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Ler o escrito e escrever o lido: Luiza Neto Jorge
Cláudia Dias Sampaio
Como mensurar o valor de um presente que muda nossa vida? Pode ser um apartamento, uma viagem a Paris, uma flecha certeira enviada por Vênus... Certamente mudam a vida. Mas quando se trata do que ganhamos quando lemos algo que nos leva para um lugar íntimo e até então desconhecido, e com total surpresa vemos que estar nele é estar em (e com) todo mundo? Um recanto especial, como repouso sobre nuvem fina e ligeira a nos carregar para o arco-íris do mundo, entre raios de sol e o cinza chumbo da tempestade iminente. Algo próximo a um dos mais célebres, e complexos, conceitos da teoria da arte: o sublime kantiano. Tal presente é imensurável.
Assim é a poesia de Luiza Neto Jorge, que conheci durante o curso “O retorno do épico”, do professor Jorge Fernandes da Silveira, professor de Literatura Portuguesa na UFRJ e um dos grandes leitores da poesia portuguesa.
Em uma aula memorável sobre os poemas da antologia que organizou com Mauricio Matos, 19 recantos e outros poemas (2008, 7Letras), primeiro título da autora em terra brasileira e de onde extraímos os poemas deste diálogo, Jorge Fernandes falou da relação entre os Recantos de Luiza e Os Lusíadas e do movimento de tensão que a poeta realiza na leitura da obra de Camões. Segundo o professor, “Luiza Neto Jorge inscreve uma revolução nos instrumentos de estilo e composição ditando à sua maneira a moda que lhe é contemporânea: ler o escrito e escrever o lido, desde a modernidade; esses são os dois sítios sitiados”.
Em 2009 completam-se 30 anos de morte da poeta. Espero que este seja apenas um gesto entre outros que irão nascer em lembrança de Luiza Neto Jorge.
O poema ensina a cair
O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede
até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.
A Magnólia
A exaltação do mínimo,
e o magnífico relâmpago
do acontecimento mestre
restituem-me a forma
o meu esplendor
Um diminuto berço me recolhe
onde a palavra se elide
na matéria – na metáfora –
necessária, e leve, a cada um
onde se ecoa e resvala.
A magnólia,
o som que se desenvolve nela
quando pronunciada,
é um exaltado aroma
perdido na tempestade,
um mínimo ente magnífico
desfolhando relâmpagos
sobre mim.
Minibiografia
Não me quero com o tempo nem com a moda
Olho como um deus para tudo de alto
Mas zás! do motor o mau ressalto
Me faz a todo o passo errar a coda.
Porque envelheço, adoeço, esqueço
Quanto a vida é gesto e amor é foda;
Diferente me concebo e só do avesso
O formato mulher se me acomoda.
E se a nave vier do fundo espaço
Cedo raptar-me, assassinar-me, cedo:
Logo me leve, subirei sem medo
À cena do mais árduo e do mais escasso.
Um poema deixo, ao retardador:
Meia palavra a bom entendedor.
Jornal de domingo
Na página aberta
do jornal de hoje
um anúncio traz
a mulher bela
com poros de pele
um cabelo que são
letras soltas
sua boca é um selo
na resposta à carta
que lhe pede a mão
e o seu sexo louro
e o rosto liso
na fotografia
como um peixe rindo
Todos nós esperamos
que ao dobrar a página
se leia isto aquilo
a emoção de ler
e se leia tudo
do pensar na fêmea
à fêmea esgotada
desde o púbis à cor
do riso
quando se ergue
e o vento recua
quando se deita
e se esquece nisso
se leiam as coisas
nas conversas
que entre si não têm
nos obstáculos
que entre si não saltam
homens objetos
anões fadas peixes
gulodices
Com letras maiores
aparece o nome
de um amante morto
com o crânio calvo
de ave sonhadora
que outrora poisou
de amor em amor
dentro dos domingos.
Domingo é o espaço
onde todos cabem
sem lhes ser preciso
fazer vénia ao sol
Acontece então
um homem sentir
a água escorrer
dentro do pescoço
e fazer-lhe um nó
como de gravata
que lhe vai bem
nesse fato inútil
vestido à pressa
para ler o jornal
para matar a fêmea
que o recusou
e se lhe afeiçoa
o fato depois da vingança
e o faz igual
a alguém que dança
Aranha ao de leve
arranha no corpo
e o homem não lê
porque está esquecido
– a pensar em quê?
– Mais um domingo –
é o que dirá
se não o matarem
por qualquer razão
mil punhais salobros
saídos do chão
se voltar a casa
é o que dirá
Na casa não há domingo
há um fio de amor partido
que sangra pingo por pingo
Para conhecer mais:
- Biografia, por Gastão Cruz
- Era uma vez Camões na ilha de Moçambique, de Jorge Fernandes da Silveira
- Luiza Neto Jorge na revista Relâmpago
- Mais poemas
Publicado em 6 de janeiro de 2009
Publicado em 06 de janeiro de 2009
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