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Tinha uma pilastra no meio da garagem

Mariana Cruz

Já há algum tempo, a conhecida máxima “tudo é relativo” saiu do feudo da Física e ganhou o mundo. Mas para que não acusem de espúria essa exportação da Teoria da Relatividade de Einstein para o campo das ações humanas, lancemos mão de um dos princípios do filósofo Pitágoras, para quem a Matemática estava na base de todas as coisas.

Se isso é verdade, que mal há em transferir um princípio da Física (cuja base é a Matemática) para o nosso dia-a-dia? Os que acusam de retórica tal proposta não deixam de ter lá sua razão, mas deixemos de enrolações e vamos ao ponto. Em primeiro lugar, traduzamos o “tudo é relativo” do gênio da Física para o “depende do referencial” do senso comum. Ou seja, nada de exatidão, de certezas, de preto no branco. No campo das ações humanas, tudo depende de quem diz, de quem ouve, de como é dito, do lugar, da época. Tudo é uma questão de referência.

Se uma professora diz a seus alunos “façam tal coisa”, nada há de estranho. Porém, se o oposto ocorre, pode dar o que falar na sala da diretoria. Um exemplo clássico de pontos de vista distintos é o mundo feminino e o masculino: se uma mulher tem vários namorados, sua índole é péssima, é taxada de desfrutável, volúvel e outros adjetivos pouco elogiosos; se o mesmo acontece com um rapaz, ele fica cotadíssimo nas bolsas de ambos os sexos: dos homens, por inveja; das moçoilas, por cobiça.

Dessa forma, o erro, a falha, o imperfeito pode ser visto com uma coisa boa e não apenas como algo grave, merecedor de punição, de acordo com a referência. Errou? Zero, nota zero. Há quem veja o erro exatamente pelo outro lado, pela possibilidade de criar outras soluções, de refazer o caminho até chegar ao acerto. O erro pode ser uma experiência bastante enriquecedora se soubermos como utilizá-lo. O melhor jeito de aprender a andar de bicicleta, por exemplo, é errando, caindo. Devem existir outros meios menos dolorosos, mas não tão eficazes. E, afinal, um arranhão no joelho faz parte de qualquer infância bem vivida.

Uma questão errada na prova pode se tornar uma ótima forma de aprendizagem se, além do xisinho em vermelho, o professor discutir com o aluno o jeito certo de fazer, se tentar entender o que levou o estudante a chegar àquela conclusão.

Certa vez reuni todos os erros de português cometidos pelos meus alunos nas provas do bimestre. Apesar de não ser professora de português, resolvi tirar um dia para exercer tal função. Escrevi os erros no quadro, obviamente omitindo o nome dos autores, e a turma me mostrava qual a forma certa de escrever. Na prova seguinte, a quantidade de “porisso”, “atravéz” “mais” (como conjunção adversativa) diminuiu bruscamente. Os alunos aprenderam não só com seus erros, devidamente mantidos em sigilo, mas também com os erros alheios.

Para os perfeccionistas, porém, errar não tem nada de humano. Como o caso de uma vizinha, que, logo nos primeiros dias depois de ter tirado a carteira de motorista, tentando sair da complicada garagem do prédio vai, vem, ré, primeira, ré, vem, vem, vem e... bum!!! Bateu em uma pilastra pessimamente localizada, bem no meio do estacionamento. Depois desse dia, nunca mais botou as mãos no volante. Mesmo sabendo que metade dos moradores já tinha tirado uma lasquinha da inconveniente coluna. Para ela, tal erro foi algo traumático, imperdoável. Na mesma semana, outro vizinho, também novo de carteira, teve sua porta arranhada pela mesma pilastra, mas encarou a barbeiragem como um batismo, um rito de passagem para os motoristas novatos. Tudo é uma questão de ponto de vista. Para uns, cometer um erro é o ponto final; para outros, é o início de uma jornada de aprendizagem.

A ex-motorista, por causa de uma batida ínfima, jogou fora aulas e aulas de direção que teve, todos os seus acertos, as balizas que conseguiu fazer corretamente, as ladeiras que subiu sem deixar o carro morrer, as curvas feitas sem escapar para a outra pista. Nada disso levou em consideração. Já o ‘batizado’ hoje passa rente à pilastra (como todos do prédio) e presta atenção redobrada não só à famigerada como também às outras pilastras que encontra por aí. Nunca mais bateu em nenhuma e se tornou um excelente motorista.

Como professores, pais, mães, chefes, podemos simplesmente tirar a possibilidade de aprendizado daqueles que confiam em nós transformando meras pilastras em obstáculos intransponíveis com sentenças aparentemente inofensivas, como “fulano não leva jeito pra isso”, “sicrano não sabe fazer isso”, “beltrano nunca vai aprender”. Que tal substituí-las por “Vamos tentar fazer de outro jeito?” ou “Na sua opinião, por que não deu certo?”

Às vezes, uma pilastra fincada no meio da garagem é muito mais do que uma base de sustentação de um prédio. Depende do referencial.

Publicado em 04 de novembro de 2008

Publicado em 04 de novembro de 2008

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