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Inventores de asas, arquitetos de labirintos: Julio Cortázar e Guimarães Rosa e a estética da recepção
Alexandre Amorim
Doutorando em Literatura Comparada
Ao compararmos literaturas à luz da estética da recepção professada por Jauss, a análise da interseção entre obras torna-se uma provocação ao leitor quando um dos pontos em comum é a consciência da literariedade, ou do efeito estético, daquelas obras. Como afirma René Wellek, o texto literário deve ser visto como “uma totalidade diversificada, como uma estrutura de signos que, no entanto, pressupõe e requer significados e valores” (1994, p. 118), isto é, a obra presume estrutura mas também reação estética. Reconhecer a literariedade de uma obra é também entregar ao leitor a ocupação de a reescrever, ainda que apenas para si mesmo. Encontrar as interseções, sejam estas de estilos, de influências sociológicas ou psicanalíticas, não pode mais ser o único objetivo ao comparar literaturas. O efeito estético da obra também se elege como fenômeno legítimo a ser comparado entre obras. E, se estamos no nível estético, devemos concordar mais uma vez com Wellek: “os estudos literários tornar-se-ão um ato da imaginação, como a própria arte” (1994, p. 119). A comparação entre textos literários deve comportar a comparação entre os efeitos literários.
A comparação entre Julio Cortázar e João Guimarães Rosa não é uma busca de influências, mas uma busca de confluências em relação à construção, à exposição e à recepção de seus textos. Cortázar e Rosa são reconhecidamente autores que demandam de seus leitores algo mais do que a leitura de fruição de Barthes: existe também em ambos a preocupação com a possibilidade da constante reconstrução do próprio texto. São autores que buscam alcançar a imaginação do seu leitor. Como propõe Cláudio Guillén, não há uma criação absoluta (“criatio ex nihilo”) ou uma pura refração de experiências: a obra de arte deve “suplantar ou substituir tanto a vida quanto as obras de arte anteriores” (1994, p. 161). Daí a necessidade da imaginação ao ler as obras de Rosa e Cortázar: seus textos não nascem do nada nem devem descansar inalteráveis, em um efeito nulo. Suas escritas emergem da necessidade de expressar a experiência da arte e da vida e criam nova necessidade dessa mesma experiência em quem as lê. A narrativa de Rosa e Cortázar produz um novo saber em seu leitor.
A composição em si desses labirintos literários também traz pontos em comum entre os autores a serem estudados. A criação do que poderiam ser idioletos – mas que chamaremos de geogramática, numa contração da influência geográfica (espacial) e gramatical (de linguagem) que dão a cor local a seus textos – e a busca de estratégias narrativas – que se servem do fantástico para a criação de personagens e sua inserção no mundo do senso comum – são produtos dessa consciência da construção de novos caminhos. Mas é fundamental ressaltar que, durante sua produção, ambos os autores invocam a liberdade criativa como tema próprio e como encorajamento ao leitor de reinventar as histórias narradas por eles.
Ao encarar a tarefa de traduzir para o ficcional o sentimento de realidade que há em cada projeto seu de narrativa, ambos os autores estão conscientes de que produzem a mímesis. Segundo Luiz Costa Lima, “a mímesis não é um modo de reconhecimento, mas de produção de conhecimento” (1992, p. 171), isto é: a obra literária não é um espelho da realidade, mas provoca a reflexão sobre ela, recriando-a. Através dessa consciência, vislumbra-se um caminho a ser percorrido: para Julio Cortázar e Guimarães Rosa, estar atento à recriação da realidade é reconhecer a possibilidade de – a cada leitura – uma nova direção ser tomada. A mímesis desses dois autores é criada em constante estado de consciência dessa criação. Daí a presença permanente de novos caminhos em suas obras: recriar a realidade é passear por ela como se ela nunca tivesse sido experimentada – é como entrar em um labirinto ao mesmo tempo em que ele é construído. Costa Lima conclui: “a mímesis traz em seu horizonte a categoria de evento, isto é, o fenômeno que não se poderia prever dada uma estrutura prévia” (1992, p. 172). A construção desse labirinto é o evento – as direções que este labirinto vai tomar são imprevisíveis.
Para que esse evento ocorra nas obras de Cortázar e Rosa, é indispensável que ocorra o efeito estético da recepção proposto por Hans Roberto Jauss, que resgata da hermenêutica os três momentos de “entendimento (intelligere), interpretação (interpretare) e aplicação (applicare)” (1982, p. 139), e aqui fundamenta o conceito dos schemata formulado por Wolfgang Iser como sistemas de referência de percepção de uma obra pelos quais, a partir de informações selecionadas e organização de suas impressões subjetivas, o leitor chega a uma compreensão, mesmo que momentânea, da obra. Uma compreensão ligada ao “horizonte de expectativas” (Jauss, 1982, p. 172) desse leitor, isto é, a recepção de uma obra estará sempre ligada aos limites estéticos do leitor.
Mas esses limites podem ser expandidos, visto que o próprio leitor promove a interpretação da obra e esta se torna representação para seu receptor. Aqui também nos importa o sistema de relacionamento entre objeto e sujeito. Hans Jauss apresenta sua visão do efeito estético:
A conduta de prazer estético, que é ao mesmo tempo liberação de e liberação para, realiza-se por meio de três funções: para a consciência produtora, pela criação do mundo como sua própria obra (poiesis); para a consciência receptora, pela possibilidade de renovar a sua percepção, tanto na realidade externa, quanto da interna (aisthesis); e, por fim, para que a experiência subjetiva se transforme em intrassubjetiva, pela anuência ao juízo exigido pela obra ou pela identificação com normas de ação predeterminadas e a serem explicitadas (1979, p. 68).
A obra e seu receptor não são medidos em valores hierárquicos, nem se busca a origem dessa relação. A importância da relação entre objeto e sujeito é realçada por meio das funções descritas: o objeto artístico demanda percepção e crítica, enquanto o sujeito receptor busca a representação.
Pelo texto de Maria Antonieta Borba, entendemos a formação da interpretação “não só polimorfa como também consecutiva, pois depende, em grande parte, das variações de percepção ocorridas na dimensão do tempo da leitura” (2003, p. 70), já que se contrapõe ao conceito de schemata o conceito de correção, em que o próprio texto literário derruba as impressões subjetivas do leitor ao agregar novos elementos que desestabilizam a compreensão anterior. Isto é, a compreensão momentânea do leitor se adapta a novas compreensões, resultantes de subsecutivos contatos com o texto. É o que Antonieta chama de “correção estética internalizada” (2003, p. 68).
É importante ressaltar que o sistema de schemata e correção aqui considerado aplica-se a todos os leitores, incluindo o próprio autor da obra. Ao escrever uma obra, seu autor é também um seu leitor, e, portanto, vive uma constante “correção” em relação àquilo que está produzindo. Como exemplo radical dessa experiência, é sabido que José Olympio – editor do livro de contos Sagarana, de Guimarães Rosa – resolveu guardar as matrizes tipográficas do livro, após sua quinta edição, para que o autor não pudesse mais modificar as futuras edições. A releitura da própria obra, nesse caso, causou ímpetos de correção literal nos textos.
Entretanto, mesmo que não seja possível modificar literalmente o texto, a mímesis torna-se passível de criar novas realidades. A leitura de um texto (ou sua própria construção) cria um significante com força própria. Iser afirma que “como o significante não significa mais o que é designado, o não-mais-significar se torna um designar, proporcionando a existência do que ainda não existe” (1996, p. 304). No caso da literatura, “tornar-se um designar” é, antes de tudo, um ato manifesto de imaginação e um ato latente de criação. Portanto, a construção do labirinto também é realizada pelo leitor da obra. Autor e leitor se comunicam através dos desígnios criados através do texto: a comunicação entre leitor e autor se faz para que a mímesis possa se tornar produtiva. A construção da obra é contínua, e Julio Cortázar e João Guimarães Rosa são dois autores prontos para demonstrar essa construção ininterrupta.
O labirinto construído
O rei Minos, de Creta, para provar seu poder, solicitou ao deus Posídon que, das profundezas do oceano, enviasse-lhe um touro, que seria sacrificado em homenagem ao deus dos mares. Minos, considerando o animal uma bela espécie, não o matou. Como castigo, Posídon fez com que a mulher do rei, Pasífae, se apaixonasse pelo touro. Arrebatada, Pasífae pediu ao arquiteto e escultor Dédalo que fabricasse uma novilha de bronze oca para que pudesse entrar na escultura e seduzir o animal. “Dentro do simulacro, concebeu do touro um ser monstruoso, metade homem, metade touro, o Minotauro” (Brandão, 1989, p. 62). O monstro, que se alimentava de carne humana, foi preso no Labirinto de Cnossos, construído a mando de Minos pelo próprio Dédalo.
As pessoas que serviam de alimento ao Minotauro vinham de Atenas, como pagamento de guerra ao rei Minos: sete rapazes e sete moças. No terceiro tributo a ser pago, um guerreiro ateniense, Teseu, veio entre os quatorze jovens. Ariadne, filha de Minos e Pasífae, apaixonada pelo guerreiro, entregou a Teseu um fio condutor, a conselho de Dédalo. Assim, Teseu conseguiu matar o Minotauro e escapar do labirinto.
Por terem aconselhado Ariadne, Dédalo e seu filho, Ícaro, foram presos no labirinto, vigiado por guardas em todas as suas saídas. A engenhosidade de Dédalo mais uma vez foi útil: dois pares de asas construídos por ele ajudaram pai e filho a escapar da ilha voando, mas Ícaro, ignorando os conselhos do pai, tentou se aproximar do céu, e a cera que ligava as penas de suas asas foi derretida pelo sol. Ícaro caiu de seu voo e morreu afogado no Mar Egeu.
Esse resumo da lenda do Labirinto de Cnossos foi baseado no livro Mitologia Grega, de Junito de Souza Brandão. Ao apresentar o mito, Junito previne que labirintos, na mitologia greco-romana, podem ser considerados “uma figuração de provas iniciáticas discriminatórias, que antecedem à marcha para o centro oculto” (1989, p. 55). Como todo mito, este também é suscetível de inúmeras interpretações, mas é interessante notar que o autor repetidamente informa sobre a residência do Minotauro no centro do Labirinto e sua preocupação em relacionar esse centro ao estudo psicanalítico do inconsciente.
Em nossa interpretação da lenda para que esta possa ser utilizada como metáfora à construção literária, devemos ressaltar que o centro do Labirinto não será destacado em sua função de objetivo a ser alcançado. Antes deve ser destacado o termo “oculto” empregado e a relação com a psicanálise para que possamos propor um centro inexistente a esse labirinto. Se a entrada no labirinto prevê uma espécie de iniciação, esta não terá correspondência numa finalização formal ritualística, onde se poderia definir que a tarefa foi cumprida. Assim como o inconsciente freudiano, o labirinto não tem um ponto certo de partida ou de chegada. O centro não está oculto: ele não existe. O Minotauro, como força ameaçadora (e, portanto, motivadora de deslocamento), habita todo o labirinto.
E mesmo a existência do Minotauro não é fundamentalmente necessária para que haja o deslocamento. A simples presença do labirinto em volta de alguém já leva essa pessoa a vagar. Se o objetivo por senso comum é sair do labirinto, nem sempre essa vai ser a causa ou a consequência desse vagar. O autor do projeto de Cnossos andou por esse labirinto para que ele fosse construído antes de andar por ele à cata de penas para realizar sua fuga. Os dois momentos de Dédalo dentro do Labirinto de Cnossos são essenciais para nosso estudo. Dédalo é a figura central desse mito, quando ele se aproxima da literatura e do estudo do efeito estético, porque ele é o construtor e o habitante. O arquiteto ateniense vivencia analogamente a experiência estética quando cria a obra em que terá que residir e que deverá reconhecer através de conceitos e correções desses conceitos. Assim, Dédalo passa a ser o autor/leitor desse labirinto.
Se a teoria do efeito estético foi citada através das palavras de parte de seus fundadores, tomamos mais uma vez um conceito de Iser para que nossa fundamentação teórica se alicerce: não há recepção estética que não envolva prazer, e o prazer estético é o da produtividade. Portanto, é indispensável ler em Deleuze sobre a obra que “conduz ao abandono da representação” porque “a cada perspectiva ou ponto de vista corresponde uma obra autônoma, dotada de um sentido suficiente” (1988, p. 124). E é pelas “fibrilas e bifurcações” (mencionadas por Foucault sobre Deleuze em Theatrum Philosoficum) dessas perspectivas que “a representação infinita pode multiplicar os pontos de vista e organizá-los em séries; nem por isso essas séries são menos submetidas à condição de convergir sobre um mesmo objeto” (Deleuze, 1988, p. 123). O que foi esquecido para dar lugar ao novo vai sempre retornar como parte formadora da nova visão desse sujeito. Como afirma Deleuze, “a troca ou a substituição dos particulares define nossa conduta em correspondência com a generalidade” (1988, p. 21). O entendimento de que a alteridade é a base para a realização da mímesis e o reconhecimento da subjetividade como elemento criador do novo criam espaço para uma função foucaultiana da metafísica: “falar do extrasser” (Foucault, 1980, p. 42). As perspectivas subjetivas podem agora se representar através de obras anteriores, porque o leitor pode se ver representado na sua própria interpretação daquela obra. A alteridade é aceita e incluída na obra, e o que poderia ser um modelo a ser imitado ou copiado passa a ser uma entidade a ser transgredida. A metafísica já não se reporta a um modelo, mas a uma alteridade que será submetida a trocas de seus particulares por novos pontos de vista. O prazer de ler é o prazer da criação. Wellek estava correto: ler é um ato da imaginação.
Portanto, Ícaro também é fundamental na nossa análise do Labirinto de Cnossos. Se Dédalo é o autor/leitor de sua obra, Ícaro é sua alteridade. Não há por que julgar moralmente seu ato de voar em direção ao céu, mas é necessário analisar sua entrada no labirinto, sua estada e seu reconhecimento de um lugar criado por outro. Seu voo, mais do que mera desobediência, é a tentativa de recriar em seus termos uma nova solução para aquela obra. Ícaro é o leitor/autor do mito de Cnossos.
Analisando o mito à luz da teoria literária contemporânea, podemos aproximar Julio Cortázar e João Guimarães Rosa. Essa aproximação se dá justamente através das construções labirínticas que esses autores nos deixaram como legado. A imagem do labirinto é consagrada a Guimarães Rosa por autores do quilate de Willi Bolle (2004) – “seu sertão verbal se inspirou no labirinto inventado por Dédalo” – e Paulo Rónai – “o narrador (...) parece fragmentar-se num labirinto de episódios desconexos” (Rónai, 2001, p. 15). Podemos afirmar que a associação de Rosa ao construtor de labirintos é um senso comum, mas parece faltar ainda um elemento para que esse conceito seja satisfatório a quem empreende uma análise da estética da recepção: Rosa não está sozinho na construção de seus labirintos. É necessário que sua definição do sertão seja reconhecida pelo leitor como uma construção em andamento.
E é neste ponto de investigação da obra literária que Julio Cortázar surge, complementando este estudo. Se Rosa explicita o labirinto, Cortázar explicita sua construção, e ambos os autores nos servem para afirmar que autor e leitor constroem juntos esse labirinto – ao mesmo tempo intricado e prazeroso – que é o texto literário.
O labirinto em construção
Se o labirinto foi construído para palco de reis cruéis, histórias de amor ou epopeias, todas essas representações somente existiram graças a seus arquitetos. Dédalo e Ícaro, revezando-se nos papéis de autor e leitor. É pertinente questionar sobre os revezamentos e a autoria, já que foi Dédalo quem construiu o labirinto. Mas é interessante também notar a aparente contradição entre ser um construtor de labirintos e ao mesmo tempo inventor de engenhosas asas para escapar deles. Não se pode definir Dédalo apenas como o autor, se ele também precisou interpretar sua obra para achar uma solução. Do mesmo modo, também Ícaro não pode ficar limitado ao papel de leitor, uma vez que criou sua própria história a partir do labirinto. Adaptando as palavras de Deleuze, Ícaro substituiu as particularidades do pai e criou uma nova interpretação para o labirinto: a partir de Cnossos, o filho criaria sua oportunidade de hybris, seu momento de tentar igualar-se aos deuses. E não é a tentativa de igualar-se aos deuses em si mesmo uma boa imagem para o intérprete que descobre poder ser ele mesmo um autor da história que lê? Além disso, a hybris de Ícaro foi também determinante para a história de Dédalo, que, mesmo tendo conseguido escapar do labirinto, perdeu seu filho e experimentou assim uma nova tragédia.
Como se vê, a criação literária parte por caminhos e bifurcações inesperados através de interpretações e reinterpretações. Cortázar e Guimarães Rosa são autores conscientes dessa possibilidade infinita de releituras. Seus textos – representados para serem reinterpretados – unem os dois autores às ideias de Jauss e Iser, quando a estética da recepção se torna o espaço propício para a eterna caminhada pelos labirintos. Quantas vezes autor e leitor terão que se deparar com falsas saídas, deduções e novas ideias enquanto uma obra estiver sendo lida? Se Walter Benjamin apresenta o romance moderno como modificador de hábitos, já que está inseparavelmente ligado ao formato dos livros e à segregação de experiências, Cortázar e Rosa são romancistas por excelência. Ambos promovem a narrativa de uma experiência que precisa ser complementada pela experiência de seu receptor. Ambos deixam de ser narradores de experiências intercambiáveis para se tornar provocadores de novas experiências nos leitores. São Riobaldos fomentando a verificação do Mal, são Cronópios provocando os Famas a dançar na chuva. São Dédalos provocando a hybris de Ícaro.
Rosa e Cortázar entendem que uma nova aventura literária deve ser formalizada, a dificuldade provocada pelo labirinto é o espelho de uma constatação: é necessário oferecer desafios ao leitor. Não importa a presença ou não de um Minotauro, o labirinto seduz o leitor a se deslocar de seu estado de inércia. Talvez por isso, o senso comum não se relaciona com os livros desses dois autores. Ao contrário, é necessário que o leitor busque apreender o inapreensível: Rosa e Cortázar transformam em literatura o indizível quando escrevem sobre o que não se pronuncia. Como já afirmou Guimarães Rosa, “quando não encontro palavra, eu crio”: não existe limite para o texto a ser escrito, a não ser o próprio ato literário. Por isso, é inevitável a recepção do leitor: para que a escrita sobre o inapreensível (ou o indizível) seja profícua. Os labirintos são construídos para que o leitor busque neles seu encontro com as experiências provocativas dos autores, inapreensíveis por completo, e as transforme em experiências pessoais. Construir o labirinto é tentar expressar o inexprimível, supondo que essa tentativa vá ser recebida por aqueles que também sentem essa ânsia. É a tentativa de comunicar-se através do incomunicável.
Ao mesmo tempo que os dois autores arquitetam e constroem labirintos literários – seja pela linguagem, pela narrativa, pela construção da história, pelo uso do fantástico ou pela geografia –, ambos invocam a liberdade criadora como tema e como encorajamento ao leitor de reinventar (usando sua própria liberdade criadora) as histórias narradas. São arquitetos de labirintos, mas são também inventores de asas. Mas é fundamental que o leitor se junte a eles na construção das paredes e caminhos desse labirinto e no uso das asas. A seguir, uma breve explicação do estudo desses labirintos.
Se Cortázar deixa os “capítulos prescindíveis” (1992, p. 3) de O jogo da amarelinha à disposição do leitor, para que possa haver novas leituras do romance, também Guimarães Rosa aponta os desvios das histórias que Riobaldo conta em Grande Sertão: Veredas, em uma narrativa que só confundirá o leitor se este não perceber que ele mesmo deve também ser um criador de histórias. “O sertão é do tamanho do mundo” (Rosa, 2001d, p. 89), diz o jagunço, e com essas palavras paradoxais e ao mesmo tempo cheias de certeza, dá ao leitor a oportunidade de ser, ele também, um participante daquele sertão. Também Cortázar convida o leitor a se aventurar com um convite na primeira frase de seu romance mais famoso: “Encontraria a Maga?” (1992, p. 11), pergunta-se o narrador, que, ao final do “primeiro livro” (os 56 primeiros capítulos) de O jogo da amarelinha, ainda não consegue responder satisfatoriamente àquela primeira questão: “no final das contas, algum encontro havia, ainda que não pudesse durar mais do que esse instante terrivelmente doce” (Cortázar, 1992, p. 285). Mais uma vez, o leitor se associa à história, criando seu próprio significado para o encontro indefinido que ele também teve. Não bastasse Cortázar e Rosa oferecerem obras abertas à leitura e interpretação – seja pelos capítulos que restam para serem usados em novas leituras, seja pelos casos deixados sem fim na conversa costurada do vaqueiro –, sua narrativa também convida à participação.
Riobaldo, a certa altura do romance de Rosa, faz uma chamada definitiva pela participação do receptor: “No senhor me fio?” (Rosa, 2001d, p. 37), ele convida, ao mesmo tempo que pede ajuda para não se perder em histórias cruzadas. A questão não é respondida, quem o escuta somente o escuta, não tem voz dentro do romance. Mas quem o escuta não é também quem o lê? O jagunço pede confiança a seu leitor/ouvinte, mas fiar-se em alguém é sinônimo de entregar-lhe o fio condutor dos caminhos do labirinto? O consentimento mudo de quem escuta Riobaldo é a resposta para um convite retórico, em que narrador e receptor sabem que não há necessidade de fios condutores: o labirinto ainda está em construção. Também Cortázar sabe fazer retórica com maestria, e finge acreditar que os outros 99 capítulos de O jogo da amarelinha podem ser dispensados. Mais uma vez, o convite é velado: há capítulos demais nesse romance, e se o leitor quiser pode usá-los como melhor lhe convier. Seguindo nossa imagem, o labirinto pode ainda ser feito de várias formas se o leitor continuar acompanhando a obra do arquiteto.
Não há, porém, como criar o elo entre autor e leitor senão pela mímesis ensaiada por Luiz Costa Lima. A ideia da mímesis como tradução de uma realidade – e ao mesmo tempo produtora de uma nova realidade – serve para entendermos as obras de Cortázar e Rosa como manifestações artísticas e, portanto, suscetíveis de interpretação. Ainda que essa tradução seja subjetiva e experimentada à parte de qualquer integração com o leitor, é ainda a mímesis que torna essa experiência passível de interpretação e de produção de uma nova experiência. Acreditamos que a transformação dos conceitos de mímesis está intimamente ligada à definição do que é interpretar. Essa relação requer aprofundamento em sua análise, para que a mímesis, como tradução e provocação de realidades, seja entendida como ferramenta fundamental na contínua elaboração de uma obra literária.
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Publicado em 16 de dezembro de 2008
Publicado em 16 de dezembro de 2008
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