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Insólito-Parnasiano em "O Espelho", de Machado de Assis

Camillo Cavalcanti

Doutorando em Literatura Brasileira pela UFRJ e pesquisador do CNPq

Machado 100

Como Machado de Assis é um escritor dos entrelugares do fim de século XIX, a investigação ora publicada elucida os componentes fantásticos no universo poético, bem como algumas correlações entre romântico e parnasiano na estética machadiana, tomando O Espelho como microcosmo da obra.

O próprio texto autoriza a hipótese de leitura por dois motivos: a) a ambiência do insólito, no caso do conto O Espelho, recorre a fontes românticas do mal-do-século; b) o tema abordado pelas personagens é a perfeição, quimera parnasiana. Quando Jacobina começa sua fala, é desafiado a provar a perfeição entre os anjos, sobre a qual seus interlocutores supuseram que ele não soubesse.

Daí segue a explicação das duas almas: o homem não teria uma, mas duas almas. Por isso, o subtítulo é autoexplicativo (metatexto): "nova teoria da alma humana". A primeira alma é a interior, que olha de dentro para fora; a segunda é a exterior, que olha de fora para dentro. A alma exterior pode ser encontrada em objetos, outras pessoas, processos, tudo externo ao corpo humano.

No caso de Jacobina, que ele passa a contar para seus amigos, a "alma exterior" sufoca a interior, toma o ser totalmente e determina um processo de reificação do sujeito. A "alma exterior" de Jacobina era a farda de alferes. A "alma exterior", a farda militar, fora sugestionada pelos diversos elogios quando Jacobina conquistou o posto de milícia. Jacobina cada vez mais se aprazia com a farda, pois notava que ganhava respeito e admiração dos outros.

A hipótese de leitura ora proposta é esclarecer mediações entre Romantismo e Parnasianismo através de duas categorias fundamentais desses estilos: o mal-do-século e a arte-pela-arte, que estão articulados no conto. Sabe-se que Machado de Assis, como poeta e esteta, partilhava as ideias parnasianas, dedicando toda uma obra em versos para o estilo da arte-pela-arte. Tanto acreditava na Ideia Nova que escreveu um artigo importantíssimo para a afirmação do movimento parnasiano no Brasil, A Nova Geração, enquanto Sílvio Romero e José Veríssimo optaram por vilipendiar o estilo.

De início, identificamos, no universo poético (ficcional), os elementos constitutivos do mal-do-século. Como escrevi na Wikipédia:

A fantasia poética apresentava três componentes. Primeiro, uma ambiência noturna, carregada de misticismo, satanismo, ritualismo. Segundo, uma visão depressiva, sarcástica, alienada. Terceiro, uma melancolia, um pessimismo e um desespero.

Logo no primeiro parágrafo identificam-se rudimentos do mal-do-século:

Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade [...] e o céu [...], estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo (Machado de Assis; O espelho; grifos meus).

Os parágrafos 1, 2, 3 e 5 são descritivos-narrativos, seguidos de um enorme diálogo no qual Jacobina conta "um caso de sua vida". Interpelado por um dos ouvintes sobre a procedência da senhora citada para ilustrar um exemplo de "alma exterior", Jacobina retruca com novos indícios de mal-do-século, dispersos moderadamente ao longo de todo o conto:

- Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo nome; chama-se Legião... (Assis, op. cit.).

Gradativamente, a noite vai ganhando destaque na narrativa e, nalguns momentos, chega mesmo a disputar o foco narrativo durante uma frase, um período, um parágrafo:

- [...] E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo do dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita, ou mais larga. [...] Riem-se?

- Sim, parece que tinha um pouco de medo (idem, ibidem; grifo meu).

O sarcasmo dos espectadores da trama, fundamento da ironia crítica e contestativa, também constitui um elemento da estética do mal-do-século, oportunidade para o personagem-narrador fortalecer os argumentos do enredo fantástico-noturno, contado em forma de memória, no intuito de persuadir o leitor sobre a veracidade da história. O riso é velado, extremamente velado, bem ao gosto do "humor romântico": "podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica"; "perdão; essa senhora quem é? É parenta do diabo, e tem o mesmo nome: chama-se Legião"; "custa-me até entender"; "sim, parece que tinha um pouco de medo". Por isso, a dúvida, neste caso máscara da ironia, é inferida num dos personagens, para que o leitor testemunhe a astúcia do protagonista em sustentar sua narração e contra-argumentar explicações convincentes:

- Oh! Fora bom se eu pudesse ter medo! Viveria. [...] Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto sonâmbulo, um boneco mecânico (idem, ibidem).

Esse procedimento realça os aspectos fantástico-noturnos, rapidamente conformando-os numa verossimilhança capaz de suspender a dúvida ou a hesitação do leitor em aceitar a história. A configuração do mal-do-século, como se vê, está fragmentada em pequenos indícios dispersos por todo o texto, mas sua intensidade não é prejudicada nesse procedimento: apenas não há a mesma ênfase dada pelos românticos, que se tornou a marca conhecida por nós dessa estética do mal-do-século. O agravo das insanidades durante a noite é expediente usual, de modo que Jacobina relata seus transtornos noturnos:

O sono dava-me alívio, não pela razão comum de ser irmão da morte, mas por outra. [...] Nos sonhos, fardava-me orgulhosamente, no meio da família e dos amigos [...]. Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único [...] (idem, ibidem).

A essa altura da narração de Jacobina, os ouvintes estavam perplexos diante do insólito. A perplexidade é um ingrediente para a configuração de ambientes fantásticos. Igualmente a dúvida ou hesitação é componente fantástico. Ela é permitida neste conto, mas é exclusivamente identificada num dos espectadores de Jacobina e logo dirimida pelo convencimento do leitor sobre o insólito nessa história. Para os ouvintes reunidos na sala, o insólito toma aspecto fantástico-maravilhoso, pois, todos perplexos, não compreendem os eventos anormais que culminam no momento em que Jacobina se olhava no espelho - e simplesmente aceitam a narração:

- No fim de oito dias deu-me na veneta de olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dois. Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. A realidade das leis físicas não me permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não foi a minha sensação. Então tive medo; atribuí o fenômeno à excitação nervosa em que andava; receei ficar mais tempo, e enlouquecer. - Vou-me embora, disse comigo. E levantei o braço com gesto de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando para o vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgarçado, mutilado... De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão de linhas, a mesma decomposição de contornos... Continuei a vestir-me. Subitamente, por uma inspiração inexplicável, por um impulso sem cálculo, lembrou-me... Se forem capazes de adivinhar qual foi a minha ideia...

- Diga.

- Estava a olhar para o vidro, com uma persistência de desesperado, contemplando as próprias feições derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive o pensamento... Não, não são capazes de adivinhar.

- Mas, diga, diga.

- Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e... Não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral (idem, ibidem).

Ora, essa é a feição do maravilhoso, isto é, os ouvintes, já convencidos da ocorrência de fatos incomuns, aceitam a presença do insólito: "quando os outros voltaram a si, o narrador tinha decidido as escadas" (idem, ibidem). Entretanto, como existe certa desconfiança, ainda que mínima, expressa quase sempre sob a forma irônico-contestativa da dúvida (por exemplo, "parece que tinha um pouco de medo"), o narrador desafia, como uma cilada, a ratificar e enfatizar a solidez dos argumentos e a veracidade dos fatos. Desse modo, por causa dessas hesitações afrontosas ao personagem-narrador, a história acaba se aproximando do fantástico, permanecendo num intermédio, ou seja, o fantástico-maravilhoso.

Por outro lado, para o leitor, a feição tende mais ao estranho. Vista de fora, a história de Jacobina parece apenas uma espécie de confusão mental ou sobrecarga emocional que desencadeou uma "distorção" da realidade. Por isso, para a perspectiva de um leitor mais cético, a história não passa de um delírio, um mau momento de Jacobina: afinal, o espelho continuava a dar a imagem-reflexo das coisas, mas Jacobina, aflito e torpe, não conseguia enxergar um reflexo preciso, tão-somente imagens vertiginosas. Mas, uma vez convencido por Jacobina, o leitor tenderá a se posicionar como os ouvintes da sala, isto é, com perplexidade. Aqui estão em jogo as perspectivas de leitura, diferentes segundo os leitores.

Vê-se no final do conto aquele "fracasso cósmico" identificado por Elias Tomé Saliba dentre as "imagens do instável" que corroem as Utopias românticas:

Toda a tensão incoercível de Napoleão em direção ao futuro termina num fracasso exemplar; um fracasso que, segundo os românticos, transcendia a sua própria particularidade biográfica, estava além de suas forças humanas, pois tratava-se de um fracasso cósmico (Saliba, 2003, p. 25-26).

A situação de Jacobina é justamente um fracasso que transcende seus limites biográficos: certa atmosfera de derrocada e falência pesa sobre seus ombros - a mesma atmosfera sombria, degradada e vertiginosa do mal-do-século: "não era mais um autômato, era um ente animado".

A ironia não é só propriedade dos ouvintes. Também o narrador do conto, o observador (e não Jacobina), possui uma atividade autorreflexiva e autocrítica: "por que quatro ou cinco?"; "santa curiosidade! Tu não és só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia"; "não, não são capazes de adivinhar. - Mas, diga, diga". "Enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono"; "quando voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas". Dessa forma, nota-se uma corrosão em nível metalinguístico, inerente à ferramenta irônica, e, portanto, categoria eminentemente moderna.

Logo, já que o narrador é tão autorreflexivo e tão autoconsciente - como a ironia o demonstra - é possível que tenha pensado nas corelações parnaso-românticas.

A começar, a estética parnasiana entende a dialética sujeito/objeto como relação em que o objeto adquire as notas subjetivas que o observador imprime ao mesmo tempo em que este se deixa influenciar pela leitura do objeto; dialética não só de Hegel, mas de vários primeiros-românticos, como Schlegel.

Em segundo lugar, a ideia central que emulou todo o discurso de Jacobina sobre as duas almas está expressa nesse parágrafo:

Serafins e querubins não controvertiam, e, aliás, eram a perfeição espiritual e eterna. Como desse esta mesma resposta naquela noite, contestou-lha um dos presentes, e desafiou-o a demonstrar o que dizia, se era capaz (Assis, op. cit.).

Portanto, o "esboço de uma nova teoria da alma humana" é uma exposição do que é eterno e perfeito, o belo ("serafins e querubins") como ideal, uma aspiração parnasiana. Há um simulacro que se estabelece na relação entre sujeito e mundo externo, pois a representação social é caracterizada também pela produção de desejo alheia ao sujeito, induzindo-o a adotar um estereótipo. Em outras palavras, o social subordinou o sujeito ao contexto, alienando-o de si-mesmo. Aqui o que se demonstra é a perdição do sujeito que não equilibra a alma externa e a interna, isto é, a forma e a ideia, como o preceito parnasiano. Para os parnasianos, uma forma vazia, sem conteúdo, é incompleta e infeliz: não é poesia.

Como a metáfora de representação dessa ideia era o próprio Jacobina, o homem queda em solidão, inanição e falência porque está em desencontro consigo mesmo. Somente organizando-se, reencontrando-se, o homem torna a ser humano, completo: então, a perspectiva é de que o "homem é linguagem". O corpo, nessa dimensão, é manifestação da completude entra as duas almas, "o homem metafisicamente como as metades da laranja": o conteúdo (alma interna) e a forma (alma externa). Nesse sentido, as influências exógenas são nocivas ao conjunto interior-exterior, laranja-casca, forma-conteúdo, donde advêm o afastamento social e o recolhimento em si.

Ao contrário do que habitualmente se pensa, a estética parnasiana dedicava cuidado especial ao conteúdo, tanto quanto à forma. Por isso, a alma interior esvaziada ofusca a imagem no espelho.

Quanto às conexões parnaso-românticas, podem ser destacados:

  1. o afastamento social caracterizava o romântico em seu mergulho ao eu profundo; o excesso de afastamento social guarda a mesma essência: mergulho em si, evasão e intensificação das expressões subjetivas;
  2. O Espelho pode ser lido como experiência artística que fundamenta a conexão entre romântico e parnasiano, interior e exterior, forma e conteúdo, foros íntimo e social, homem e linguagem;
  3. o conto permite, lato sensu, a interpretação e inferência de binarismos, pois se vê a representação de forças duais, opositoras ou antagônicas;
  4. a dialética hegeliana (tese, antítese, síntese) também pode ser inferida desta maneira: corpo como síntese das almas interior (tese) e exterior (antítese).

Por fim, há que se ressaltar a imbricação, já investigada neste trabalho, entre o mal-do-século e a arte-pela-arte, fundamentando a relação parnaso-romântica, cuja feição artística é o insólito-parnasiano, isto é, o pensamento da arte-pela-arte atuando numa atmosfera do mal-do-século.

Referências bibliográficas

ASSIS, J. M. Machado de. Os melhores contos. São Paulo: Global, 1996.

_____________________. A nova geração. In: Crítica Literária. Rio de Janeiro: WM Jackson Editores, 1946.

SALIBA, E. T. As utopias românticas. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.

Publicado em 19 de fevereiro de 2008.

Publicado em 19 de fevereiro de 2008

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