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Os sonhadores e a sociabilidade simmeliana

Romero Maia

Sociólogo da Prefeitura da Cidade do Recife, membro da Associação Universitária Internacional (AUI)

Georg Simmel foi um autor que se preocupou muito com a forma das interações entre os indivíduos, mas que por outro lado não dedicava tanta atenção à forma de suas composições acadêmicas. Como não costumava mencionar as fontes nas quais buscava os fundamentos para suas conclusões e não se conformava a uma estrutura metodológica rigorosa, foi muito desmerecido pelos acadêmicos de sua época, não conseguindo alcançar, em vida, a repercussão que suas ideias obtiveram postumamente.

Sua tese de doutorado, A natureza da matéria segundo a monadologia física de Kant, de apenas 34 páginas, revela claramente o influxo mais marcante em seu pensamento. Como um neokantiano aturado, Simmel orientou seu raciocínio sempre a partir da dualidade forma e matéria, seja em sua concepção de Filosofia, seja na de Sociologia, área científica que ajudou a fundar juntamente com Durkheim – seu crítico contumaz – e Weber – seu amigo e leitor (cf. Moraes Filho, 1983, p. 10).

Entende como indissociáveis essas duas dimensões e as vincula aos fenômenos sociais encontrados na vida cotidiana. A manifestação de alguma matéria (instinto, sentimento ou emoção) não prescinde de alguma forma equivalente (etiquetas sexuais, coqueteria ou os crimes passionais). Mas a tradição consolida as práticas no tempo e acarreta a "autonomização de conteúdos", ou seja, as formas podem se separar dos objetos (das matérias) que proporcionam sua utilidade em determinado contexto histórico-cultural. Passam a existir "independentes da vida que originalmente as engendrou e dirigiu" (idem, ibidem, p. 167).

A sociabilidade formal é uma das características sociais do homem que permanece no tempo, que inevitavelmente passa a compor a esfera do que se entende por tradicional. Para Simmel, trata-se de um conceito basilar no estudo das sociedades. Nesse sentido, o autor entende todas as sociedades como resultantes espontâneas das coobrigações e reciprocidades originadas das incontáveis interações entre os indivíduos. Tanto que seu próprio entendimento de sociedade "é o estar com um outro, para um outro, contra um outro que, através do veículo dos impulsos ou dos propósitos, forma e desenvolve o conteúdo e os interesses materiais ou individuais". E completa:

As formas nas quais resulta esse processo ganham vida própria. São liberadas de todos os laços com os conteúdos; existem por si mesmas e pelo fascínio que difundem pela própria liberação desses laços. É isso precisamente o fenômeno a que chamamos sociabilidade (idem, ibidem, p. 168).

Sendo a interação e o contato (real ou virtual, se quisermos pensar em termos mais atuais) o fundamento para realização dos instintos, desejos, ideias e interesses com o outro, para ou contra ele, a sociabilidade é despedida do conteúdo objetivo originário. Ela apenas assegura a sucessão das interações formais, das partidas jogadas, que prosseguem perpassando as gerações, ora remodelando-se, ora conservando-se. De fato, como o bojo dessa estrutura sociológica tem caráter eminentemente lúdico, termina sendo regido pela forma instituída e não pelas personalidades participantes.

Essa tal forma instituída não disputa hegemonia com interesses egoístas em meio a um mero exercício de sociabilidade como uma "reunião social", pois a função regulatória desse tipo específico de sociação será efetuada pelo tato.

Quando interesses específicos (em cooperação ou conflito) determinam a forma social, são esses interesses que impedem o indivíduo de exibir sua peculiaridade e singularidade de modo tão ilimitado e independente. Onde esses interesses não existem, sua função deve ser assumida por outras condições. Na sociabilidade, derivam da mera forma da reunião. Sem a redução da autonomia e da exacerbação pessoal – que é efetuada por essa forma –, a própria reunião não seria possível. O tato é aqui, portanto, de peculiar importância: onde nenhum interesse egoísta imediato ou externo dirige a autorregulação do individuo em suas relações pessoais com os outros, é o tato que preenche essa função reguladora (idem, ibidem, p. 170).

No filme Os sonhadores temos como centro da narrativa um complexo relacionamento entre três estudantes universitários no qual podemos identificar diversas situações que evidenciam o jogo e a autonomia típicos da sociabilidade simmeliana.

A amizade entre os estudantes tem início numa manifestação de protesto à repressão do governo às sessões da Cinemateca de Paris. Matthew é um estudante norte-americano que está morando na França para estudar. Aficionado pela sétima arte, vai sempre à Cinemateca e senta-se na primeira fila para "receber as imagens primeiro que os demais" (fala do filme). Estamos em 1968, ano da maior mobilização estudantil da história mundial. Ano também de extrema importância para o papel social desempenhado pelo cinema. Truffaut, Godard, Rivette e Cloizot eram os cineastas que melhor exprimiam nas telas as ideias de transvaloração (para usar a forma nietzscheana) e reflexão crítica sobre as estruturas sociais e a tradição.

As afinidades e a recepção espontânea das mensagens de renovação cultural e comportamental, somadas à tensão emocional ocasionada pela vigência de um mundo dividido pela Guerra Fria, sem dúvida colaboram para a união de Matthew aos irmãos franceses Theo e Isabelle. Contudo, vemos no filme que, como afirma Simmel, são inúmeras as razões que coexistem para determinar parcerias, uniões, dissídios ou conflitos. Nesse sentido, o aspecto formal das interações corresponde a expedientes sociativos que tendem a diminuir as particularidades de posição ou idiossincráticas para elevar e dar cabo a sociabilidades específicas.

Após estabelecerem patamares mais ou menos estáveis de conversação num primeiro contato, passam toda a noite andando juntos pela cidade, discutindo amenidades que só se apresentam no intuito de realimentar a sessão interativa. O objeto da sociação, contudo, ainda está em construção. Molda-se logo depois de cada palavra e gesto. Dança no ritmo da renovação das expectativas.

O drama começa quando a mera sociabilidade pura não basta para reger o relacionamento entre os três estudantes. Passada a fase da inserção do estrangeiro no cotidiano dos irmãos, o jogo lógico de trocas simbólicas convencionais cede lugar à emergência "perigosa" (no sentido de poder até desfazer a relação) do inner self, isto é, o eu histórico e predominante por detrás dos papéis habilitados para o jogo social (cf. Velho, 1989). Matthew é convidado a passar alguns dias na residência dos irmãos, vazia por ocasião da viagem dos pais. A interação, confinada aos limites do apartamento, resguardada do espaço público e assentada sobre uma privacidade burguesa (onde a exposição não é condição necessária para continuar consumindo), põe em xeque os limiares da sociabilidade. O que se busca não é mais apenas o sucesso do momento, mas o realce das personalidades como forma de experimentar e experimentar-se. Todos os atributos objetivos que os estudantes carregam consigo estão suscetíveis de participar da interação, sobretudo seus corpos.

Os dias na companhia dos irmãos e dentro do apartamento trazem à tona segredos e transtornos éticos que antes eram sempre evitados pelo caráter superficial da sociabilidade. Matthew descobre que entre Theo e Isabelle existe mais que um amor fraternal. Todavia, a revelação do incesto não decreta o fim da amizade. Na verdade, parece gerar uma necessidade de re-equacionamento dos valores e das formas de interação como um todo, o que perpetua a natureza democrática da sociabilidade até mesmo nos eventos que a transcendem. Matthew é inserido e se deixa ser inserido na trama de desejo e desvio, dando vazão à sua ansiosa libido juvenil.

Parece especialmente interessante notar que o aspecto democrático tratado por Simmel na sociabilidade tem bastante similitude com a noção de dádiva, introduzida por Mauss. Na medida em que não há empecilhos culturais que obstem a partilha de sentidos e ações, os indivíduos são levados pela ação sociativa e pela confiança a serem permissivos, concedendo ao outro a chance de interagir da mesma forma. Caso a prática não devesse ser transmitida a mais ninguém, um acordo de segredo se encarregaria de manter restrito o grupo interativo. Mas como Matthew viu evidências do incesto e se mostrou confiável, sua presença não precisou ser excluída.

As diversas formas de interação apresentadas no filme mesclam causas e intenções. Não é possível identificar apenas um fator que determinou todo o desenrolar da trama. O apartamento vazio, por exemplo, possui um papel fundamental como forma de retiro urbano e reduto da permissividade. Ele evidencia como é complexo o encadeamento das causas possíveis, que estão além do simples instinto ou interesse. As brincadeiras e mímicas para adivinhação de filmes, com prendas de forte teor sexual, não podem ser apenas vistas como indícios de hormônios aguçados, pois também denotam um resíduo da cultura pueril. Por outro lado, tudo isso também aponta para a vigência de uma matéria, um conteúdo que anima as ações sociais.

Mas a história se passa, como já dito, em plena Primavera quente de 1968, com as imensas manifestações passando em frente ao apartamento e, exceto no final, Matthew, Theo e Isabelle são completamente indiferentes a qualquer iniciativa de participação. As ideias estão presentes em suas discussões sobre Mao-tsé Tung e o Vietnã, mas o que se vê como consequência é o exercício de uma liberdade extremamente individualista. Dessa forma, podemos interpretar tais diálogos como resquícios do faz-de-conta da sociabilidade iniciada dentro de um universo discursivo contestador do cinema francês que os uniu (cf. Moraes Filho, 1983, p. 173). O ano de 1968, então, foi também, em parte, uma revolução de um individualismo por recursos dentro de uma lógica fordista de vida para um individualismo por consumo concatenado com o movimento de flexibilização que estava prestes a reestruturar o sistema capitalista.

Referências

MORAES FILHO, Evaristo de (Org.). Simmel: Sociologia. São Paulo: Ática, 1983.

VELHO, Gilberto. Subjetividade e sociedade: uma experiência de geração. Rio de Janeiro: Zahar, 1989.

Publicado em 11 de novembro de 2008

Publicado em 11 de novembro de 2008

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