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Só Platão explica... 

Mariana Cruz

Os gregos, sempre os gregos... Não é raro escutar por aí que tudo relacionado ao âmbito humano que se estuda hoje já foi há muito pensado pelos gregos. Atualmente o que ocorre são desdobramentos, releituras, interpretações do que eles disseram. Por outro lado, alguns citam a grande revolução feita pelo descobridor do inconsciente, Sigmund Freud. Mas, sem querer decepcionar os amantes da psicanálise, ao que parece alguns séculos antes de Cristo, ninguém menos que Platão já havia escrito sobre a divisão da mente em partes.

Para o discípulo de Sócrates, só é possível chegar à verdadeira felicidade (eudaimonia) através do agir bem, isto é, através da realização de todas as coisas com perfeição, sem nunca ultrapassar nem ficar aquém da medida, da proporção geométrica. Para isso, o indivíduo deve ter em vista não a realização de seus desejos individuais, caso sejam contrários à virtude (arethé) ou à ambição por mais do que aquilo que lhe cabe (pleonexia). A felicidade, para Platão, nada tem a ver com prazeres, riquezas e luxo, e sim com a justa medida (Jaeger, 1995, p. 679).

A temperança é o elemento necessário para que tais prazeres e paixões não saiam vitoriosos na contenda contra a reta conduta. É assim que Platão diferencia a expressão “senhor de si” da expressão “escravo de si”, ressaltando que, apesar de se referirem à mesma pessoa, cada uma diz respeito a uma parte da alma. A primeira parte ocorre quando a parte superior comanda a inferior; a segunda, quando o oposto ocorre (Platão, 1997, p. 129).

Há certos desejos, como a comida – quando se está com fome – e a bebida – quando se está com sede – que são mais fortes que todos. Existem, contudo, aquelas pessoas que, mesmo desejando muito comer a fim de extinguir a fome ou beber para saciar a sede, por uma força maior, não o fazem. Percebe-se assim que o princípio que rege a sede não é o mesmo princípio que impede a pessoa de beber. Tal tipo de pessoa está agindo de acordo com o princípio racional, enquanto o princípio irracional é o responsável pelos prazeres, medos, desejos, dores. Além desses dois princípios, a alma comporta um terceiro elemento: a cólera – uma espécie de ancestral do inconsciente freudiano. Apesar de parecer pertencer ao elemento irracional, nem sempre é assim. Platão relata uma passagem em que um nobre, passando por um lugar cheio de cadáveres, racionalmente não quer olhar para eles, mas não consegue se conter e olha-os todos, porém cheio de cólera por não ter conseguido vencer sua vontade. Aí aparece explicitada a natureza irracional da cólera.

Entretanto, em muitas outras situações a cólera pode estar ao lado da razão. Como quando um homem, ao saber-se culpado por algo, aceita os mais severos castigos sem utilizar sua cólera contra quem o fez passar por tais privações de forma justa.

Ulisses, o herói da Odisseia, admirado por sua astúcia, é um exemplo clássico de quem tem o elemento racional sempre sobreposto à emoção. É dessa forma que, ao homem temperante, a razão servirá de guia – e a cólera, de sua auxiliadora. Unidas, elas são fortes o suficiente para combater a parte da alma influenciada pelos desejos e prazeres do corpo. À razão cabe tomar as decisões, e à cólera cabe lutar sob sua égide para que a vontade não seja derrubada pelo lado irascível da alma.

A ideia da divisão da alma em partes semi-independentes se dá sob a regência da justiça, que organiza cada um de seus elementos, fazendo-os agir de acordo com o que lhe é próprio. O homem, ao apresentar essa conduta, passa a ser senhor de si, com cada elemento exercendo sua função sem invadir nem deixar-se penetrar pelo que não lhe seja justo. Há uma harmonização dos três elementos da alma.

Por outro lado, aquele que deixa que a batuta da injustiça reja os três elementos permitindo que um invada o domínio de outro, na mais completa desordem, abre espaço para o aparecimento de condutas falhas como a intemperança, a covardia e a ignorância.

Tem coisas que só Platão explica.

Referências

JAEGER, W. Paidéia. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

PLATÃO. A República. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1997.

Leia também:
Prudência, ação e virtude

Publicado em 31 de março de 2009

Publicado em 31 de março de 2009

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