imagens eram agrupadas em função da utilidade dos objetos fotografados e dispostas em sequências que possibilitavam que fossem observadas as diferenças de detalhes entre as formas semelhantes. Apesar de usarem uma estética próxima a um tipo burocrático de documentação, uma espécie de 3 x 4 daquelas construções, o que se apreende não são somente as formas escultóricas que serviram como modelo para as imagens, mas o conceito que se apresenta a partir dessas escolhas que se manifestam na obra. A apresentação permite que as imagens afetem o observador de modo a produzir uma chave que possibilite a travessia do pensamento e da história que existe naquelas formas, assim como do próprio modo de representação e de organização do saber na nossa cultura.


Karl Blossfeldt, cujo trabalho pioneiro o aproximou da proposta da Nova Objetividade, publicou em 1928 o livro Formas da natureza (Urformen der Kunst), com detalhes de vegetais fotografados sistematicamente desde a década de 1890. / Karl Blossfeldt: Papoula oriental (1925) e Curcubita (1928)

Os Becher criaram um dispositivo que permite perceber a fotografia não como um documento que representa um objeto com identidade pontual nem que constitua um olhar subjetivo sobre a cultura alemã dessa época. Tal proposta é sublinhada pela escolha da temática aparentemente banal, que indica o afastamento de um tempo marcado por um acontecimento ou a imagem fotográfica como um simples rastro de um evento. Para um estudante de Arquitetura, poderia ser simplesmente um memorial dos vestígios da arquitetura alemã após a Segunda Guerra, porém o que parece ter possibilitado que essa obra conquistasse espaço em um novo e complexo ambiente artístico que surgiu a partir dos anos 1960 foi a forma com que dissolveu o isto foi (Barthes, 1984, p. 14) da fotografia através de imagens formalmente documentais.

O gesto dos Becher parece seguir inversamente a receita de Flusser, que buscava uma humanização da máquina. Eles afirmam a programação do aparelho e, investindo em seu caráter especular, compõem um conjunto que se sustenta na experiência da obra. A autoria que o casal divide desde o início do projeto (que se prolongou por mais de 40 anos) pressupõe a ausência do Eu Bernd e do Eu Hilla. Não há, aparentemente, um estilo pessoal na repetição do mesmo padrão de composição e de luminosidade. Há um rígido programa seguido docilmente por uma máquina produtora de imagens.

Como uma ceifadeira que passa pela plantação de cana e corta todos os pés exatamente do mesmo tamanho, o dispositivo criado pelos Becher circula pelas áreas industriais produzindo imagens. A autoria não está no olhar original que só eles tiveram e gerou uma composição imprevista; está na própria ausência de subjetividade com que marcam a obra. Ao se ausentarem, permitem que o observador, assim como os vários tempos e espaços, penetrem. Hilla, ao comentar a rigidez do método, afirmou que as coisas têm algo a dizer, e a escolha deles é deixar que elas falem por si.

Em 1969, em uma conferência chamada O que é um autor?, Michel Foucault destacou a diferença entre os modos de circulação dos discursos através da função autor. Segundo ele, anteriormente o discurso em nossa cultura não era um produto ou um bem, era "um ato que estava colocado no campo bipolar do sagrado e do profano, do lícito e do ilícito, do religioso e do blasfemo". A aparição do autor constitui "o momento crucial da individuação na história das ideias, dos conhecimentos, das literaturas e na história das filosofias e das ciências". Os textos que hoje chamamos literários (contos, epopeias e narrativas em geral) antes eram colocados em circulação sem que ninguém reivindicasse a autoria, enquanto os textos que chamamos hoje científicos precisavam de um autor que lhes desse legitimidade. No século XVII ou XVIII produziu-se o que Foucault definiu como um quiasmo: os textos científicos passam a ser aceitos por eles mesmos, enquanto dos literários passa a ser exigido o carimbo de origem.

No ano seguinte, Foucault apresenta a mesma conferência acrescida de três parágrafos, nos quais ele reforça a diferença entre o autor - uma fonte de significações que precederia a obra - e a função autor - um princípio que rege a circulação dos discursos, variável em cada contexto histórico e social, e que, no contexto moderno, tem um importante papel na distinção entre o real e a ficção:

O autor torna possível uma limitação da proliferação cancerígena, perigosa de um mundo onde se é parcimonioso não apenas a seus recursos e riquezas, mas também aos seus próprios discursos e suas significações. O autor é o princípio de economia na proliferação de sentido. Consequentemente, devemos realizar a subversão da ideia tradicional do autor. (...) O autor não é uma fonte infinita de significações que viriam preencher a obra, o autor não precede as obras. Ele é um certo princípio funcional pelo qual, em nossa cultura, delimita-se, exclui-se ou seleciona-se: enfim, o princípio pelo qual se entrava a livre circulação, a livre manipulação, a livre composição, decomposição, recomposição da ficção. Se temos o hábito de apresentar o autor como gênio, como emergência eterna de novidade, é porque na verdade nós o fazemos funcionar de um modo exatamente inverso (Foucault, 1992, p. 187).

Foucault se referia à literatura, porém parece ser pertinente utilizar a função autor para pensar outros tipos de produções discursivas. O surgimento da fotografia e sua circulação, tanto no papel de documento como de expressão subjetiva, coincide com uma confusão desses limites. De um lado, ela encarna duas instâncias que contribuem para colocá-la ao lado dos discursos ancorados em um "mundo real": o testemunho do fotógrafo e a possibilidade de resgate de uma verdade na imagem. Por outro, qualquer imagem fotográfica que não tenha uma legenda ou qualquer outro direcionador de leitura se abre para uma infinidade de sentidos. Enfim, ora pendendo para o documental, ora para o ficcional - em um ambiente em que os limites entre esses dois territórios vão se tornando gradativamente mais porosos -, a imagem fotográfica serve como um tipo de abrigo multiforme e multiuso com o que o observador (assim como o autor) tira o proveito que mais se aproxima de sua necessidade. Um tipo de signo instável. Uma imagem paradoxal que parece encarnar junto com outras produções imagéticas as ambiguidades que se diluem junto com as fronteiras que separam as dualidades que forjaram o pensamento hegemônico. Atualmente, impulsionada pela proliferação da imagem digital, essa indeterminação tornou-se ainda mais explícita, o que levou Thomas Levin a definir que estamos vivenciando a "ansiedade semiótica" de um "momento histórico-midiático transicional" (2006, p. 200).

A obra dos Becher se inscreve no campo artístico em uma tendência que floresceu de forma mais vigorosa nos anos 1980 através da maior aproximação entre a fotografia e a arte: a dessubjetivação e a desmaterialização, que, em outros termos, significa a desmistificação do artista criador e da originalidade da obra. Esse processo não implica o desaparecimento total do objeto de arte, mas o "fim da hegemonia e do culto que é dedicado ao objeto na arte" (Rouillé, 2007, p. 21). Para André Rouillé, a liga arte-fotografia é o resultado de um longo caminho de declínio dos valores materiais e artesanais da arte, deslocando os critérios artísticos corporificados há muito tempo pela pintura a outros critérios associados à fotografia. "Seu aparente déficit de materialidade e de subjetividade" corrobora com o "processo que leva obras-objetos feitos para olhar rumo a propostas sem forma material fixa, ou seja, obras feitas para o pensamento" (idem, 2005, p. 21). Os fotógrafos que quiseram fazer arte no campo da fotografia tentaram embaralhar as capacidades miméticas da imagem, recusando a representação através das suas propriedades tradicionais, como a nitidez e a transparência, enquanto os artistas aceitaram esse mimetismo. Porém, não como uma representação do referente, mas como uma apresentação.


Hilla e B. Becher: Gasômetros (Bélgica, Alemanha, Inglaterra, EUA - 1965-1992)
e Caixas d'água (Bélgica, Alemanha, França , Itália - 1966-1986)

Na passagem da produção artística moderna para a contemporânea, articula-se em diversas obras o abandono dos critérios de autenticidade que haviam legitimado o valor artístico de um objeto. No plano estético, há o afastamento da exigência de originalidade que evoluiu na modernidade sobre o critério de atribuição do objeto a um autor de qualidades suscetíveis a fazer dele mais do que um simples fabricante, colocando em questão o conjunto obra-artista ao lado de conceitos como sinceridade, desinteresse, interioridade e inspiração (Heinich, 1999). Em 1917, o gesto de Duchamp, de propor um urinol como objeto de arte assinado, põe à prova a autenticidade do objeto de arte como algo criado pela mão do artista. Por mais inovadoras que as experiências formais modernistas tenham sido, foi necessário produzir um questionamento maior sobre as próprias certezas das vanguardas. Ou seja, paralelamente à aproximação entre a arte e a indústria - não somente no âmbito das imagens técnicas, mas também em outros tipos de produção, como a escultura ou a própria pintura, que passam a ter uma interdependência com a indústria e as pesquisas tecnológicas - é, também, posta em causa a atribuição da obra a um autor e o próprio estatuto de arte.

Walter Benjamin, ao pensar o compromisso do artista e do intelectual com a justiça e a liberdade, destaca a força revolucionária do Dadaísmo, na medida em que submetia a arte à prova de autenticidade. Ao colocarem objetos do cotidiano em uma moldura, esses artistas "explodiam o tempo", coincidindo com o ideal revolucionário benjaminiano, no qual era necessário modificar o aparelho produtivo e não somente abastecê-lo - deslocar a arte do território que foi determinado para ela. Nesse movimento de apropriação e refuncionalização, os dadaístas transformaram a arte em evento e o evento em arte. "O menor fragmento da vida diária diz mais do que a pintura. Do mesmo modo, a impressão digital ensanguentada de um assassino na página de um livro diz mais do que o texto" (Benjamin, 1996, p. 128). Nessa tendência, o diálogo com a fotografia fica mais explícito, ultrapassando a tensão entre a presença e a ausência do autor, através do questionamento do próprio fazer artístico. Naturalmente, essas propostas entram em conflito com o próprio mercado de arte e com o pensamento hegemônico em geral sobre o que seria um artista.

Os pontos litigiosos se referiam não somente à relação do objeto com o seu referente, mas também ao estatuto profissional de seu criador e o seu reconhecimento pelas autoridades competentes, sua sinceridade no momento de criação da obra, assim como saber se o objeto era um original ou uma réplica e se ele tinha sido concebido e executado pelo próprio artista durante as fases de realização e criação (Heinich, 1999, p. 7).

Diante da inadequação de os critérios de autoria - como a ideia de originalidade e de autenticidade, que sustentou a arte ocidental durante um longo período - darem conta da produção das vanguardas, surge uma tendência de repensar essa tradição através de obras que afirmam a arte como um acontecimento, como um atravessamento de forças que se explicitam no dispositivo. O observador, ao se dar conta da rede de agenciamentos que se potencializam na obra, pode tornar-se agente de sua experiência. Nesse sentido, podemos pensar um diagrama, um texto de apresentação, a crítica, o espaço arquitetônico e toda uma rede de forças que perpassam a experiência da obra. Evidenciar o dispositivo, apresentar as estratégias da obra e os modos com que o observador pode se compor com as forças que a atravessam implicam a possibilidade de uma experiência mais livre das dicotomias que estão na base da representação e são criadoras de falsas oposições (Parente, 2008, p. 6).


Lazlo Moholy Nagy: fotomontagem (1925) e Berlin Radio Tower (1928)

A função autor atua na delimitação desses campos, determinando a diferença entre uma obra como um tipo de discurso científico, sustentada nos mecanismos de legitimação de uma disciplina em um contexto histórico, um discurso artístico, no qual o autor personificado se insere como fonte de origem, e um discurso cotidiano, no qual haveria apenas a utilidade de registrar uma presença ou gerar uma ação. Ao descartar o autor como indivíduo real, o interesse de Foucault se voltou para pensar a função autor como característica dos modos de existência, circulação e de funcionamento dos discursos no interior de uma sociedade. No caso da arte, esse autor não se caracterizaria por essa subjetividade que impregnaria a obra, mas por sua própria ausência.

No início da sua conferência de 1969, ele toma emprestada a frase de Beckett: "Que importa quem fala, alguém disse que importa quem fala". Nela, afirma, está embutida uma ética da escrita contemporânea que pode ser exemplificada em uma indiferença em relação ao autor e ao discurso como expressão de interioridade. Segundo Giorgio Agamben, nesta divisão entre o sujeito-autor e os dispositivos que consolidam sua função na sociedade "volta a aparecer um gesto que marca profundamente a estratégia foucaultiana", que ele define como a presença do sujeito "apenas através dos processos objetivos de subjetivação que o constituem e dos dispositivos que o inscrevem e capturam nos mecanismos de poder" (Agamben, 2007, p. 57). A marca do autor é justamente o seu ausentar da escritura, como a construção de um vazio; ou "trata-se da abertura de um espaço onde o sujeito que escreve não pára de desaparecer" (Foucault, 1992, p. 269). O sujeito não como algo que poderia ser buscado como algo substancial presente em algum lugar,

ele é o que resulta do encontro e do corpo-a-corpo com os dispositivos em que foi posto - se pôs - em jogo. (...) Uma subjetividade produz-se onde o ser vivo, ao encontrar a linguagem e pondo-se nela em jogo sem reservas, exibe em um gesto a própria irredutibilidade a ela (Agamben, 2007; p. 57).

Os fragmentos industriais fotografados pelos Becher não são retratados, mas colocados em jogo através do encontro com o dispositivo que eles criaram. Não se trata de representações ou de simbolizações de parte da história da indústria alemã, mas de uma composição que atravessa aquelas obras e incidem sobre a vida. O lugar dessa obra não está nas imagens, nos autores nem nos espectadores. Ao lançar mão das fotografias com sua força documental, afirmando o próprio aspecto mimético da técnica e a organização em um sistema lógico, o casal utiliza os mesmos recursos de legitimação dos discursos científicos. No âmbito da criação, eles se inserem em um circuito de arte e assumem-se como artistas, dando à obra caráter autoral. Nesse jogo, a obra parece se situar em um ponto intermediário, como um discurso híbrido em que a função autor parece não dar sentido. O gesto dos Becher não constrói uma forma, um saber nem qualquer outro produto limitado ao objeto artístico, ao observador ou ao autor. O gesto é a própria ausência de significado da obra, aquilo que abre espaço para que vidas se confrontem com aquele dispositivo no qual são postas em jogo.


Bernd e Hilla Becher

Referências

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______________. Texto da conferência proferida em 6 de agosto de 2007 no seminário Fotografia e Novas Mídias, realizado no auditório do Oi Futuro. Rio de Janeiro, mimeo.

Publicado em 14 de outubro de 2008

Publicado em 14 de outubro de 2008

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