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Ciência moderna e mudança paradigmática: um diálogo com Edgar Morin e Boaventura de Sousa Santos
Alexandre Paulo Loro
Mestre em Educação pela UFSM, diretor da Escola Teonísio Wagner, em S. Miguel do Oeste (SC)
Há mais coisas entre o Céu e a Terra do que sonha a nossa vã filosofiaW. Shakespeare
Introdução
Por muito tempo, as insuficiências estruturais limitadoras do paradigma científico moderno tentaram reduzir a realidade ao que existe, além de não conseguir cumprir algumas de suas principais promessas: justiça, igualdade, liberdade e paz, entre tantas outras. Por sua objetividade e formalidade, criou no imaginário das pessoas a ideia de progresso e de certezas, ignorando a tradição ao se distanciar do passado com suas promessas de um futuro sempre melhor.
A ciência moderna, ao demarcar espaço como conhecimento institucionalizado, vendeu a ilusão da infalibilidade. Quanto às verdades, bem sabemos que “não existe a tal verdade verdadeira; ela é sonho, pura ficção” (Costa, 2002, p. 15), sendo também suscetível ao erro.
Por seus métodos (baseados na disjunção, redução e abstração do sujeito e do objeto) e estatutos racionais (europeu, antropocêntrico, falocêntrico e colonialista), remeteu o sujeito à filosofia e à moral. Este é só um exemplo de seus princípios de redução, que Morin (1992) chama de “paradigma da simplificação”, pois leva o saber complexo a um pensamento simplificador, incapaz de conceber a conjunção do uno e do múltiplo.
Preocupado com o social, o pensador Boaventura Santos (2000) propõe um novo paradigma: “o paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente”. Sugere, através da racionalidade estético-expressiva, a união de causa e efeito, que até então a racionalidade científica moderna separou e apresenta-se inacabada. O caos em que vivemos convida a um conhecimento prudente, que sobreponha emancipação à regulação: um conhecimento pós-moderno solidário de emancipação.
Ciência moderna – do isolamento à busca de diálogo
Na modernidade, a ciência surgiu como uma fortaleza à qual a Filosofia não tinha acesso. As ciências sociais, por sua vez, com vistas à obtenção de um conhecimento intersubjetivo, descritivo e compreensivo, foram relegadas a um segundo plano. Consequentemente, desvirtuadas e manipuladas.
A ciência não é neutra nem de uma objetividade absoluta. Ela sempre veio acompanhada ou patrocinada por interesses. Em sua gênese, foi constituída pela epistemologia do Iluminismo; portanto, esteve concentrada nos poderes econômicos e políticos. Tida como uma “verdade absoluta”, foi sustentada pelos paradigmas, interesses e relações de poder. Tal relação sempre atendeu a um determinado fim: a manipulação.
Todo cientista se insere numa rede de avaliações mútuas que se estende além de seu próprio horizonte de competência: “Ele tira partido ativo dos recursos desse ambiente para fazer prevalecer suas teses e esconde suas estratégias sob a máscara da objetividade” (Stengers, 2002, p. 18). Os cientistas, ao fazer ciência, não são movidos simplesmente por razões quantitativas e científicas. Segundo Alves (1999), são movidos por curiosidade, narcisismo, ambição profissional, dinheiro, fama e autoritarismo.
Ao reduzir a complexidade da ordem cósmica a um modelo de racionalidade hegemônica, defendida como ciência pura, isolada e neutra, surgem problemas cada vez mais graves e de difícil solução.
Privilegiar as ciências naturais por sua objetividade, por seus métodos quantitativos e por seu conhecimento explicativo e monotécnico é mutilar o conhecimento. Essa visão é fechada sobre si mesma: monopolizada, unidimensional e abstrata. Julga-se possuir a verdade e a capacidade de explicar cientificamente a realidade.
Segundo Morin (1982), a ciência é incapaz de pensar a si mesma, de tanto crer que seu conhecimento é o reflexo do real. Esse princípio elimina o observador da observação, não permitindo que o sujeito introduza-se autocriticamente e reflexivamente no seu conhecimento dos objetos.
Para Boaventura Santos (2002), o que há de específico na dimensão conceitual da ciência moderna é a ideia de inferioridade do outro. Não apenas a ideia, mas sua própria legitimação, que vem a ser justificada pela produção de superioridade/inferioridade. Ao invocar a credencial da legitimidade a ciência moderna tem sua validade e credibilidade assegurada? Costa (2002) assinala as concepções que deram sustentação à modernidade:
(...) a suposição de uma ordem universal; um modelo de racionalidade (o ocidental); uma ideia de sujeito (o sujeito poderoso); as metanarrativas (grandes sistemas explicativos e totalizantes); a supremacia do homem (como espécie, como gênero, como medida de todas as coisas); uma cultura (a ocidental) como lugar privilegiado a partir do qual se inventam e nomeiam as “outras” (p. 150).
A ciência em geral e a modernidade em particular tiveram e têm relação marcadamente instrumental com a vida. Ao se preocupar em conhecer e transformar a natureza, elas procuraram eliminar a imprecisão, a ambiguidade e a contradição. A ideia de ordem e estabilidade do mundo demonstra como o determinismo mecanicista da modernidade separou o que serve daquilo que não serve; o estético do útil; a cultura da natureza etc. No entanto, o que até hoje foi ignorado e rejeitado vem à tona.
Há necessidade de reorganizar o que conhecemos por ciência. Ao desencadear uma nova concepção, uma reflexão epistemológica e diversificada sobre o conhecimento científico, Boaventura Santos (2000) afirma que:
em vez da eternidade, temos a história; em vez do determinismo, a imprevisibilidade; em vez do mecanicismo, a interpenetração, a espontaneidade e a auto-organização; em vez da reversibilidade, a irreversibilidade e a evolução; em vez da ordem, a desordem; em vez da necessidade, a criatividade e o acidente (p. 70-71).
Para ele, o saber que não considera os outros saberes do mundo é um “conhecimento desencantado e triste”. Por isso, devemos voltar nosso olhar para aquilo que é considerado não ciência, ou seja, o senso comum. Embora não possua para muitos a mesma credibilidade que a ciência, devido à sua informalidade e à sua flexibilidade, ele é real e possibilita várias leituras, faz mover os corpos, fazendo-os agir.
A ciência não é capaz de responder a todas as indagações relacionadas aos fenômenos da natureza, embora se tenha criado esse mito. A ciência também trabalha com erro e hipóteses. Não é apenas regularidade, mas também o caos que foge ao experimento e ao controle devido à sua complexidade.
Se não houvesse homens no mundo, se o mundo fosse constituído apenas de objetos, então a linguagem da ciência seria completa. Acontece que os seres humanos amam, riem, têm medo, esperanças, sentem a beleza, apaixonam-se por ideais (Alves, 1999, p. 144).
As dicotomias, os dualismos, as fragmentações e as separações entre os fenômenos são sexistas, capitalistas, provisórios, precários e, às vezes, até mesmo contraditórios. Suas leis possuem caráter probabilístico, embora se apresentem lineares. Dessa maneira, “a ciência moderna existe num equilíbrio delicado entre a relativa ignorância do objeto de conhecimento e a relativa ignorância das condições do conhecimento que pode ser obtido por ele” (Santos, 2000, p. 82). Não é possível observar ou medir determinado objeto sem interferir nele, sem o alterar. Há a interferência de particularidades humanas e de valores. Essa relação sujeito/objeto é muito mais complexa do que aparenta ser. Apresenta importantes implicações, demonstrando a interferência estrutural do sujeito sobre o objeto observado.
Neste sentido, Boaventura Santos (2000) sugere uma ruptura epistemológica, em que o conhecimento científico possa vir a se transformar num novo senso comum: ético, participativo, político e solidário. Este, por sua vez, voltado ao social: “o paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente”. Ele propõe a sobreposição da emancipação à regulação (conhecimento-emancipação pós-moderno).
Percebemos que o paradigma atual/dominante encontra-se em crise e está a modificar-se. Diante de tantas incertezas, o conhecimento científico deve dispor de reflexividade, contestando sua convicção e sua própria estrutura de pensamento. Essa transição em que a ciência se encontra aponta para a emergência de um novo paradigma. É necessário voltar o olhar às coisas simples e às perguntas simples. No entanto, as questões não são nada simples de responder, pois “temos a tendência inconsciente em afastar de nosso espírito o que vai contradizê-lo” (Morin, 1992, p. 85), principalmente quando está em jogo o valor do conhecimento científico e suas contribuições para a nossa felicidade. Ou ainda o sentido que ele tem para nossas vidas.
Está mais que na hora de nos sensibilizarmos para as enormes carências de nosso pensamento. Morin (1992), ao fazer referência ao saber, relata que a redução do complexo ao simples leva a um pensamento simplificador, incapaz de conceber a conjunção do uno e do múltiplo. A “inteligência cega” destrói os conjuntos e as totalidades, isolando todos os objetos à sua volta; trata-se de uma maciça e prodigiosa ignorância, uma visão unidimensional e mutiladora. “Assim, surge o grande paradoxo: sujeito e objeto são indissociáveis, mas nosso modo de pensar exclui um pelo outro, deixando-nos livres de escolher, segundo as circunstâncias do trabalho entre o sujeito metafísico e o objeto positivista” (Morin, 1992, p. 50). Ele traz a unidade por via de uma epistemologia aberta e uma nova ciência, integrando as realidades banidas pela ciência clássica: a inventividade e a criatividade. “A imaginação, a iluminação, a criação, sem as quais o progresso das ciências não teria sido possível, só entraram na ciência às escondidas: não eram logicamente assinaláveis e eram epistemologicamente sempre condenáveis” (Morin, 1992, p. 66).
Ao trazer à tona a discussão da complexidade do pensamento, percebemos que a complexidade não elimina a simplicidade. Trata-se de uma palavra-problema, e não uma palavra-solução, pois apresenta traços inquietantes de confusão, desordem, ambiguidade e incerteza. É uma transformação incessante.
Embora nosso mundo comporte a harmonia, não existe uma receita de equilíbrio, pois essa harmonia está ligada à desarmonia. A ordem e a desordem cooperaram na organização do universo. É parte constituinte da existência social. A própria contradição não significa necessariamente um erro, mas o atingir de uma camada profunda da realidade que, justamente por ser profunda, não pode ser traduzida para a nossa lógica. Nunca escaparemos às incertezas; jamais poderemos ter saber total; e, se um dia o tivermos, “a totalidade é a não verdade” (Morin, 1992, p. 83).
Partindo dessas discussões, podemos também trazer a contribuição de Maturana (2004), ao explicar o entrelaçamento do racional com o emocional através da biologia do conhecimento. Esse conjunto de ideias deixa sob tensão o imperialismo da razão, por estabelecer uma continuidade entre o biológico e o social ou cultural. O autor percebe os seres vivos determinados estruturalmente e, com isso, incapacita o funcionamento do argumento da realidade independente de seus observadores.
Tecendo algumas considerações
Nossas conclusões são provisórias, na medida em que admitimos que o próprio conhecimento é provisório. A ciência deve ser entendida numa dimensão social e cultural, envolvida com o contexto em que está inserida. Acredito que não podemos ter uma representação ingênua da ciência, como muito bem alerta Morin (1982):
perdemos a ilusão de que o conhecimento científico era um conhecimento acumulativo de verdades que, empilhando-se umas sobre as outras e provocando crescimento constante e simplesmente científico da própria ciência, constituem aquilo que chamávamos de progresso (p. 42).
A ciência moderna, com seus essencialismos, gerou graves problemas, a exemplo da divisão do trabalho, das catástrofes ecológicas e da fragmentação do saber. Nesse contexto, é um desafio contemporâneo a produção do conhecimento, principalmente quando pensamos em Educação.
O saber rigoroso, a precisão quantitativa, a rejeição, o desencantamento, a falta de prazer e de emoção da ciência moderna faz com que se perca a riqueza de compreensão. Por esses e tantos outros motivos é que se faz necessária e urgente a reforma do pensar, a tomada de consciência da complexidade da natureza e da instabilidade dos paradigmas.
Diante de tudo isso, podemos nos perguntar então: que perspectivas temos? Lembremo-nos de que perspectiva significa ao mesmo tempo enfoque e possibilidade. Esse período anuncia a crise de paradigmas e traz para a reflexão pedagógica novos conceitos. Várias mudanças estão ocorrendo em diversos níveis, apontando cenários possíveis. Este momento é oportuno para uma reflexão sobre as teorias e práticas que atravessam os tempos.
Acreditamos que há outras formas de buscar entender o mundo em que vivemos. Podemos optar entre a compreensão ou a manipulação. Podemos iniciar suspeitando de boa parte de nossas certezas, edificadas ao longo da modernidade, apreciando a pluralidade de possibilidades de sentido e trajetórias intelectuais. E ainda, valorizar a subjetividade, considerando a contingência. Buscar constantemente a unidade dos contrários em nossa cultura.
Faz-se necessário recuperar a harmonia fundamental, que não destrói. Uma Educação que nos leve a atuar no diálogo com a natureza, a entendê-la para viver com ela e nela, sem pretender dominá-la. Defendemos o princípio unificador do saber e do conhecimento em torno do ser humano, valorizando-o. Ao invés de sonhar com conquistas titânicas, podemos optar por desejar e edificar pequenas coisas do cotidiano. Esta, sim, será uma grande contribuição que podemos dar à sociedade.
Referências
ALVES, Rubem. Entre a ciência e a sapiência: o dilema da educação. São Paulo: Loyola, 1999.COSTA, Marisa Vorraber. Uma agenda para jovens pesquisadores. In: COSTA, Marisa Vorraber (org.). Caminhos investigativos II: outros modos de pensar e fazer pesquisa em educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
COSTA, Marisa Vorraber. Novos olhares na pesquisa em educação. In: COSTA, Marisa Vorraber (org.). Caminhos investigativos: novos olhares na pesquisa em educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
MATURANA, Humberto. Emoções e linguagens na educação e na política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.
MATURANA, Humberto & VERDEN-ZÖLLER, Gerda. Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano do patriarcado europeu à democracia. São Paulo: Palas Athena, 2004.
MORIN. Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa: Instituto Piaget, 1992.
MORIN, Edgar. A ciência com consciência. Lisboa: Europa América, 1982.
SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim das descobertas imperiais. In: OLIVEIRA, Inês Barbosa & SGARB, Paulo. Redes culturais, diversidades e educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2000.
STENGERS, Isabelle. A invenção das ciências modernas. Trad. Max Altman. São Paulo: Editora 34, 2002.
Trabalho apresentado no II Seminário Nacional de Filosofia e Educação - Confluências, 2006, UFSM/FAPAS/UNIFRA - Santa Maria/RS/Brasil
Publicado em 28 de abril de 2009
Publicado em 28 de abril de 2009
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