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Decolagem

Cláudia Dias Sampaio

A lâmina afiada corta sem descanso. A cenoura se decompõe em sucessivas rodelas, que se esparramam sobre o mármore da pia. Quando entrei, vi que ele soltou lentamente o cabo de madeira da pequena faca. Olhou em direção à porta e lançou-me um sorriso. Finalmente! Fazia tempo que eu sonhava em conhecer o marido de Sofia, amiga há tantas vidas.

Nós nos conhecemos na adolescência, quando me mudei para o supletivo, num pequeno colégio que ficava na esquina do Largo do Machado. Trocar de colégio no meio do ano não é das decisões mais recomendáveis, ainda mais quando se está a um semestre de completar o ciclo escolar. Naquela época já não era mais o Científico, mas também ainda não era o Ensino Médio; era, sim, o Segundo Grau. O problema é que não houve alma capaz de convencer as freiras do antigo colégio de me aguentarem por mais um semestre. O supletivo se apresentava como única solução, afinal era preciso entrar logo na faculdade, saber o que queria da vida e não perder tempo. Pelo menos era isso o que eu ouvia dos mais velhos. Sentia calafrios ao pensar no tal "mercado" - impaciente e voraz. Como poderia saber o que fazer da vida, se certas palavras me espantavam tanto? "Mercado" era uma delas. Não eram só as palavras, eram frases, situações, parentes etc., a ponto de eu achar que havia uma edição por dia de uma revista que minha mãe costumava ler: Mulher de hoje. Ora, que cara de pau! Chamar aquela revista de Mulher de hoje se ela estava ali no cesto do banheiro desde anteontem!

Bem, deixemos de lado essas reflexões sobre a perplexidade que me acompanha desde a infância e que àquela altura já deviam ter sido superadas, afinal, como disse no início, conheci Sofia na adolescência. Deixarei para um outro momento os detalhes dessa amizade, que começou no instante em que a vi pela primeira vez, chegando atrasada, na sala do supletivo, com um lenço colorido sobre a cabeça raspada. Sofia é companheira nesse espanto que nos acompanha desde os tempos idos e que, na maioria das vezes, resulta em descompasso. Mas é esse o compasso de nossa amizade, o que nos faz lidar com a parte mais alegre e saudável de nós.

Voltemos à cozinha da casa de Sofia, que não é mais aquela onde comíamos miojo de galinha caipira quando chegávamos sorrateiras das festivas madrugadas que acabavam quase sempre em banhos de bica nas Paineiras, ou melhor, em miojo de galinha caipira. Mesmo mantendo na idade adulta esse precioso espanto da juventude, a capa invisível que protege dos perigos das certezas, nada se compara à liberdade da adolescência.

Este texto seria mais direto se a promessa de deixar os detalhes para outra ocasião fosse cumprida e, ao invés de descrever as reminiscências, entrasse na cozinha, desse um "oi" ao Vinícius, marido de Sofia, e roesse, como uma coelha, uma das rodelas daquela cenoura. Mas o que fazer com a maturidade que nos traz as reminiscências, senão tentar expressá-las da maneira menos enfadonha possível? Afinal, para levantar voo é preciso muito chão.

- Bom dia!

- Ah! Então você é o famoso Vinícius!

Os dois já estavam morando juntos há mais de um ano, mas ainda não nos conhecíamos. Antes de namorar Vinícius, Sofia andava meio deprê. Agora, o brilho dos olhos revelava a felicidade daquela nova fase. Ele vivia a dura rotina de um professor, dividia seu tempo entre três escolas para pagar as contas no fim do mês. Os amigos de Sofia brincavam que na verdade ela queria era esconder o maridão, que não compartilhava dos hábitos nada saudáveis a que eles eram afeitos: beber cerveja, dormir tarde etc.

- Poxa, mas eu estava curiosa para te conhecer.

Conversamos sobre cinema.

- "Nós que aqui estamos por vós esperamos".

Tomamos um café enquanto ele preparava um yakisoba.

Sofia estava radiante. O clima era de alegria pelo encontro.

O momento era tão especial e confortável que resolvi contar a eles o que havia acontecido comigo naquela manhã.

Sempre odiei natação, mas decidi tentar, mais uma vez. Tive que ir até o Fundão para encontrar uma piscina tão sedutora que me fizesse topar uma nova investida. Além da beleza do lugar, obscurecida pela ideia pejorativa que se tem da localidade, a piscina da UFRJ é de um azul tão intenso que nadar por aquelas águas é uma deliciosa volta à doce luz da infância, um quase ventre.

Naquela manhã, antes de chegar ao apartamento de Sofia, fiz minha terceira aula. Como das outras vezes, saí da piscina e fui para o vestiário tomar um banho. O chuveiro de dimensões fora dos padrões permite que a água caia abundante, em fios ininterruptos, liberando o corpo do cloro que até então o revestia. Com a cabeça completamente inundada e olhos fechados, relaxei, enquanto massageava o couro cabeludo com um xampu cremoso, daqueles tipo 2 em 1. De repente, senti algo estranho, o chão do boxe parecia descolar do vestiário. Fiquei por alguns instantes sem entender o que acontecia, até que compreendi que estava em pleno voo, no avião reservado aos estudantes. Um dispositivo muito eficaz não permitia que ninguém deixasse de decolar no último voo que retirava os alunos da Ilha do Fundão e os colocava em terra firme.

Vinícius e Sofia escutavam atentos. Naquela altura ele já tinha deixado a bancada da cozinha, as rodelas de cenouras espalhadas pela pia. Estavam sentados de mãos dadas no confortável pufe amarelo da sala de estar.

A voz de Vinícius interrompeu o silêncio que se instalara por algum tempo.

- O que vocês acham de um banho nas Paineiras?

Perguntei pelo yakisoba.

- A gente come na volta, disse Sofia sorrindo e já se levantando do pufe.

Pubicado em 11/3/2008

Publicado em 11 de março de 2008

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