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Reflexões sobre A segunda vida
Cláudia Sampaio
Escrever sobre a produção de Machado de Assis não parece, num primeiro momento, uma tarefa divertida para as férias. O instante depois da decisão de pensar sobre a engenhosidade desse autor pode ser uma gota de suor frio a escorrer pelas têmporas, ou a confortável certeza de que há outros, mais experientes, capazes de levar adiante tal intento e poupar o leitor dos eventuais deslizes dos principiantes.
Seria simples, então, desistir do propósito ou, com o passar dos dias, adiar o certame e, ao final, engrossar o coro dos lugares comuns. Seria simples, não fosse a astúcia de Machado e a potência de sua obra, fluxo contínuo para experimentar novas possibilidades de pensamento, de vida.
Afinal o que fazer após a queda da gota no asfalto quente da hoje Rua do Riachuelo, a célebre Mata-cavalos? O que fazer com pensamentos que se estendem, se acumulam, neste janeiro de 2008, provocados pela leitura de um conto escrito nos idos de 1861?
A segunda vida é mais um convite de Machado para que desfrutemos os prazeres de um voo ao desconhecido. Se aceito, além de nos livrarmos do peso canônico que paira sobre o texto machadiano, garantimos a diversão de pensar sobre esse algo que nos prende à história de José Maria, mais um dos personagens defuntos de Machado, que se desdobra a cada nova leitura.
Deixemo-nos levar pela sagrada inexperiência e retomemos então o exercício a que Machado era tão afeito, e que ocupa posição central na tese de Walter Benjamin sobre a teoria do romantismo alemão: a infinitude da reflexão, “não uma infinitude da continuidade, mas uma infinitude da conexão” (Benjamin, 1973, p. 34).
Para Luiz Costa Lima, essas infinitas conexões são resultado dos palimpsestos criados por Machado, cuja obra revela uma “verdadeira política do texto”. Escrita dissimulada, composta de modo a atender a diferentes leitores e capaz de despertar curiosidade naqueles que se deixam levar pelo voo do pássaro, cuja possibilidade já se mostra nas primeiras linhas.
Amedrontado com a loucura de José Maria, monsenhor Caldas interrompe a narração para pedir que o preto-velho, João, chame a polícia. A interrupção é tão abrupta quanto o início do conto. O que vemos é a narrativa dentro da narrativa, construída pelo diálogo entre Caldas e o protagonista.
Como Orfeu, que graças ao acorde de sua lira conseguiu a façanha de retornar do Hades – a morada dos mortos –, José Maria narra as desventuras de sua “segunda vida”. Após vagar pelo espaço, ele é surpreendido pela notícia de que sua alma é a de número mil; por isso, ele deve voltar à Terra para uma nova vida.
Contrariado por achar que sofrera com a inexperiência em sua vida anterior, José Maria dispensa a liberdade que lhe é concedida: “podia nascer príncipe ou condutor de ônibus”; lembrando as palavras do pai, “quem me dera aquela idade, sabendo o que sei hoje”, diz que lhe é indiferente ser rico ou pobre, o que deseja é voltar com experiência.
O que segue é a sequência de infortúnios decorrentes desse pedido. O desconhecido, fruto da inexperiência, é então revelado por Machado como o verdadeiro prazer da nossa humana condição. Mas para que o leitor perceba esta intenção, dissimulada no palimpsesto machadiano, é preciso não se contentar com o que lhe oferece uma leitura apenas superficial do conto. Talvez a desconfiança seja o caminho para pensarmos em algumas das infinitas dobras desse texto.
O voo do pássaro
Poesia e morte: por esses temas, o autor elabora sua resposta ao que nos é desconhecido e constrói outros diálogos, como o que nos remete à condenação da poesia feita por Platão, no célebre diálogo entre Sócrates e Glauco, no livro X da República.
Diálogo sobre diálogo, dobra sobre dobra. José Maria diz “não sou poeta, monsenhor, não ouso descrever-lhe as magnificências daquela estância divina”; mas o que faz Machado senão usar a linguagem para transmitir a grandeza do imponderável, tão temido por Platão em seu ideal de República?
Em uma ode ao homem selvagem, cuja fórmula é a de um grande pássaro “plás... plás... plás”, Machado cria a complexidade de uma narrativa que não se contenta com dicotomias banais.
Em seu Curso elementar de literatura nacional, de 1862, o cônego Fernandes Pinheiro descreve o poeta Sousa Caldas como pioneiro da escola romântica entre nós, quem “soltou o brado da emancipação da escola clássica, dessa servil imitação dos autores gregos e romanos, dessas absurdas quimeras conhecidas pelo nome de mitologia” (Acízelo, 2007, p. 36). Machado tece elogio a esse poeta, “Bom poeta, o padre Caldas. Poesia é um dom, eu nunca pude compor uma décima”. Mas é justamente no Mito de Er, narrado por Sócrates no mesmo livro X da República, que ele parece se inspirar para criar a narrativa principal do conto.
O que à primeira vista parece contradição logo se apresenta como coerência, se pensarmos na intenção de Machado ao criar conexões que atendessem ao seu propósito primeiro: dar uma resposta artística a esse indefinível algo que nos escapa, que constitui o discurso poético.
Para não reforçar ainda mais o coro dos lugares comuns, com formulações do tipo “a riqueza da obra machadiana” ou a “genialidade de Machado”, penso apenas na modernidade desse texto, cuja potência literária afirma a capacidade visionária da verdadeira obra de arte.
Em A segunda vida, Machado fala sobre a chatice que seria a vida ocupada por uma “emoção virtual”. É inevitável pensarmos na atual febre da internet, o Second life. Nele o participante pode escolher o tipo de vida que quer ter: rico, pobre, morador da Espanha, da China, do Brasil, ou da Ilha da Fantasia.
Seria simples condenar essa “experiência virtual”, não fossem as possibilidades que se abrem com o texto de Machado e a crença na resistência das particularidades humanas: a necessidade da ilusão e a inelutável convivência com o desconhecido. Portanto, não se trata de eliminar ou condenar, mas de refletir e fazer conexões. E estas são apenas algumas, diante dos infinitos palimpsestos criados por Machado de Assis.
Referências bibliográficas
ACÍZELO DE SOUZA, Roberto. Historiografia da literatura brasileira . Textos inaugurais . Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2008 (no prelo).
ASSIS, Machado de. A segunda vida. In: ASSIS, M. Contos . Uma antologia. Vol. II. Org.: John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
BENJAMIN, Walter. O conceito de crítica no romantismo alemão. São Paulo: Iluminuras, 2002.
COSTA LIMA, Luiz. O palimpsesto de Itaguaí. In: COSTA LIMA, L. Pensando nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco,1991.
VIEIRA, Marcus André. Furos. In: Viso - Cadernos de estética aplicada. Disponível em: http://www.revistaviso.com.br/visArtigo.asp?sArti=1
Publicado em 29 de janeiro de 2008.
Publicado em 29 de janeiro de 2008
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