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Olhar diferente

Afrânio Gonçalves de Souza

Antes de mais nada, educar para outros mundos possíveis é viabilizar o que já foi escondido para oprimir, é dar voz aos que não são escutados”. Moacir Gadotti

A história da construção da nação brasileira é calcada na negatividade da participação dos primeiros povos que aqui viviam antes da chegada do colonizador e dos povos trazidos do continente africano. É perceptível, através dos tempos, a negação desses povos. Onde fica a badalada miscigenação? Onde se enquadra a famosa democracia racial sinalizada por Gilberto Freyre?

A lógica de um povo miscigenado acaba nos deixando com uma visão turva, acreditando numa igualdade racial. “Igualdade” que, na verdade, produziu a invisibilidade dos negros e seus descendentes desde a colonização até a atualidade.

O problema dessa invisibilidade é que ela tem sido fomentada através dos anos por discursos inflamados e inconscientes de milhares de professores, que reforçam uma visão distorcida sobre o continente africano. Visão que nos leva a acreditar que toda a África se resume a 4 T: Tarzan, tribo, terreiro e tambor.

Os professores, em sua grande maioria, constituíram sua identidade profissional em meio ao mito da “democracia racial”, como indica Kabengele Munanga:

A partir de um povo misturado desde os primórdios, foi elaborado, lenta e progressivamente, o mito de democracia racial. Somos um povo misturado, portanto, miscigenado; e, acima de tudo, é a diversidade biológica e cultural que dificulta a nossa união e o nosso projeto enquanto povo e nação. Somos uma democracia racial porque a mistura gerou um povo que está acima de tudo, acima das suspeitas raciais e étnicas, um povo sem barreiras e sem preconceitos. Trata-se de um mito, pois a mistura não produziu a declarada democracia racial, como demonstrado pelas inúmeras desigualdades sociais e raciais que o próprio mito ajuda a dissimular, dificultando, aliás, até a formação da consciência e da identidade política dos membros dos grupos oprimidos (1996, p. 216).

A omissão da existência de grandes civilizações no continente africano deixa a maioria do povo brasileiro órfão de sua ancestralidade, de sua própria história. Durante décadas, a escola brasileira, sem perceber, estimulou a negação da participação dos africanos e afrodescendentes na construção desta nação.

Omitindo o racismo, provocamos o silêncio da negritude por muito tempo e dilaceramos nossa própria História. Nossa cultura tem sido firmada em cima da desvalorização dos povos africanos que foram trazidos para este país. Desmerecemos a efetiva participação dos negros na formação da sociedade brasileira.

Tratamos os africanos que migraram compulsoriamente para o Brasil apenas como propriedade; em nenhum momento nos referimos a eles como seres humanos, com histórias, cultura, memória. Seus descendentes não se veem nos livros, na televisão, na História desta nação como participantes ativos. O que lhes é mostrado são coparticipações; são meros espectadores de uma sociedade em formação. Precisamos lutar para mudar essa ótica que impregna nossa alma.

Não nos damos conta de que praticamos crueldades em relação aos afrodescendentes. Por exemplo: temos medo de assumir que somos negros ou descendentes. Não visualizamos negros em nossa família. Negros são os outros. Precisamos exercitar mais nosso olhar.

A visibilidade do negro em nossa sociedade só é possível quando fechamos todos os vidros do automóvel diante de um semáforo para não sermos molestados com a presença de pessoas: crianças, jovens ou adultos que teimam em oferecer produtos ou limpar os vidros do carro; ou até mesmo na estatística do número de desempregados. Mesmo assim continuamos a afirmar que no Brasil o racismo é inexistente.

Se pararmos de fingir que não vemos e observarmos mais atentamente, enxergaremos que a miséria, a pobreza, a população carcerária e a enorme massa de despossuídos de qualquer assistência do poder público deste país têm cor: negra.

A possibilidade de esse enorme contingente ser visto, notado enquanto grupo social ativo, só será alcançado quando assumirmos que os africanos e seus descendentes participaram efetivamente da construção deste país, que contribuíram com sua cultura própria; e quando tivermos plena consciência de que somos o país de maior população negra fora do continente africano.

Desconstruir é um exercício conflitante que precisamos encarar para construir uma identidade brasileira, na qual portugueses, índios e negros interajam o tempo todo. Estudar é preciso. Resgatar essa parte da História faz-se necessário. Refletir é essencial.

Ao discutir a questão das lutas pelo fim da escravidão e a busca por melhores condições de vida dessa grande parcela de nossa sociedade, estaremos dando o crédito para quem o merece de fato.

Precisamos nos conhecer profundamente; e isso só será possível com um olhar reflexivo em nossa ferida: o racismo negado.

Segundo Kabengele Munanga (1996), o resgate da memória coletiva e da história da comunidade negra não interessa apenas aos alunos de ascendência negra. Interessa, também, aos alunos de outras ascendências étnicas, principalmente branca, pois ao receber uma educação recheada de preconceitos eles também tiveram suas estruturas psíquicas afetadas. Além disso, essa memória não pertence somente aos negros. Ela nos pertence a todos, tendo em vista que a cultura da qual nos alimentamos cotidianamente é fruto de todos os segmentos étnicos que, apesar das condições desiguais nas quais se desenvolveram, têm contribuído, cada qual a seu modo, para a riqueza e a identidade nacional.

Em um de seus artigos, Nilma Gomes (2003) expõe que a função social e política da escola é muito mais do que escolher a metodologia eficaz para a transmissão de conhecimentos historicamente acumulados ou preparar as novas gerações para serem inseridas no mercado de trabalho e/ou serem aprovadas no vestibular. E mais: que a escola possui a vantagem de ser uma das instituições sociais em que é possível o encontro das diferentes presenças. Ela é também um espaço sociocultural marcado por símbolos, rituais, crenças, culturas e valores diversos. Essas possibilidades do espaço educativo escolar precisam ser vistas na sua riqueza, no seu fascínio. Sendo assim, a questão da diversidade cultural na escola deveria ser vista no que de mais fascinante ela proporciona às relações humanas. O trato pedagógico da diversidade é algo complexo, pois exige o reconhecimento da diferença e, ao mesmo tempo, o estabelecimento de padrões de respeito, de ética e a garantia dos direitos sociais e, assim, nos coloca diante do desafio da mudança de valores, de lógicas e de representações sobre o outro, principalmente aqueles que fazem parte dos grupos historicamente excluídos da sociedade.

A promulgação da Lei Federal 10.639/03, que dispõe sobre o ensino de História e Cultura Africana nas escolas de todo país, é, no atual contexto escolar, a instrumentação legal que contribui profundamente para uma nova orientação em torno de um projeto de educação antirracista.

Assim, há confiança de que essa Lei proporcione o resgate da história perdida no tempo e de nosso vínculo placentário com a África, possibilitando uma reconstrução da história da humanidade. Afinal de contas, a vida humana começou na África.

Nosso desconhecimento sobre a história e a cultura dos africanos e seus descendentes no Brasil e nas Américas pode, muitas vezes, fazer com que optemos por utilizar esquemas simplificados de explicação para um fenômeno tão complexo quanto a construção do racismo entre nós. O racismo é um fenômeno que influi nas mentalidades, no modo de agir e de se ver no mundo. No entanto, durante muito tempo se defendeu a ideia de que aqui não havia discriminação e, ainda, que o que separava as pessoas era ‘apenas’ sua condição social. Hoje, não só vemos pelos dados da demografia da pobreza brasileira que ela tem uma inequívoca marca de cor como sabemos que um olhar mais atento à história e à vida do afrodescendente no país revela nossa convivência permanente com o preconceito e seus efeitos perversos. Mas para podermos enxergar isso tivemos que ouvir relatos, ver dados e entender como foi essa história. Só assim pudemos desnaturalizar as desigualdades e ver a face hostil do nosso ‘racismo envergonhado’. O que isso quer dizer? Que devemos nos dedicar ao tema: estudar, ler, nos informar, sempre mais e mais. Afinal, o que está em jogo é bem mais que a nossa competência profissional, é o nosso compromisso com um país mais justo e com um mundo melhor para todos nós.

Professores deste país devemos nos conflitar interiormente sempre. Esse conflito possibilita ressurgirmos mais fortes e com olhar reflexivo sobre o caminho a seguir. Nossa decisão possibilitará a construção de uma identidade verdadeiramente alicerçada na equidade.

Devemos pensar e praticar esse sonho antigo, de ter um país igualitário, o que só é possível resgatando nossa História. A partir de então, todos no Brasil deixarão de ver e enxergar uns aos outros e se unirão para um projeto de nação justa e mais humana. Nossa História será contada por aqueles que participaram ativamente desta nação. A voz presa na garganta será solta e finalmente gritaremos Liberdade!

A diferença tão pertinente na nossa sociedade é que nos torna iguais.

GOMES, Nilda. Diversidade na Educação : reflexões e experiências. Marise Nogueira Ramos, Jorge Manoel Adão e Graciete Maria Nascimento Barros (Coord.). Brasília: Secretaria de Educação Média e Tecnológica, 2003.

MUNANGA, Kabengele. Identidade, cidadania e democracia: algumas reflexões sobre os discursos antirracistas no Brasil. In: Resgate, n. 6, p. 17-24, 1996.

Publicado em 19 de fevereiro de 2008

Publicado em 19 de fevereiro de 2008

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