Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

Um estudo sobre narrador e leitor no Pós-Modernismo

Alexandre de Amorim Oliveira

Escolho para este artigo três livros de João Gilberto Noll por considerá-los exemplos de uma experimentação literária singular no pós-modernismo. Interessa-me a maneira como seu narrador toma o leitor pela mão sem nem antes se apresentar – nem dizer seu nome! – e consegue nos levar em suas perambulações sem rumo e sem sentido. Mesmo que esse narrador não prometa nada, sempre acompanhei seu vaguear e aprendi a não esperar resposta sua. Ao contrário, aprendi a compreender o inevitável desfecho das obras de Noll: o leitor deixado sozinho, tentando dar conta daquelas viagens inconclusas. O próprio autor já declarou mais de uma vez que seus narradores são sempre a mesma pessoa. Seguindo as regras contemporâneas de interpretação, geralmente nos negamos a seguir fielmente as palavras do autor sobre sua obra. Nesse caso, entretanto, é grande a tentação de concordar com ele. Em Hotel Atlântico, O Quieto Animal da Esquina e Harmada, os narradores se confundem em estilo e personalidade.

Mas o principal elo entre os três romances é a transformação do protagonista em seu próprio simulacro. Uma das mais significativas passagens para que possamos compreender o texto do autor gaúcho como uma reflexão a respeito da identidade pós-moderna está em Hotel Atlântico, quando o protagonista recebe de alguém sua carteira de identidade, que havia perdido, e comenta: “nem me lembrava mais dela” (Noll, 1989, p. 67). A identidade esquecida pelo narrador para que possa explorar sua fragmentação através de seu constante deslocamento é foco fundamental deste estudo. A partir de Deleuze, fica claro que o simulacro do narrador nas obras de Noll tem o “díspar como unidade de medida” (Deleuze, 1988, p. 125), isto é, ele pode sugerir sua identidade original, mas não mais a representa. A perda da identidade através de sua fragmentação é o ponto de partida para o entendimento dessas três obras. Todo o caminho percorrido, toda ação tomada e toda ação sofrida por cada um de seus narradores não são mais do que a tentativa de recriar-se. A presença do narrador não é nostálgica em relação à sua identidade original, mas recriadora de si mesmo durante todo o tempo. O deslocamento constante desse narrador não toma a direção de um resgate de sua origem, mas de uma constante experimentação de si mesmo, criando inúmeros simulacros e encenando constantemente sua vida. A identidade foi esquecida, e os eternos confrontos com o mundo só vão torná-la mais distante.

Obras abertas que relatam o perambular de um personagem de quem jamais saberemos a identidade... Uma reação comum que eu costumava receber quando comentava algum romance de João Gilberto Noll pode se resumir no comentário de um velho amigo: “não gosto, não tem vida própria, chamo a isso literatura de apartamento”. Com isso ele queria dizer que as obras do gaúcho não se abriam para a experiência da vida nela mesma, mas se fechavam em um mundo pequeno, como uma criança que não experimenta as brincadeiras de rua, mas se fecha em seu quarto e vive apenas os limites daquela reclusão, em jogos com seu suposto amigo imaginário. As obras de Noll comportariam um jogo onde os participantes (narrador e leitor) não se permitem ser apresentados e as regras podem ser modificadas sem aviso prévio. Eu não conseguia deixar de concordar com a visão desse meu velho amigo, mas também não conseguia deixar de admirar aquela literatura em que um único narrador fazia suas regras e mesmo assim prendia minha atenção até a última página, e além dessa última página me fazia refletir sobre aquele jogo que acabava sem chegar a um final. Como resolver a equação proposta? A literatura de Noll seria realmente uma literatura de apartamento?

Um conceito essencial em literatura: a metáfora do chiaroscuro, a certeza de que os antônimos não são contraditórios, mas complementares. A equação armada entre a literatura reclusa e a literatura que narra a grandeza do mundo se resolve nas suas sutilezas. No jogo solitário dos narradores de Noll é possível descobrir um novo jogador, que se disfarça em plateia: o leitor se habilita a participar da obra através do narrador, porque ambos vão se reconhecer em suas experiências. A experiência explícita de exterioridade dos mundos descobertos pelas crianças de Lobato ou pelos sertanejos de Rosa decerto não se encontra nas obras do autor gaúcho. As experiências que seu narrador vive não podiam ser mais implícitas: o jogo da reclusão não permite que o jogador descreva a sua vida de forma aberta. Mas a perplexidade perante a vida encontrada em Riobaldo, Manuelzão, Pedrinho, Narizinho e até numa boneca de pano, essa perplexidade está exposta em cada página escrita por João Gilberto Noll.

A perplexidade do narrador é explícita, demonstrada na incapacidade de adaptar-se às situações e no eterno deslocar-se. É raro encontrar o protagonista de Noll em repouso – e quando o encontramos é uma situação antes de guardar-se do mundo do que propriamente de relaxamento: “Aqui ninguém me vê” (Noll, 1993, p. 5), relata o narrador de Harmada, protegido de tudo e de todos numa floresta. Mas logo que alguém o encontra ele reinicia sua jornada. Esse perambular constante é um sintoma de sua inadaptação; mas o que faz desse narrador um eterno desajustado? A colisão entre desejo e devir parece ser a causa desse desajuste. Como disse o próprio autor, a “pane da utopia” (Noll, 2003) do seu desejo em relação ao que o mundo lhe apresenta determina uma perplexidade tamanha nesse personagem que seu ajuste com o que o rodeia jamais será recuperado.

O devir (a dialética da resposta do mundo ao desejo do personagem) resulta em fragmentação. O desejo do personagem se reflete em um abismo de situações contraditórias e conflitantes que o fratura e devolve a imagem dessa fragmentação a ele próprio. Sua imagem no mundo é a de um homem fraturado; seu próprio desejo está dissolvido nessa fragmentação. A identidade do protagonista já não é importante, mas as imagens de sua fragmentação. Sua identidade está perdida; resta agora viver através da recriação de sua imagem. A criação do seu simulacro é a resposta final de sua perplexidade. João Gilberto Noll recria em seu personagem o mito de Sísifo, que tem como tarefa eterna reencenar seu simulacro, mas sobrevive através de sua perplexidade.

Porque é a perplexidade perante a fragmentação que mantém a figura humana desse personagem; é através dela que verificamos sua hesitação e sua admiração pelo mundo. É pela perplexidade que o protagonista de Noll sente o que somente um ser humano pode sentir: o sublime.

O sentimento do sublime é, antes de tudo, um abalo. Ou, como diz Kant, “uma rápida alternância de atração e repulsão do mesmo objeto” (Kant, 1995, p. 104). Esse abalo se dá quando algo nos atrai de maneira absoluta, mas não conseguimos defini-lo. É o movimento entre termos por um instante intuído a grandeza de algo que nos chamou a atenção e o desprazer de não podermos representá-la. É esse abalo que torna o narrador de Noll perplexo.

Quando esse narrador se torna um simulacro de si mesmo, nós, leitores, testemunhamos o desdobramento de sua identidade. A razão desse desdobramento é sua reação à ruptura que o mundo lhe apresenta, e a sensação sofrida pelo narrador quando encara esse abismo de indefinições é a sensação do sublime. A hesitação em compreender a grandeza absoluta de variações de sua identidade e a admiração por essa grandeza, que se traduz na formulação de seu simulacro, é a tradução do sentimento do sublime no homem que desistiu de viver seu desejo. A interrupção dessa utopia é o início da viagem de cada narrador de Noll, quando a consciência da impossibilidade de se atingir tal grandeza o transforma em sua imagem fraturada e o leva a vivenciar cada desdobramento e experimentar as várias faces de sua identidade. A experiência desse abalo é o que faz da leitura dos romances de João Gilberto Noll algo além de uma literatura de apartamento, porque cada leitor pode se reconhecer nessa experiência.

Acompanhar a narrativa de suas obras é percorrer um texto quebrado, de frases curtas e desarmônicas, podendo ser complementado por pequenos poemas sem métrica ou rima ou por passagens repetitivas, que causam um discurso monótono. A dificuldade em encontrar beleza estética em seu texto parece um aviso de que algo além da pura vontade de ler um livro deva estar presente no leitor. Usei há pouco o termo acompanhar para definir a leitura de Noll, e esse termo me parece mesmo o mais apropriado. O leitor de fato acompanha o narrador durante sua história, porque desde o início o abalo do sublime é compartilhado por ambos, leitor e narrador. A experiência compartilhada de se encontrar fragmentado diante de um mundo que espelha seu próprio polimorfismo é a chave para a leitura das obras de Noll. A identidade é esquecida e a verificação de inúmeras possibilidades de vivência é compartilhada entre ambos.

É através da anulação de sua identidade que o protagonista pode envolver o leitor em sua história, porque a experiência sublime do abalo causado pela perda da identidade é o que pode ser compartilhado pelos dois. Tomando o conceito de Iser, o autor encena nossa condição, e por isso nos reconhecemos e acompanhamos seu narrador. Ainda com Iser, dizer que o leitor acompanha o narrador se justifica na teoria de schemata e correção, em que a impressão do texto pelo leitor é corrigida a todo momento pelas novas informações provenientes desse mesmo texto. O jogo de recriar-se do simulacro é o campo ideal dessa relação entre leitor e narrador constantemente se corrigindo em suas impressões, como em um trabalho conjunto de automimetização.

O deslocamento contínuo do narrador (e, por consequência, do leitor, que o acompanha) talvez seja a maior metáfora da recriação do seu próprio simulacro. Em cada lugar a que se chega, uma nova condição do devir é imposta e uma nova faceta do narrador é exibida.

Esse deslocamento pode ser vertiginoso, como na primeira metade de Hotel Atlântico, quando o protagonista sai de um hotel no Rio de Janeiro, viaja até Florianópolis, segue para o interior de Santa Catarina e por último chega a uma cidade na divisa com o Rio Grande do Sul, não permanecendo em qualquer desses lugares mais do que dois ou três dias e relatando toda essa viagem em menos de 60 páginas. A vertigem causada pela movimentação contínua do personagem é, em si mesma, uma performance iseriana da sua recriação, onde a rapidez de seus movimentos pode servir de metáfora para a explosão de fragmentos de sua identidade:

A indisponibilidade encenada do ser humano se manifesta em uma abundância de conflitos imprevisíveis, que pode tornar-se tangível mediante o conjunto das variações do jogo. A peculiaridade desse jogo é a infinitude porque a encenação permite o paradoxo, de outro modo impossível, de experimentar a própria inabilidade do ser humano em possuir a si mesmo (Iser, 1996, p. 356).

Mas existe também a lenta dissolução e recriação de identidades simuladas, como o longo tempo vivido nas terras de Kurt, em O Quieto Animal da Esquina, ou todos os anos vividos no albergue, em Harmada. Essa longa encenação dentro de um mesmo espaço substitui o deslocamento como ferramenta de experiência de recriação pelo relacionamento com diferentes tipos de pessoas. A estada no albergue é narrada principalmente através de encenações literais, onde o narrador se faz de ator para poder conviver com seus colegas asilados, e a vida passada ao lado da família Kurt é relatada como um eterno confronto entre os empregados e a personalidade dúbia de seu patrão, ao mesmo tempo autoritário e paternalista.

Em ambos os casos, porém, o deslocamento faz parte do jogo do aleatório que norteia o protagonista esvaziado de desejo e esquecido de sua identidade. A escolha do caminho é mera obediência ao acaso, e não uma opção definida pela sua vontade. Esse jogo do acaso tem como participantes o narrador e o leitor, e como tabuleiro o caminho que vai sendo traçado muito mais pelo devir do que pelos próprios jogadores. Cada passo do deslocamento requer uma recriação desse narrador e um consentimento do leitor em continuar a acompanhá-lo. Cada chegada e cada partida fecham um confronto, uma encenação que vai envolver três elementos: o devir, o narrador e o leitor.

“Refazer-se a cada instante” (Noll, 2003) é a proposta de Noll para seus protagonistas. O momento em que o leitor põe os olhos sobre sua narrativa já é o momento em que o narrador se desloca e se recria. Não existem apresentações introdutórias, não existem apertos de mão formais que sirvam como preâmbulo a um relacionamento. O reconhecimento da fragmentação deve ser imediato, a partir do primeiro passo ao desconhecido dado pelo personagem. A insistência na necessidade de seguir em frente é o convite para que o leitor participe do jogo. É o “lance feito” (Lyotard, 2002, p. 17) que Lyotard reconhece nos enunciados.

A história narrada se perde em desvios e, por vezes, um caminho tomado tem a única serventia de dar em outro caminho, como a carona para sair de Florianópolis, em Hotel Atlântico, que não tem função aparente, mas que, numa colagem de fatos ao acaso, leva o narrador a ter a perna amputada e a depender de pessoas desconhecidas. Não é a paisagem oferecida pela viagem que deve ser admirada, mas a própria necessidade dessa viagem; os estilhaços de narrativa é que devem ser compartilhados. O jogo da enunciação espera que o leitor vislumbre o sublime sentido pelo narrador e compartilhe esse sentimento, porque, apesar de parecer contraditório, é através da perda de identidade que leitor e narrador podem se reconhecer. Sentir o abalo causado pela infinita fragmentação de sua identidade é comungar com o narrador de Noll, e essa comunhão persiste mesmo quando acabamos a última página de um de seus romances. Assim como a viagem do seu narrador, a literatura de Noll é um jogo sem final.

Bibliografia

DELEUZE, Gilles. A diferença em si mesma. In: DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. 4ª ed. Trad. Luiz Orlandi, Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988. p. 63–125.

ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia literária. Trad. Johaness Kretschmer. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996.

KANT, Immanuel. Crítica da faculdade de juízo estética. In: KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Trad. Valério Rohden e Antonio Marques. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 45–200.

LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-Moderna. Trad. Ricardo Corrêa Barbosa. 7ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.

NOLL, João Gilberto. Hotel Atlântico. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

_____. O quieto animal da esquina. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.

_____. Harmada. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Internet

Site oficial de João Gilberto Noll. Disponível em: www.joaogilbertonoll.com.br, 2003.

Publicado em 02 de dezembro de 2008

Publicado em 02 de dezembro de 2008

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.