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De onde vem o mal?

Mariana Cruz

Assassinatos, sequestros, roubos, violência contra pai, mãe, filhos, crianças e idosos. É o fim dos tempos? “Hoje em dia o mundo está perdido”, dizem uns. Maldade, porém, sempre existiu. Não é à toa que, há mais de dois mil anos, o melhor dos homens, o mais bondoso, o mais justo, morreu pelas mãos de seus semelhantes. Nem mesmo Jesus Cristo conseguiu sair incólume da ira da humanidade. Desde muito antes dele até hoje o mal continua a existir, seja nas guerras, no tráfico de órgãos, nos danos à natureza, nas atrocidades dos regimes totalitaristas, no preconceito com o diferente, nos assassinatos por dinheiro, poder, ciúme, inveja.

São tantas as ocorrências que nos levam a suscitar a questão: afinal, de onde vem o mal? Ele já nasce conosco? É algo adquirido pela sociedade? É o demônio que tenta incuti-lo em nós? Aliás, o demônio existe, tem chifrinhos e segura um tridente?Diante dessas divagações acerca do mal, resta-nos a dúvida: se Deus existe e é bom, por que então permitir que o mundo seja habitado por tanta maldade?

São muitas as concepções sobre o mal. Para o filósofo inglês Thomas Hobbes, o homem é essencialmente mau. Sua célebre frase “o homem é o lobo do homem” ("Homo homini lupus") sintetiza bem sua descrença na bondade humana. Para ele, o homem busca sempre subjugar seu semelhante, dominá-lo. O filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau, por sua vez, crê que o homem seja bom por natureza, porém é corrompido pela sociedade responsável por suprimir a liberdade dos indivíduos. O pensador alemão Leibniz considera que vivemos no melhor dos mundos possíveis e, sendo assim, a existência do mal no mundo é justificada por uma espécie de compensação futura: “para esta questão não há, neste mundo, resposta a esperar, a menos que, em geral, deva dizer-se que, visto Deus ter achado bom que ele existisse – não obstante o pecado previsto – é forçoso esse mal recompensar-se com juros no universo, dele tirando Deus um bem maior e em suma, essa série de coisas, em que se compreende a existência desse pecador, mostrar-se mais perfeita entre todas as maneiras possíveis” (Leibniz, 2004, p. 64).

Assim, segundo Leibniz, Deus escolhe o melhor mundo possível entre os outros, que – apesar de não se tratar de um mundo ideal, sem pecados – é o melhor entre eles. Desse modo, Ele permite o mal como condição do melhor entre os piores, um bem maior contra bens menores.

Desse pensamento sobre o bem maior, pode se aproximar o princípio do mal menor, de São Tomás de Aquino. Ele defende que, em uma situação não ideal, um bem menor é preferível a um bem maior.

Na concepção de outro pensador cristão, Santo Agostinho, para conhecer a procedência do mal deve-se perguntar primeiramente quem foi o responsável por sua criação. Deus é o responsável pela criação de tudo que existe no mundo; apesar disso, não poderia ser Ele, que é sumamente bom, o responsável pela criação do mal. Se considerarmos a hipótese do mal ter-se originado do demônio, a dúvida permanece: de onde veio o demônio, então? Não pode ter sido criação de Deus, pelo mesmo motivo já apresentado aqui. Agostinho então chega à conclusão de que o mal vem do que é corruptível; tal corrupção, porém, não pode afetar o próprio Deus, afeta somente os humanos. Isso ocorre pelo fato de que nEle “a vontade não é maior do que o poder” (Agostinho, 1987, p. 144). Ao contrário do que ocorre conosco, quando a vontade muitas vezes supera o poder, se nossa vontade estiver apontada para o vício, apesar de podermos evitar agir de tal modo, muitas vezes obedecemos à vontade viciante, pois nossas inclinações podem falar mais alto. Isso nunca aconteceria com Deus. Assim, Agostinho perguntava: “Eis Deus e eis o que Deus criou! Deus é bom e, por conseguinte, criou boas coisas. E eis como Ele as rodeia e as enche! Onde está, portanto, o mal? Donde e por onde consegue penetrar? Qual é a sua raiz e a sua semente?” (Agostinho, 1987, p. 145). Agostinho observa que existem dois tipos de coisas que não podem se corromper: as coisas sumamente boas (pois essas são incorruptíveis) e as coisas que não têm nenhum bem (não há nada nelas para se corromper). As coisas que são passiveis de serem corrompidas são as coisas boas quando são privadas de algum bem. Sendo assim, o mal é uma privação, uma falta, uma ausência. Ele não existe para as criaturas de Deus; o mal existe na medida em que “certos elementos não se harmonizam com outros” (Agostinho, 1987, p. 156). Agostinho não consegue encontrar nenhuma substância que seja identificada com a maldade; chega à conclusão de que esta é “a perversão da vontade desviada da substância suprema” (idem, p. 158).

Será que o mal é inato? Em Grande sertão: veredas, obra-prima de Guimarães Rosa, podemos enxergar, além de uma história sobre o amor impossível de Riobaldo e Diadorim, uma busca sobre a origem do mal, de onde ele vem, se o diabo existe ou não. Logo nas páginas iniciais, Riobaldo conta o causo do menino Valtei ao seu compadre Quelemém:

Mire veja: se me digo, tem um sujeito Pedro Pindó, vizinho daqui mais seis léguas, homem de bem por tudo em tudo, ele e a mulher dele, sempre sidos bons, de bem. Eles têm um filho duns dez anos, chamado Valtei – nome moderno, é o que o povo daqui agora apreceia, o senhor sabe. Pois essezinho, essezim, desde que algum entendimento alumiou nele, feito mostrou o que é: pedido madrasto, azedo queimador, gostoso de ruim de dentro do fundo das espécies de sua natureza. Em qual que judia, ao devagar, de todo bicho ou criaçãozinha pequena que pega; uma vez, encontrou uma crioula benta-bêbada dormindo, arranjou um caco de garrafa, lanhou em três pontos a polpa da perna dela. O que esse menino babeja vendo, é sangrarem galinha ou esfaquear porco. – “Eu gosto de matar...” – uma ocasião ele pequenino me disse. Abriu em mim um susto; porque: passarinho que se debruça – o voo já está pronto! Pois, o senhor vigie: o pai, Pedro Pindó, modo de corrigir isso, e a mãe, dão nele, de miséria e mastro – botam o menino sem comer, amarram em árvores no terreiro, ele nu nuelo, mesmo em junho frio, lavram o corpinho dele na peia e na taca, depois limpam a pele do sangue com cuia de salmoura. A gente sabe, espia, fica gasturado. O menino já rebaixou de magreza, os olhos entrando, carinha de ossos, encaveirada, e entisicou, o tempo todo tosse, tossura da que puxa secos peitos. Arre, que agora, visível, o Pindó e a mulher se habituaram de nele bater, de pouquinho em pouquim, foram criando nisso um prazer feio de diversão – como regulam as sovas em horas certas confortáveis, até chamam gente para ver o exemplo bom. Acho que esse menino não dura, já está no blimbilim, não chega para a quaresma que vem.... (Rosa, 1986, p. 6).

De um lado vemos a maldade do menino que sem motivo aflora nele, parece que já é algo atávico, de nascença. E seus pais, na tentativa de tirar a sanha do filho, começam a castigar o menino, mas eles mesmos – outrora pacatos – vão tomando gosto pelas maldades. Aí temos os dois casos: o mal já de nascimento e aquele que se pega por aí, como doença contagiosa. O profeta disse: gentileza gera gentileza. Infelizmente, parece que o aforismo aplicado a coisas negativas também funciona.

Ainda no Grande Sertão: Veredas, o genial escritor, falador de muitas línguas e inventor das do sertão, coloca Riobaldo em uma busca incessante para saber a origem do diabo, a quem ele chama de muitos jeitos: demo, demônio, o que-diga, cujo, rincha-mãe, sangue-d’outro, o muitos-beiços, o rasga-em-baixo, faca-fria, o fancho-bode, um treciziano, o azinhavre, o hermógenes... A despeito de todos esses nomes e depois das muitas andanças, o ex-jagunço conclui que o diabo só existe para quem crê, para quem se deixa dominar pelo  “lado negro da força” (como diriam os personagens do filme Star Wars) que está dentro da própria pessoa. Riobaldo fez de tudo para se encontrar cara a cara com o diabo. Procurou, procurou e, depois de muito andar pelas veredas do sertão, ver muita morte, crueldade, guerra e injustiça, bem distante da teoria, da teologia, da metafísica, no seio da sua sapiência de matuto, conclui filosoficamente:

O diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! é o que digo.

Referências

AGOSTINHO, s. Confissões. 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 1987.
LEIBNIZ, G. W. Discursos de metafísica e outros textos. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

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Publicado em 11 de novembro de 2008

Publicado em 11 de novembro de 2008

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