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À casa de Gastão Cruz

Raquel Menezes

Diálogos Poéticos
o espaço fundamental para a memória é a casa – uma das maiores forças de integração dos pensamentos, lembranças e sonhos da humanidade.

Heidegger

Na Rua de Portugal número 20 (em Faro) nasceu, a 20 de julho de 1941, Gastão Cruz. Vinte anos mais tarde estreia como poeta ao publicar, em parceria com Casimiro de Brito, Maria Teresa Horta, Fiama Hasse Pais Brandão e Luiza Neto Jorge, o livro A morte percutiva, incluído na coletânea Poesia 61 – para o poeta, uma coincidência literária, um corte de gastos editoriais e não um movimento literário. Apesar das afirmações do poeta sobre a coincidência, há afinidades poéticas entre os publicados, pois todos os cinco – assim como Eugenio de Andrade, Herberto Helder e o próprio Fernando Pessoa fizeram – colocam a palavra no “lugar central na construção do poema” (2004, p. 8), como afirma Gastão Cruz no prefácio da antologia Quinze poetas portugueses do Século XX.

Anos depois da sua estreia, mais precisamente 41 anos depois, Gastão Cruz lança suas memórias e melancolias em Rua de Portugal. Livro no qual sentimentos do passado, a casa que não mais existe, e o café de frente à livraria são apresentados ao leitor de modo transfigurado a partir de “uma espécie de disciplina realista”, visto que a tentativa é “fazer poemas sobre coisas, sobre lugares, coisas mais concretas, menos abstratas”, como afirma sobre Rua de Portugal Gastão em entrevista ao também poeta Luis Maffei.

O processo de transfiguração, muito semelhante ao que faziam os impressionistas e que atualmente podemos comparar aos trabalhos feitos em Photoshop, em que transfiguramos imagens, na sua grande maioria fotografias, que tendem a capturar uma realidade no tempo/espaço, é visto em “Cerne” (2002, p. 40):

As cadeiras da casa mostram ainda a árvore
os desenhos do cerne como chamas
em todas repetidos e nos móveis

postos para a visão que começava
quando noutro lugar era a mobília
o cenário incendiário da família.

No poema citado, a memória está contida nos “desenhos do cerne”, na “mobília” que já fora árvore, na “casa”, cenário recorrente na seção “Rua de Portugal e outros lugares”. Mesmo cenário em que, no poema de abertura, com características epigráficas, almejante de ser uma arte poética, intitulado “Na poesia”, que gramaticalmente de substantivo concreto simples passa a, semanticamente, lugar poético “onde o eco/existe sem o grito que todavia o gera”. Lugar de construção de linguagem. Lugar de busca da palavra em “que o sentido da linguagem poética é realmente o de conseguir transpor o real para a poesia, criando uma linguagem que é diferente e autônoma em cada poeta”, como afirma Gastão Cruz em entrevista; e como o dirá, em versos de Rua de Portugal:

NA POESIA

Na poesia procuro uma casa onde o eco
existe sem o grito que todavia o gera

SOLUÇO

Não poderei
tirar-te desse abismo
sentar-te à mesa
já estou
também, sei bem, um pouco morto,
por ti por esse
dia
que ao formar-se deixou

o soluço do tempo
audível no algodão com que taparam
a tua boca

EM TEMPO ALHEIO

Peço desculpa de ser

o sobrevivente.
Drummond, As Impurezas do branco
Demasiados mortos para a
minha memória
O dia está aí um projetor nos rostos
que repetem
cenas, deslocando-se entre os móveis
polidos pelos anos e as árvores, com falas retardadas
Não há quem sobreviva a ninguém no cenário
são somente aparências o que está
e o que falta,
todos em cada um,
enquanto ausentes o habitam como casa
em tempo alheio
Deixastes toda a esperança vós que entrastes
na memória

A MANHÃ

Esta manhã
hoje

é um nome
Fiama, Barcas novas

É assim a manhã, um nome
para o mundo, abrir os olhos como
alguém que fala
Podem o tempo ou a
morte diurna
dar aos olhos abertos o nada das palavras

O sol será então

o silêncio no olhar ou a mão
sobre a testa
que faz descer as pálpebras
como se os dedos dessem à cabeça a verdade
submersa nesse nada
e a manhã viesse
não como sombra vasta vestir a voz
do corpo
mas cobri-la da
luz
das palavras que faltam

DEPOIS DUM SONHO

Não deixaste o deserto mas
árvores na casa Em sonho és

o sedutor arbusto reflectindo
para sempre o meio-dia O sol
porém desfaz-se quando as pálpebras
num ardor se entreabrem e te ocultas
os ângulos do quarto Ausente
és pois o centro
feroz da minha vida transitas
como serpente fria no ventre
contraído escondes-te na
floresta que sem cessar se expande
onde dormíamos E erras
nos limites duma casa
destruída por raízes

Referências

CRUZ, Gastão. “Poesia Portuguesa do século XX”. Quinze poetas portugueses do século XX. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.

____________. Rua de Portugal. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002.

CRUZ, Gastão e MAFFEI, Luis. “Entrevista com Gastão Cruz”. In: http://www.maxwell.lambda.ele.puc-rio.br/acessoConteudo.php?nrseqoco=17238

Publicado em 14 de abril de 2009

Publicado em 14 de abril de 2009

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