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De como Machado de Assis virou personagem da literatura infanto-juvenil

Luciana Sandroni

Machado 100

Ludi na Revolta da Vacina é o terceiro livro desta personagem criada por Luciana Sandroni. Neste livro, que conquistou o Prêmio Carioquinha de 1998, a família Manso (os irmãos Ludi, Chico e Rafa; seu Marcos e dona Sandra, seus pais; e Marga, a empregada), ao atravessar o Arco do Teles, no Centro do Rio de Janeiro, saem do final do século XX para cair no início do século, no meio dos acontecimentos que foram reunidos na chamada Revolta da Vacina. Assim, junto com a família da Ludi, aparecem na aventura o sanitarista Oswaldo Cruz, o chefe de polícia Piragibe, o prefeito Pereira Passos e Machado de Assis.

Neste trecho, as crianças e Marga estavam perdidas no meio da confusão, e seu Marcos saiu ao encalço delas; D. Sandra está no interior da tradicional Confeitaria Colombo, conflagrada pelo arremesso de pedras por populares; lá ela acode uma senhora atingida por um dos petardos.

Trecho do livro Ludi na Revolta da Vacina

A Colombo ainda estava sob o impacto da revolta. Os enfermeiros cuidavam dos feridos, os garçons tentavam arrumar a bagunça, os familiares chegavam à procura dos parentes. Dona Sandra ainda amparava a senhora que tinha desmaiado com a pedrada na testa. Como fazia muito calor e a senhora usava aquelas roupas pesadas da época, dona Sandra a abanava, distraidamente, com o jornal que tinha trazido na bolsa.

– E aí? Como a senhora se sente?

– Já estou me sentindo melhor, obrigada. Não se preocupe comigo. Vá procurar seus filhos... Meu marido deve estar chegando e me levará para casa...

– Claro, mas eu espero aqui com a senhora, não me custa nada. A senhora não quer um copo dágua com açúcar?

De repente o marido aflito chega à Colombo à procura da esposa:

– Carolina! Carolina! O que aconteceu?

– Não foi nada. Ela já está bem. Foi só um sus...

Quando dona Sandra olhou o marido da senhora e o reconheceu, ficou desnorteada, perplexa, boquiaberta, e quase desmaiou. Era ele, seu ídolo, o maior escritor do Brasil, seu autor preferido desde os 15 anos: Machado de Assis!

Dona Sandra embranqueceu e não conseguiu falar mais nada.

Machado de Assis não deu bola para o espanto da dona Sandra. Só tinha olhos para sua mulher:

– Carolina, Carolina, meu amor. Eu te adverti tanto. Não deverias sair do Cosme Velho hoje, minha querida... Esta cidade está uma celeuma. Eu mal consigo escrever uma linha.

– Eu sei, Joaquim, mas estava um dia tão lindo e tão quente que eu não resisti a dar um passeio. E... Olha, esta senhora me acudiu... Como é mesmo seu nome, minha senhora?

Dona Sandra ainda estava muda e branca. Carolina percebeu que agora quem não estava bem era ela:

– Engraçado, ela estava tão bem disposta, de repente ficou desse jeito. É melhor nós ajudarmos a moça, Joaquim.

Carolina fez com que dona Sandra se sentasse e bebesse um copo dágua com açúcar. Dona Sandra foi relaxando e voltando ao normal. Só agora ela se dava conta de que, se estava em 1904, poderia encontrar Machado de Assis, Lima Barreto, seus escritores favoritos, em qualquer esquina da cidade.

Mais calma, tentou dizer algumas palavras, mas não achava uma que servisse:

– Eu estou tão emocionada... Tão radiante... Tão perplexa... Tão boba, que nem sei o que falar... Nunca pensei que isso fosse possível. Conversar com o senhor... Eu sou sua fã desde os meus 15 anos, quando meu pai me deu Dom Casmurro de presente e eu adorei o livro, eu...

Machado de Assis ficou meio sem graça, mas não atinou com o fato dela dizer que tinha lido Dom Casmurro aos 15 anos, se o livro tinha sido lançado há quatro anos e... Dona Sandra não era mais uma mocinha. Na certa ela ainda não estava muito bem, pensou. Carolina, ao contrário, estava radiante com aquela nova fã.

– Joaquim, ela está assim por sua causa. É uma de suas leitoras!

– Ora, ora... Que bom. Qual é o seu nome mesmo, minha filha?

Dona Sandra estava tão perplexa por estar conversando com Machado de Assis que começou a falar sobre coisas do futuro:

– Meu nome é Sandra. Sou jornalista. Eu trabalho no Correio Carioca. Nós estamos fazendo um suplemento especial sobre a obra do senhor. Agora eu estou relendo Esaú e Jacó. É fascinante. Eu estou naquela parte em que o senhor fala da enseada de Botafogo. O senhor tinha razão: a enseada foi destruída por viadutos, edifícios sem sentido, um horror!

Machado de Assis e Carolina não entenderam nada: uma mulher jornalista? Correio Carioca? E como ela poderia reler um livro que ele ainda não publicara? E o pior: como ela sabia que a enseada de Botafogo iria ser destruída?

– Desculpe, dona Sandra, mas não estou atinando numa coisa. Eu acabei de terminar essa história. Como é que a senhora pode estar relendo um livro que ainda não existe?! E como a senhora pode saber do futuro da enseada de Botafogo?

– Calma, Joaquim, não seja casmurro. Ela deve ter-se enganado.

– Bem... eu... acho que... me confundi...

Dona Sandra estava confusa mesmo. Como ia se explicar? Carolina, que agora a abanava com o jornal, olhou para ele com mais atenção: que jornal diferente, grande, pesado, com muitas fotos e... fotos coloridas! E a data? Ela leu, releu e não acreditou: era um jornal do final do século!

– Joaquim! Olha este jornal! São notícias do futuro!

– Calma! Calma! Eu posso explicar... – gritou dona Sandra, pegando o jornal das mãos dele.

– Mas esse jornal não é do nosso tempo!

Agora Machado de Assis e Carolina é que estavam perplexos e sem palavras. Dona Sandra tentava explicar o inexplicável. Buscava uma saída, mas qual? O jeito era dizer a verdade, por mais absurda que fosse. Mas ela só conseguia embaralhar mais as coisas:

– Bem... Na verdade, dona Carolina, senhor Machado... Eu vou dizer uma coisa que vocês não vão acreditar, mas tudo bem... eu entendo que vocês não acreditem, porque eu também não estou acreditando muito no que aconteceu. Vocês entendem?

– Se a senhora fosse um pouquinho mais clara, talvez nós pudéssemos entender.

– Claro. Desculpem-me. É que... o que eu vou dizer é tão absurdo. Se alguém me falasse o que eu vou contar eu não acreditaria.

– A senhora está querendo nos dizer que não nasceu nesta época, mas sim no futuro, é isso? – acudiu Machado de Assis, como se viajar no tempo fosse a coisa mais natural do mundo.

– É. É isso, respondeu dona Sandra, surpresa com a calma dos dois após a grande revelação. Vocês acreditam em mim?

– Bem, a senhora há de convir que é realmente inacreditável, mas não é nada normal encontrar um jornal com fotos coloridas e com uma data tão distante da nossa... E, sem querer ofendê-la, a senhora não se veste como uma mulher do começo do século... Desculpe perguntar, senhora Sandra, mas no final do milênio as mulheres vão se vestir assim? De calças compridas tal qual os homens? E ficar assim, em mangas de camisa, com os braços nus... perguntou Carolina, estranhando aqueles trajes.

Dona Sandra achou graça do jeito de Carolina.

– É, no final do século será normal as mulheres vestirem calças, mas também irão usar vestidos e saias, só que bem mais curtas. Não só os braços ficarão nus, as pernas também.

Carolina ficou pasma.

– Por favor, Carolina, deixemos a moda para lá. Diga-nos, senhora Sandra, como está o nosso país no final do século? Como está o nosso Rio?

Dona Sandra se viu em maus lençóis: como falar do Brasil sem decepcioná-los? Como falar do Rio atual para o escritor que mais homenageou a cidade sem desapontá-lo?

– Bem... o Brasil... O senhor sabe, não é? A nossa república nem sempre foi muito boa. Sempre autoritária, tivemos uns períodos amargos. Mas hoje vivemos numa democracia! Podemos eleger os presidentes, temos liberdade de imprensa... Mas ainda há muita miséria, seca, impunidade, corrupção...

As expressões de Carolina e de Machado de Assis demonstraram desapontamento. Achavam que o futuro do país era grandioso. Dona Sandra tentou ser menos crítica:

– Mas nós já temos fábricas, usinas. Exportamos automóveis, sapatos, laranjas. Temos mais escolas, mais universidades. O mundo será totalmente tecnológico. Tudo é feito pelas máquinas. Os escritores escrevem os livros nos computadores, que são máquinas que nos ajudam bastante. O Brasil é muito famoso no resto do mundo pela sua música e pelo seu futebol. E o senhor, seu Machado de Assis, é o escritor mais importante da literatura brasileira. Todos leem seus livros. A Academia Brasileira de Letras, que o senhor preside, vai se tornar uma academia muito rica.

– Rica? Mas a Academia hoje é tão pobre, não tem nem sede própria.

– É, mas no futuro ela ganhará o prédio do Petit Trianon e, mais tarde, vão construir um prédio gigantesco do lado dele, mas graças a Deus ninguém o derrubou.

– Por quê? No futuro vai haver um novo "bota-abaixo"?

– O futuro é um bota-abaixo só. Muitas casas, sobrados, teatros vão ser derrubados. A Avenida Central vai ser dizimada. Vão construir prédios horrendos, metrôs, viadutos na cidade inteira. O Rio de Janeiro do futuro é uma cidade desorganizada, caótica, cheia de prédios horrorosos. A ganância imobiliária destruiu a cidade e...

Dona Sandra percebeu que estava arrasando demais o Rio e tentou dar uma maneirada:

– Bem, mas muitas construções foram preservadas. No final do século, teremos mais consciência da importância da preservação do passado. O Corredor Cultural é um projeto que irá reformar várias casas e edifícios antigos. Os centros culturais estão valorizando o Centro com exposições, peças de teatro, cinema, música, livrarias, bibliotecas.

Um dos garçons da Colombo veio interromper a conversa:

– Desculpem-me, mas a confeitaria vai fechar. O presidente decretou Estado de Sítio. É para todos irem para suas casas.

– Obrigado. Nós já estamos indo.

– A senhora não quer ir conosco?

– Não, obrigada. Eu adoraria ir, mas tenho que procurar minha família e voltar para o meu tempo.

Dona Sandra levou-os até a porta da Colombo e se despediu dos dois:

– Espero que tudo corra bem para você, minha filha! Boa sorte! – disse Carolina, dando-lhe um abraço forte.

– Eu queria dizer que foi uma honra ter conhecido o senhor e a senhora. Obrigada por tudo. E me desculpem por eu ter desapontado vocês com essas notícias do futuro.

– Qual o quê, senhora Sandra. A nossa felicidade é que morreremos antes e não veremos nada disso! Boa sorte!

Dona Sandra ficou na porta da Colombo vendo o tílburi ir embora, ainda tonta de perplexidade com o que tinha acontecido. De repente, seu Marcos apareceu afobado, sem saber por onde começar.

SANDRONI, Luciana. Ludi na Revolta da Vacina – uma odisseia no Rio Antigo. Il. Humberto Guimarães. Rio de Janeiro: Salamandra, 1999.

Publicado em 19 de fevereiro de 2008.

Publicado em 26 de fevereiro de 2008

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