Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

A “verdade científica” ironizada por Machado

Raquel Menezes

Machado 100

Em pleno século XIX, com tom irônico (adquirido de suas leituras dos escritores ingleses), e um narrador que faz acreditar que o fato narrado é verídico por salientar que “antigos cronistas” já relataram a mesma história, Machado de Assis escreveu O alienista em 1881.

Essa narrativa descreve o protagonista, Simão Bacamarte, como um cientista disposto a tudo, que sem dó nem romantismo tem o objetivo de curar a loucura da pequena Itaguaí. Ele, o cientista alienado, como alguns personagens o veem, é um discípulo da ciência, tanto que até mesmo a sua escolha por uma esposa se dá sob justificativas científicas – D. Evarista, sua esposa, lhe proporcionaria uma boa prole.

O objeto de desejo de Bacamarte é a verdade, e a verdade é a ciência: “a ciência é coisa séria, e merece ser tratada com seriedade”, afirma o alienista. Na tentativa de obtenção de seu desejo, ele, nas palavras de Secchin, descontaminado “das paixões e da contingência humana”, constrói na cidade de Itaguaí a Casa Verde, que abrigaria os loucos. A vontade de saber do alienista é ilimitada e desprovida de interesses, pois a personagem principal era um apaixonado pela ciência – ou melhor, somente pela ciência.

O que determinaria os loucos e as características da loucura seria o arbítrio do próprio cientista, sob sua perspectiva de estudioso. A cidade é, em determinada parte da narrativa, toda considerada louca, inclusive sua esposa e seus amigos mais íntimos. Quando toda a população de Itaguaí é presa na Casa Verde, sob a premissa de que a loucura tomara a todos (os loucos das palavras, os loucos de amor etc.), Simão Bacamarte entra no último estágio de seus estudos científicos, sendo ele o ser que possuía todos os sintomas da loucura.

Bacamarte, ao se ver como o objeto de estudo científico da loucura, remete ao poema O Homem: viagens, que somente tempos depois foi escrito por Drummond. Nos versos, “o homem/descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas” o sujeito poético, após “experimentar” “colonizar” toda a Terra e todo o sistema solar, propõe a humanização do próprio homem, para assim “con-viver”. No caso do alienista, ele estuda a loucura de todos, investiga a razão e a emoção de toda uma cidade para, finalmente, enxergar dentro de si todas as características da loucura. Simão, segundo Secchin, “dispara seu bacamarte (substantivo comum: arma de fogo) em todas as direções”, tendo como alvo a verdade. Ciência. Descobertas. Até que, ao fim da novela, ele se dá conta de que tem de ser o alvo de sua própria arma. Interna-se na Casa Verde com o propósito de estudar a si próprio, com o intuito de explorar suas entranhas. Ao invés de “con-viver”, nosso protagonista deseja descobrir e cultivar a verdade científica. Se a Ciência é a resposta para muitas indagações humanas, vale aqui lembrar que nem sempre o homem sabe como percorrer o caminho das respostas. A personagem de Simão Bacamarte surge como uma síntese que mostra a impotência ou a arrogância (?) do homem que se apropria das leis da Ciência e que, em nome delas, comete equívocos, promove tragédias e injustiças.

Na “doutrina nova” a ser estudada por Bacamarte – ele próprio ao se internar – pode ser verificada a presença, ainda que irônica, das investigações científicas fidedignas do século XIX. A ironia está no discurso do narrador ao repetir o que Bacamarte dissera: “reúno em mim mesmo a teoria e a prática”.

O alienista é um dos mais extensos contos de Machado de Assis e certamente um dos textos que melhor retrata a veia irônica do autor. O discurso irônico está em quase toda a obra machadiana, mas, nO alienista a ironia é usada como um pincel forte com o qual o narrador vai desenhando os traços que acabam por fazer de Simão Bacamarte um personagem risível, vítima de um cientificismo ingênuo e inocente.

Nesse mesmo conto, Machado, considerado por muito críticos como o mais importante autor realista brasileiro, faz severas críticas à sociedade, movida que é por interesses mesquinhos, como podem exemplificar as personagens do barbeiro e do boticário. Não é poupada nem mesmo a corrente na qual se inseria o autor. Sim, pois não seria também O alienista uma crítica ao cientificismo tão em voga na ficção de fins do século XIX? Machado utiliza-se da incessante busca pela verdade científica como forma de criticar aqueles que encontravam na Ciência o álibi para toda e qualquer atitude.

A personagem de Simão Bacamarte surge como uma síntese que mostra a impotência ou a arrogância do homem e ironicamente passa a ser objeto de estudo de si próprio, da “verdade científica”, tomado pela razão e por sua posição de superioridade: nem os loucos eram tão loucos quanto ele; ele era o melhor objeto de estudo. Nas palavras de Foucault (apud Costa Lima), sua “medíocre verdade” (de Simão Bacamarte), fez dele um cientista a tratar de loucos que em seguida viram sãos, e os sãos passam a loucos, até que o louco passa a ser o próprio Simão Bacamarte, “o alienista”, alienado pela verdade científica tão bem relatada e criticada por Machado de Assis.

Bibliografia

ANDRADE, Carlos Drummond de. As impurezas do branco. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.

ASSIS, J. M. Machado de. O alienista. In: ASSIS, J. M. Machado de. Papéis avulsos. Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre: W. M. Jackson, 1937.

LIMA, Luiz Costa. O Palimpsesto de Itaguaí. In: LIMA, Luiz Costa. Pensando nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.

SECCHIN, Antonio Carlos. Linguagem e loucura em O Alienista. In: Machado de Assis - Estudos de Literatura Brasileira, nº especial. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras UFRJ, 1994.

Publicado em 11 de novembro de 2008.

Publicado em 11 de novembro de 2008

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.